O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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ENTENDER CUBA E OS SEUS INIMIGOS

2021-07-23

Alexandre Weffort

A agressão norte-americana a Cuba é sobejamente conhecida (mas insuficientemente reconhecida), feita sem qualquer pejo moral ou intenção de maior ocultamento. O bloqueio, imposto a Cuba pelos Estados Unidos, desde 1960, é uma das condicionantes de maior peso a considerar na análise da sociedade cubana e dos eventos últimos.

Um documento (datado de 1998 e hoje de acesso público) publicado pela “National Security Research Division”' da RAND Corporation, instituição de pesquisa ligada aos meios militares norte-americanos, coloca como único objectivo a mudança de regime, ou seja, o abandono da via socialista seguida por Cuba, estabelecendo uma metodologia para alcançar aquele propósito.

A abordagem é de âmbito sistémico, tendo como propósito a promoção da mudança (eufemisticamente apelidada de “reforma”) do sistema socialista, com vista a um retorno ao capitalismo. São consideradas três categorias analíticas: pré-condições estruturais, aceleradores e liderança. Citando:

Pré-condições estruturais consistem em pelo menos quatro elementos: um período prolongado de declínio económico; decadência social; ampliando o fosso tecnológico com os concorrentes e; aumentando os fluxos de informação. Aceleradores incluem o seguinte: choques externos imprevistos; avanços tecnológicos que ameaçam o poder do regime, e; sinais de fraqueza do regime (que vão desde distúrbios populares, aumento de actores da sociedade civil ou críticas abertas de dentro, combinadas com uma resposta fraca do regime a tais eventos) (1).

O elemento-chave apontado pela RAND para o desencadear de um processo de mudança política foi sempre colocado na questão da liderança carismática de Fidel Castro.

Deve-se reter um conceito: “choques externos imprevistos” e, na tipificação deste, uma referência ao fim do embargo dos EUA e, depois de incentivar uma maior abertura da economia cubana em relação a mecanismos de mercado em moldes capitalistas, o afirmar de uma nova linha-dura por parte do presidente norte-americano (como, aliás, aconteceu com a administração de Trump), com a criação de perturbações ao processo encetado (frustrando expectativas criadas), a "actos provocatórios da comunidade exilada" (nomeadamente, em Miami) ou a "renovado isolamento internacional" (como aconteceu em relação ao Brasil com as provocações de Bolsonaro, levando à retirada de Cuba do programa "mais médicos").

As condições do bloqueio, agravadas por Donald Trump, mantiveram-se nos tempos de pandemia da Covid-19, e continuam sob a administração J. Biden, prejudicando a aquisição de suprimentos vários, inclusivamente, seringas para a vacinação.

O descontentamento

É nestas condições que vimos emergir a manifestação de descontentamento social (na sequência da crise energética, decorrente do bloqueio norte-americano, e da crise económica pela contracção abrupta do turismo, decorrente da pandemia que a todos assola), prontamente apoiada em recursos poderosos de manipulação de informação nas redes sociais. E uma circunstância explica o momento: a necessidade, por parte da administração norte-americana, de atenuar o impacto político da sua derrota na ONU; no dia 7 de julho de 2021, a Assembleia Geral das Nações Unidas voltou a exigir o fim do embargo norte-americano a Cuba, aprovando uma resolução à qual apenas os próprios EUA, Brasil e Israel se opuseram (os que se abstiveram foram Colômbia e Ucrânia).

Reza a notícia: “Depois de um ano de pausa devido à pandemia de covid-19, Cuba trouxe mais uma vez às Nações Unidas a sua habitual denúncia do embargo, que desde 1992 é aprovada anualmente com apoio maioritário da comunidade internacional» (2). Ou seja, por mais de 30 vezes, consecutivamente, a comunidade internacional condena o bloqueio imposto pelos EUA a Cuba. 

Mesmo assim, vemos em alguma imprensa (por jornalistas que deviam ter um mínimo sentido de deontologia profissional) a atitude negacionista confrangedora. Em estilo pseudojornalístico já característico, a natureza ideológica do bloqueio norte-americano é regurgitada pelo pequeno escrivão local: “Cuba volta a provar que o comunismo só leva à miséria e à ditadura. Bem podem ter médicos extraordinários que até esses passam fome com um sistema económico que vai contra a natureza humana” (3).

Que o autor das linhas citadas não tenha entendido a enormidade amoral da conjugação que produziu ao referir a natureza extraordinária dos médicos cubanos, com a fome que cegamente atribui ao sistema social que promove, desde 1960, a formação desses mesmos médicos (e dizê-lo num país como Portugal, que se debate com a falta de médicos no SNS), ignorando as razões da comunidade internacional em condenar (mais uma vez) o bloqueio norte-americano, só se compreende no quadro de uma total ausência de capacidade analítica ou de uma total ausência de ética.

Não se espera que o exemplo das “Brigadas Médicas Cubanas Henry Reeve, organização de médicos especializados em situação de extrema pobreza, desastres e epidemias graves, que, através de seu compromisso humanitário, social e ético, desenvolveu acções na área da saúde em diversos países, com foco na população mais necessitada dos quatro continentes” (4) colha algo na consciência de quem se encontra gostosamente intoxicado. Mas é necessário não silenciar.

A última condição estabelecida na metodologia explanada pela RAND (aumento de actores da sociedade civil ou críticas abertas de dentro, combinadas com uma resposta fraca do regime a tais eventos) não se cumpriu: a resposta aos acontecimentos foi forte, não apenas nas manifestações de rua, mas no debate e na busca de resposta aos problemas reais, como refere o presidente cubano Díaz-Canel:

“Vivemos nestes dias de ódio transbordante nas redes sociais, não tão redes ‘sociais’, que têm sido a companhia permanente de pais e filhos nestes longos meses de pandemia, a ponto de muitos passarem mais tempo ligados à rede que conectados à família; aquela família que, com a unidade, pode ser invulnerável perante tudo o que a ameaça. Uma mãe disse-me ontem que a sua filha adolescente perguntou, com lágrimas nos olhos, se era Cuba, quando viu as imagens dos actos de violência que algumas das suas amigas compartilharam no Facebook. Os donos dessas redes, os ditadores dos seus algoritmos, como bem denuncia um documentário recente [6], abriram ao ódio, sem o menor controlo ético, as comportas das suas poderosas plataformas”. 


(1) RAND (1998), "Cuba and Lessons from Other Communist Transitions. A Workshop Report", Washington, D.C., consultado na internet.

(2) Em https://www.dn.pt/internacional/onu-pede-fim-de-embargo-a-cuba-com-oposicao-de-eua-e-de-israel-13868225.html

(3)  Em https://observador.pt/opiniao/autor/lrosa/

(4) Em https://brigadasmedcuba.com/

(5) Em http://www.granma.cu/discursos-de-diaz-canel/2021-07-18/diaz-canel-cuba-es-de-todos

[6] Poderá referir-se ao documentário intitulado “The War on Cuba”, da autoria de Oliver Stone, acessível em https://www.youtube.com/watch?v=z1mknIkBGUA


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