NÃO FOI APENAS BOLSONARO

2020-05-09
Marcelo Zero, Brasília; edição O Lado Oculto
Que o Brasil se tornou um pária mundial, já ninguém duvida.
Venho escrevendo sobre este processo há anos, mas agora parece que tal avaliação, após o brilhante desempenho do governo Bolsonaro na pandemia do COVID-19, se tornou praticamente unânime. Unanimidade inteligente, acrescente-se.
Mas como se deu esse processo lamentável de transformação do cisne do soft power multilateralista no patinho feio de uma total subserviência unilateralista?
Não foi do dia para a noite. Não foi apenas Bolsonaro.
A chamada política externa activa e altiva foi a que melhor se coadunou com os princípios constitucionais que regem a política externa brasileira.
Nenhuma outra política investiu tanto na soberania, na integração dos povos da América Latina, na solução pacífica dos conflitos, na igualdade entre os Estados, na autodeterminação dos povos, na defesa da paz etc. Nenhuma outra política se comprometeu tanto com o multilateralismo e com a busca activa e independente de novos espaços para a afirmação dos interesses nacionais no cenário mundial.
Foi essa política que fortaleceu o Mercosul, que contribuiu para criar a Unasul e a Celac, que reaproximou o Brasil do Médio Oriente e de África, que ajudou a articular os BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), que deu uma contribuição decisiva para gerar o G20, que conseguiu concertar os interesses dos países em desenvolvimento na Organização Mundial de Comércio (OMC) etc. etc.
Também foi essa a política externa que teve mais êxito na história recente do país. Nenhuma outra política aumentou de tal maneira o protagonismo internacional do país. Nenhuma outra política deu tanto prestígio ao Brasil. Lula, o monoglota, fez ouvir a voz do país em todos os idiomas. Não havia fórum mundial em que o Brasil não tivesse um protagonismo de primeira grandeza. Celso Amorim, com toda justiça, chegou a ser apontado como o melhor chanceler do mundo.
Ademais, tal política também produziu resultados comerciais e económicos de peso. As exportações aumentaram de cerca de 60 mil milhões de dólares para cerca de 240 mil milhões em poucos anos e os saldos que o comércio externo produziu foram de fundamental importância para a superação da grande vulnerabilidade externa pretérita da economia brasileira. O Brasil eliminou a dívida externa e tornou-se credor do FMI.
Ainda hoje, as reservas internacionais que foram acumuladas naquele período constituem a nossa tábua de salvação no meio da pior crise das últimas décadas. Facto.
O pária e o anão
Contudo, essa política externa bem-sucedida sempre foi atacada pelas oligarquias brasileiras.
As nossas classes dominantes historicamente viram com desconfiança, cepticismo ou mesmo franca hostilidade o Mercosul e a aposta na integração regional, a articulação dos interesses dos países em desenvolvimento nos fóruns mundiais, a aproximação ao Médio Oriente e a África, a articulação dos grandes países emergentes no BRICS etc. Classificavam essas acções independentes de “terceiro mundismo”, política externa “ideológica” etc. Não havia um dia sequer em que a política independente do Brasil não fosse duramente criticada pelos que hoje se espantam com a extrema dependência proposta por Bolsonaro.
Elas sempre preferiram uma política externa mais alinhada com os Estados Unidos e aliados e a circunscrição do Brasil na geopolítica dessas nações. Também uma política externa mais alinhada com o Consenso de Washington e com os imperativos do capital financeiro internacional. Facto histórico.
Pois bem, foi após o golpe de Estado de 2016 que a política externa brasileira começou a adquirir as características agora plenamente conformadas na terraplanista e caricata gestão Bolsonaro.
Apenas chegado ao poder, Temer passou a desinvestir no Mercosul e na integração regional e a empenhar-se em objetivos contrários aos interesses do Brasil e favoráveis à geopolítica norte-americana, como a desestabilização da Venezuela, por exemplo.
Também na primeira gestão golpista iniciou-se um processo de revisão da aproximação do Brasil a África e da vertente Sul-Sul da nossa política externa, muitas vezes utilizando como desculpa a necessidade de fechar embaixadas e fazer “economias”.
Da mesma forma, naquela época começou a ocorrer um desinvestimento no BRICS e na articulação dos interesses dos países emergentes e em desenvolvimento nos fóruns mundiais. Os compromissos do Brasil com o multilateralismo e com a cooperação Sul-Sul começaram a ser muito afectados.
Em sentido contrário, o Brasil do golpe passou a apostar no alinhamento dependente em relação aos EUA. Data também dessa época o enquadramento da política defesa do Brasil na geoestratégia dos EUA. Assim, foi no governo Temer que foram convidadas forças norte-americanas para participarem em exercícios militares na Amazónia, que se renegociou o acordo de Alcântara etc.
Como consequência, já no governo Temer o Brasil viu seu protagonismo regional e mundial regredir assustadoramente.
Se Bolsonaro é um pária mundial, Temer já era um anão diplomático.
O capitão e o seu chanceler
Claro está que a irracionalidade e o terraplanismo ideológico de Bolsonaro/Araújo (chanceler, ministro dos Negócios Estrangeiros) acentuaram grosseiramente aquela nova opção por uma política externa dependente da geopolítica dos EUA e aliados. Além disso, Bolsonaro introduziu uma nova e extrema relação de dependência, que é o alinhamento com uma força política específica dos Estados Unidos, o “trumpismo”. No mesmo diapasão, Bolsonaro/Araújo empenharam-se em regressões antes inimagináveis na política externa brasileira, como a relativa às questões ambientais e aos direitos humanos fundamentais.
Também seriam inimagináveis, em épocas não tão distanciadas do Iluminismo, agressões ideológicas e gratuitas a importantes parceiros do Brasil, como China, Alemanha, França, Noruega etc.
Não pode dizer-se, porém, que os retrocessos na anteriormente bem-sucedida política externa do Brasil e no seu protagonismo internacional foram iniciados no governo desastroso do capitão.
Na realidade, este processo começou por iniciativa das oligarquias que deram o golpe de Estado de 2016 e que posteriormente apoiaram a ascensão de Bolsonaro ao poder.
O capitão e o seu singular chanceler, que afirma estar em contacto com Deus, perderam, no entanto, todo o contacto com a racionalidade, com o bom senso e com o interesse nacional, o que transformou um dano reversível numa catástrofe monumental, que tende a produzir danos profundos a longo prazo ao Brasil.
É bom ver que, hoje, muitos críticos da política externa activa e altiva e apoiantes do golpe e do próprio Bolsonaro percebem finalmente a extensão do dano causado ao país por políticas externa desligadas do interesse nacional e da soberania.
Seria melhor, entretanto, que todos reconhecessem as suas responsabilidades históricas nesse processo.
Não foi apenas Bolsonaro.