OS SEGREDOS DO TERROR DE WASHINGTON CONTRA O IRAQUE
2020-01-12
Um discurso do primeiro ministro do Iraque no Parlamento, que os Estados Unidos tentaram silenciar, revelou que as manifestações das últimas semanas no país e o assassínio do general Soleimani estão interligadas e foram motivadas, em grande parte, pela assinatura de um acordo económico mutuamente vantajoso entre Bagdade e a China. Um acordo que pôs fim à chantagem norte-americana de só aceitar reconstruir infraestruturas no país recebendo metade das receitas do petróleo iraquiano. Trump exigiu ao governo que rescindisse o acordo; o primeiro-ministro rejeitou. A partir daí passou a valer tudo, incluindo assassínios e ameaças de morte, como a seguir se revela.
Federico Pieraccini, Strategic Culture/O Lado Oculto
Pouco mais de uma semana depois do assassínio do general Soleimani começam a surgir novas e importantes informações a partir de um discurso proferido pelo primeiro-ministro do Iraque, Adel Abdul Mahdi. A história por detrás da morte do general iraniano parece ser muito mais profunda do que os relatos divulgados até agora, envolvendo a Arábia Saudita, a China e também o papel do dólar norte-americano como moeda de reserva global.
Mahdi revelou pormenores dos seus contactos com Trump nas semanas que antecederam o assassínio de Soleimani durante um discurso efectuado perante o Parlamento iraquiano. E tentou aproveitar a ocasião para explicar em directo na televisão como Washington o vinha ameaçando, e também a membros do Parlamento, para os obrigar a seguir as orientações norte-americanas. As ameaças incluíram até a organização de provocações de “bandeira falsa” recorrendo a atiradores que dispararam simultaneamente contra manifestantes e membros das forças de segurança com o objectivo de inflamar ainda mais a situação nas ruas. Os procedimentos fazem lembrar o modus operandi das situações no Cairo em 2009, na Líbia em 2011 e na Praça Maidan, em Kiev, em 2014. A finalidade destas acções era a de lançar o caos no Iraque.
Um acordo com a China
Eis a reconstrução da história
Mohammed al-Halbousi, dirigente sunita que preside ao Parlamento (Conselho de Representantes) do Iraque, participou na sessão parlamentar, apesar de praticamente mais nenhum dos membros sunitas ter estado presente. Isto aconteceu porque os norte-americanos descobriram que al-Mahdi tinha decidido revelar segredos sensíveis na reunião e recorreram a al-Halbousi para tentar evitar que isso acontecesse.
Al-Halbousi interrompeu o primeiro-ministro logo no início do discurso e pediu a suspensão da transmissão televisiva directa da sessão parlamentar. Depois disso, o presidente e outros membros do Parlamento sentaram-se junto ao chefe do governo, falando então abertamente mas sem transmissão. O que se segue é a reprodução do que foi debatido na sessão que não foi transmitida.
Abdul Mahdi não escondeu a sua revolta com a maneira como os norte-americanos arruinaram o país e agora se recusam a concluir projectos de infraestruturas e a rede eléctrica, a menos que lhes sejam garantidos 50% das receitas de petróleo – o que o chefe do governo rejeitou.
Estas são as palavras proferidas por Mahdi no Parlamento:
Foi por isso que visitei a China, onde assinei um importante acordo para conseguir essas construções. Ao regressar, Trump ligou-me a exigir que eu cancelasse o contrato. Como recusei, ele ameaçou desencadear enormes manifestações para acabar com a minha liderança.
Essas grandes manifestações materializaram-se e Trump voltou então a telefonar para ameaçar que se eu não cumprisse as suas exigências iria instalar atiradores da marinha em prédios altos para alvejar manifestantes e membros das forças de segurança, pressionando-me ainda mais.
Voltei a recusar e entreguei a minha demissão. Até hoje, os norte-americanos insistem na rescisão dos nossos contratos com os chineses.
Depois disso, quando o nosso ministro da Defesa declarou publicamente que uma “terceira parte” estava a alvejar tanto os manifestantes como as forças de segurança (tal como Trump tinha ameaçado) recebi uma nova chamada de Trump ameaçando matar-me e ao ministro da Defesa se continuássemos a falar da existência desse “terceiro” elemento nas manifestações.
