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BRUXELAS CORTEJA A RÚSSIA PARA ISOLAR A CHINA

Josep Borrell, chefe da "diplomacia" da União Europeia

2020-05-31

Raul Diego, MintPress/O Lado Oculto

Um discurso recente do diplomata principal da União Europeia, Josep Borrell, que fez soar campainhas porque sugere “o fim da liderança” norte-americana, indicia que o velho continente pode estar a ensaiar uma nova ordem nas relações com a Ásia namorando a Rússia – uma estratégia cujo comando poderia ser assumido pela Alemanha. Mas será apenas uma maneira de testar a hegemonia chinesa?

Uma mudança significativa no equilíbrio de poderes globais poderia estar iminente a acreditarmos na consistência das declarações proferidas pelo chefe da “política externa” europeia, Josep Borrell, dirigindo-se a um grupo de embaixadores alemães na segunda-feira, 25 de Maio, em Bruxelas. Em termos teóricos, Borrell criou supostamente “uma dor de cabeça diplomática” quando sugeriu o fim do “sistema liderado pelos norte-americanos” e defendeu a abertura de um “século asiático” assente na estabilização das relações europeias com a Rússia.

Borrell agitou ainda mais os ambientes no início da semana quando se opôs publicamente a “qualquer iniciativa israelita de anexar partes da Cisjordânia”; absteve-se, contudo, de articular medidas concretas no sentido de a União Europeia conter os abusos israelitas na região ao afirmar que Bruxelas se limitaria a “acção diplomática para evitar qualquer procedimento unilateral” de Israel na Cisjordânia – apesar de várias nações europeias serem favoráveis a atitudes punitivas contra o Estado do apartheid. 

Apesar do tom eminentemente diplomático de Borrell em relação a Israel, sem medidas activas, a intervenção do chefe da política externa da UE perante embaixadores alemães é digna de nota pelo facto de a Alemanha assumir em Julho a presidência da União Europeia e do Conselho de Segurança da ONU, o que atribui às palavras proferidas uma ressonância especial que pode apontar para uma nova fase de um plano geopolítico atlântico mais amplo. 

Jogando nos dois lados

Borrell, um político espanhol que assumiu o principal cargo diplomático da União Europeia em Dezembro de 2019, ultrapassou a muito delicada linha entre tomar o partido dos Estados Unidos na sua insistência em difamar a China por alegadamente tentar bloquear as investigações sobre a origem do novo coronavírus e o facto de ter considerado a China como “um país parceiro” num artigo recente publicado em vários jornais europeus.

Segundo Borrell, o papel da União Europeia no avanço dos projectos atlantistas na Ásia depende da sua capacidade para mediar a relação tensa entre a outra superpotência mundial – Os Estados Unidos, juntamente com o seu Estado satélite, Israel – e a China. Nesse sentido o chefe do Serviço Europeu de Acção Externa (SEAE) defende que a União Europeia “mantenha a disciplina colectiva necessária” contra a ameaça de hegemonia económica chinesa na sua esfera natural de influência, que inclui nações como a Índia, Japão, Indonésia e Rússia. 

Daí que a mensagem de Borrell aos embaixadores alemães tenha girado em torno da necessidade melhorar as relações com a Rússia de Putin e de normalizar os laços “com o resto da Ásia democrática”, sugerindo que a União Europeia deveria apoiar totalmente o porto russo de Vladivostoque e as rotas transiberianas de transporte para contornar a Iniciativa Cintura e Estrada (ICE) da China e enfraquecer a sua posição em toda a Ásia. Isolar a China, portanto.

Os estreitos laços comerciais da Alemanha com a Rússia têm sido um recorrente ponto de discórdia devido à intransigência dos Estados Unidos contra Putin nos últimos anos; mais um ponto digno de nota no momento em Berlim se prepara para assumir papel de comando do bloco de 27 nações e da ONU: parece que o manual atlantista está apenas a aprimorar-se depois de ter concluído que as estratégias aplicadas até agora têm servido unicamente para aproximar a China e a Rússia.

Encher o barril de pólvora

À medida que o jogo de xadrez geopolítico se vai desenvolvendo no meio da convulsão económica global induzida pela pandemia, o verdadeiro objectivo de Israel como um dos pontos principais de todo o projecto atlantista poderá ser revelado ao mundo em breve.

Se a aproximação da União Europeia alcançar os objectivos pretendidos enunciados no discurso de Borrell e o Kremlin começar realmente a estabelecer laços mais estreitos com a Europa em vez da China, o equilíbrio poderá deslocar-se do eixo Estados Unidos-Israel, pelo menos transitoriamente. Mas também preparará o cenário no sentido do que Borrell – mesmo que apenas de passagem – expressou como sendo “a pressão para escolher o lado”.

A União Europeia é o maior parceiro comercial de Israel e o próprio chefe da diplomacia da UE sublinhou a importância de Bruxelas ter “o melhor relacionamento” com Telavive na altura em que vai avançar o governo de coligação entre Benjamin Netanyahu e Benny Gantz. A retórica de Borrell sobre o apoio à soberania palestiniana pode não passar de um simples engodo lançado aos membros europeus mais conscientes em relação à questão da Palestina, de modo a que a falada “disciplina colectiva” possa funcionar no rebanho e interromper quaisquer estímulos das relações sino-russas.

A posição norte-americana sobre Israel não deixa margem para equívocos: além dos subsídios escandalosos e contínuos de Washington ao Estado sionista, os Estados Unidos apoiam sem reservas os mais ambiciosos planos de anexação da Cisjordânia, em completa contradição com posições assumidas actualmente por alguns países europeus. 

Depois de resolvidas as questões dos corredores económicos e no caso de a Rússia embarcar no convite para servir de “Rota da Seda” dos atlantistas para a Ásia – sem contar com o “enorme potencial de investimento” da Rússia em “recursos naturais, pesca e turismo” – a China ficaria, sem dúvida, mais isolada e mais vulnerável a uma guerra da manufactura desencadeada pelos Estados Unidos e Israel através dos outros países asiáticos e que a União Europeia – naquele momento – não deixaria de apoiar.

Há que ter em conta neste processo, contudo, que os movimentos no xadrez internacional não se desenvolvem na sequência de simples declarações de intenções que não têm em conta muitos dos reais factores em jogo; declarações essas proferidas, além disso, por um representante de uma entidade que pouco tem contado para mover as relações mundiais, como é a União Europeia. No entanto, fica a nota de que sendo as mensagens de Borrel autênticos recados da própria Alemanha existem indícios de que Berlim – por interesses próprios mas à cabeça dos 27 – pode estar a tentar conduzir uma relação menos conflituosa com a Rússia. Contrariando Trump e apostando na sua queda a curto prazo.


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