Eu deveria encontrar Soleimani no final da manhã do dia em que foi morto. Vinha entregar uma mensagem de resposta do Irão a uma mensagem dos sauditas que tínhamos feito chegar aos iranianos.
Podemos então supor, também pela reacção da Arábia Saudita, que algum tipo de negociação estava a acontecer entre Teerão e Riade:
A declaração do Reino Saudita sobre os acontecimentos no Iraque salienta a importância que dá à redução dos conflitos para salvar os países da região e os seus povos dos riscos de qualquer escalada.
Acima de tudo, a família real saudita estava interessada em fazer passar a mensagem de que não fora informada pelos Estados Unidos da operação contra Soleimani:
O Reino da Arábia Saudita não foi consultado sobre a acção dos Estados Unidos. À luz dos rápidos desenvolvimentos, o Reino sublinha a importância de tomar medidas para se proteger de todos os actos que possam conduzir à escalada, com graves consequências.
E para destacar a sua posição contrária à guerra, Mohammed bin Salman, herdeiro do trono saudita, enviou uma delegação aos Estados Unidos. Liz Sly, chefe da dependência do Washington Post em Beirute, escreveu no Twitter:
A Arábia Saudita enviou uma delegação a Washington pedindo moderação nas acções contra o Irão em nome dos países do Golfo. A mensagem será: “Por favor, poupem-nos as dores de passar por outra guerra”.
Tentar evitar o caos
O que surge claramente é que o êxito da operação terrorista contra Soleimani nada teve a ver com a recolha de informações dos Estados Unidos ou de Israel. Toda a gente sabia que Soleimani estava a caminho de Bagdade numa missão diplomática decorrente dos esforços do Iraque para mediar uma solução para a crise regional envolvendo o Irão e a Arábia Saudita.
Ao que consta, sauditas, iraquianos e iranianos estão a tentar evitar um conflito regional interligando Síria, Iraque e Iémen. A reacção de Riade à operação norte-americana contra Soleimani não revela qualquer satisfação e não suscitou celebração pública. O Qatar, apesar de estar em confronto com a Arábia Saudita em muitos assuntos, expressou solidariedade com Teerão e organizou uma reunião a alto nível com Mohammad Javad Zarif, ministro dos Negócios Estrangeiros do Irão. Até a Turquia e o Egipto recorreram a linguagem moderada para comentar o assunto.
Estas posições podem reflectir receio em relação a eventuais medidas de retaliação do Irão. O Qatar, país de onde descolou o drone que matou Soleimani, fica a poucos passos do Irão, do outro lado do Estreito de Ormuz. Riade e Telavive, inimigos regionais de Teerão, sabem muito bem que um conflito militar com o Irão poderia significar o fim da família real saudita.
O desespero e o petrodólar
As palavras do primeiro-ministro iraquiano relativas a acordos políticos e energéticos na região começam a dar a imagem de uns Estados Unidos desesperados, atacando um mundo que está a virar as costas a uma ordem unipolar na direcção de uma emergência multipolar.
Os Estados Unidos consideram-se actualmente exportadores líquidos de energia como resultado da revolução do petróleo de xisto; afirmam, por isso, que já não precisam de importar petróleo do Médio Oriente. Isso não significa, porém, a admissão de que o petróleo possa ser negociado em qualquer outra moeda que não seja o dólar.
O petrodólar é a garantia de que o dólar dos Estados Unidos mantém o seu estatuto como moeda de reserva global, o que permite ao país uma posição monopolista da qual extrai enormes vantagens da situação de hegemonia regional.
Essa posição privilegiada de possuir uma moeda que funciona como reserva global garante, por seu lado, que os Estados Unidos possam financiar facilmente a sua máquina de guerra, em virtude do facto de grande parte do mundo comprar os seus títulos do tesouro - que simplesmente podem sair do nada. Ameaçar estes confortáveis arranjos é ameaçar o poder global de Washington.
Apesar disso, a tendência geopolítica e económica desenvolve-se inexoravelmente rumo a uma ordem mundial multipolar, na qual a China desempenhará cada vez mais um papel de liderança, especialmente no Médio Oriente e na América do Sul.
Venezuela, Rússia, Irão, Iraque, Qatar e Arábia Saudita possuem, em conjunto, a esmagadora maioria de reservas de petróleo e gás do mundo. Os três primeiros têm excelentes relações com Pequim e apostam no campo multipolar, uma situação que a China e a Rússia desejam consolidar ainda mais, de modo a garantir a futura afirmação de um supercontinente Eurásia sem guerras nem conflitos.
A Arábia Saudita, por outro lado, alinha com os Estados Unidos mas poderá movimentar-se em direcção ao campo sino-russo, tanto militarmente como em termos de energia. O mesmo processo está a acontecer no Qatar e no Iraque, devido aos numerosos erros estratégicos dos Estados Unidos na região, começando no Iraque em 2003, depois na Líbia em 2011, na Síria e no Iémen nos últimos anos.
Sectores da nova Rota da Seda
O acordo entre o Iraque e a China é um excelente exemplo de como Pequim pretende usar a troika Iraque-Irão-Síria para ganhar influência no Médio Oriente e ligá-la à Iniciativa Cintura e Estrada (ICE) ou Nova Rota da Seda.
Embora Doha e Riade sejam os primeiros a sofrer economicamente com o acordo entre Bagdade e Pequim, o poder da economia chinesa neste momento é de tal ordem, graças à sua política de cooperação mutuamente vantajosa, que existe espaço para todos.
A Arábia Saudita fornece à China a maior parte do seu petróleo e o Qatar, juntamente com a Federação Russa, abastecem-na com a maior parte de gás natural liquefeito (GNL), o que está de acordo com a visão do presidente Xi Jinping para 2030 em termos de reduzir significativamente as emissões poluentes.
Os Estados Unidos estão ausentes deste cenário, com pouca capacidade para influenciar acontecimentos ou oferecer alternativas económicas atraentes.
Washington gostaria de travar qualquer integração da Eurásia desencadeando o caos e a destruição na região; e matar Soleimani serviu esse objectivo. Os Estados Unidos não conseguem admitir a ideia de que o dólar pode vir a perder o seu estatuto de moeda global de reserva. Trump está envolvido numa aposta desesperada que pode ter consequências desastrosas.
No pior dos casos, a região pode mergulhar numa guerra devastadora envolvendo vários países. Refinarias de petróleo destruídas em toda a região, um quarto do movimento mundial de petróleo bloqueado, os preços do barril a disparar para 200 a 300 dólares, dezenas de países em crise financeira com impacto global traduzem uma situação assustadora. A culpa seria colocada directamente aos pés de Trump, liquidando as suas hipóteses de reeleição.
Para manter a maior parte dos países sob o seu controlo, Washington recorre ao terrorismo, a mentiras e ameaças de destruição de amigos e inimigos.
Trump foi evidentemente convencido por alguém de que os Estados Unidos podem prescindir dos hidrocarbonetos do Médio Oriente, dispensar aliados na região e também de que ninguém ousaria vender petróleo noutra moeda que não seja o dólar norte-americano.
O assassínio de Soleimani resulta da convergência dos interesses dos Estados Unidos e Israel. Sem outra maneira de interromper a integração da Eurásia, Washington tenta arrastar a região para o caos visando países como o Irão, o Iraque e a Síria, que são centrais nesse projecto. Embora Israel nunca tenha tido a capacidade ou a audácia de realizar esse crime, a importância dos lobbies israelitas para o êxito eleitoral de Trump terá influenciado a sua decisão, sobretudo em ano de eleições.
Trump acredita que o ataque de drone pode resolver todos os seus problemas, assustando opositores, ganhando o apoio de eleitores (equiparando o assassínio de Soleimani ao de Bin Laden) e enviando mensagens aos países árabes sobre o perigo em que incorrem estabelecendo laços com a China.
O assassínio de Soleimani é uma tentativa norte-americana de contrariar a sua constante perda de influência na região. A acção iraquiana de mediar uma pacificação entre o Irão e a Arábia Saudita foi prejudicada pela determinação dos Estados Unidos e de Israel em impedirem a paz na região e, pelo contrário, aumentarem o caos e a instabilidade.
Washington não alcançou o seu estatuto hegemónico cultivando a diplomacia e o diálogo sereno; Trump não tem intenção de se afastar dessa abordagem.
Os amigos e inimigos de Trump têm de reconhecer essa realidade e desenvolver contramedidas que sejam capazes de conter essa loucura.