O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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VÍRUS E SANÇÕES COMO ARMAS DE GUERRA

2020-04-21

Daniel Lazare, Strategic Culture/O Lado Oculto

Imaginemos que os países poriam de lado as suas diferenças para montar uma campanha internacional eficaz contra a pandemia de COVID-19. Que deixassem de se agredir para combater o vírus. Que em vez de manterem porta-aviões navegando pelo mundo, em demonstrações de força, competiriam para apurar qual deles poderia fornecer mais máscaras faciais e ventiladores.

Não acham que isto seria terrível? Um sinal de uma nova e perigosa ameaça?

É evidente que seria, se acaso fôssemos do tipo de paranóico furioso que projecta a sua psicose nos outros. Sendo, porém, pessoas absolutamente normais consideraríamos que atitudes desse tipo demonstrariam a capacidade das nações em deixarem de lado as suas diferenças para se concentrarem em atingir metas mutuamente benéficas. Afinal, a contenção da doença num país é a melhor maneira de garantir que não se transmita a outros, que não se torne prejudicial a outras pessoas. Ajudando-nos a nós próprios também ajudamos os outros.

De atrocidade em atrocidade

Infelizmente, Donald Trump não faz parte deste campo iluminado. Cortar o financiamento à Organização Mundial de Saúde (OMS) é apenas a mais recente das suas atrocidades. Em vez de combater a doença, Trump e a sua equipa aparentemente estão a fazer tudo o que estiver ao seu alcance para disseminá-la através de:

montagem de uma estratégia de contenção inconsistente que permitiu ao vírus espalhar-se como fogo em floresta;

bloqueio da ajuda às nações que também são directamente atingidas; 

tentativas para impedir países de fornecer assistência e detonar os destinatários por aceitá-la;

ameaças de realização de operações militares que espalharão ainda mais o vírus.

Embora representem apenas 4,2% da população mundial, os Estados Unidos têm 30% do total dos casos de COVID-19, devido à desastrosa resposta doméstica de Trump – que torna a situação interna sete vezes mais grave que a média global. E agora, com a ajuda de aliados europeus e dos superfalcões dos media corporativos, o seu governo está a tentar arrastar outros países nesta deriva, promovendo políticas belicistas que prejudicam os esforços internacionais.

Deste modo, Washington agravou as sanções económicas contra o Irão, apesar do dramático e sincero apelo do ministro iraniano dos Negócios Estrangeiros, Javad Zarif, alegando que as restrições “estão a tornar praticamente impossível a compra de medicamentos e equipamentos médicos”. Num requinte de crueldade, os Estados Unidos bloquearam um empréstimo de emergência de cinco mil milhões de dólares do FMI para ajudar o Irão a combater o vírus, sob o argumento de que as autoridades de Teerão “têm uma longa história de desviar para os seus bolsos e os dos seus agentes terroristas os fundos alocados com objectivos humanitários”.

Em meados de Março, o secretário de Estado, Michael Pompeo, e o conselheiro de segurança nacional, Robert C. O’Brien, teriam apresentado uma proposta inquietante para realizar uma ofensiva militar contra milícias pró-iranianas no Iraque susceptível de garantir o caos e a turbulência no país. Com a liderança iraniana preocupada com a crise de saúde no país, a oportunidade seria excelente mesmo que o vírus esteja a espalhar-se pelos mais de cinco mil efectivos militares norte-americanos estacionados no Iraque e através dos outros mais de 40 mil distribuídos pelo Golfo Árabe-Pérsico.

Naturalmente, essas tropas continuarão a espalhar o vírus, agora a amigos e familiares, durante visitas a casa – mais um tiro no pé, como os Estados Unidos fazem repetidamente.

A Venezuela e Cuba, como sempre

Pompeo também se ofereceu para suspender as sanções contra a Venezuela se o presidente Nicolás Maduro concordasse em renunciar. Mas como Maduro disse não ao que seria uma ultrajante violação da soberania nacional por Washington, as sanções continuam apesar de o coronavírus sobrecarregar o sistema de saúde da Venezuela, já de si tão afectado pelo bloqueio.

Depois há a questão de impedir que alguns países ajudem outros. Uma das vítimas é, escusado será dizê-lo, a República de Cuba. Depois de o governo Trump ter atacado verbalmente 14 países, entre eles alguns aliados, por receberem ajuda de equipas médicas cubanas, o embaixador de Cuba no Canadá twittou uma resposta assertiva:

“O senhor devia envergonhar-se. Em vez de atacar Cuba e os seus médicos comprometidos o senhor deveria preocupar-se com os milhares de norte-americanos doentes, que estão a sofrer com a negligência escandalosa do seu governo e com a incapacidade de um sistema de saúde incapaz de cuidar deles”.

Uma campanha néscia

Por outro lado, os funcionários do governo dos Estados Unidos nem precisaram de se pronunciar quando a Rússia enviou ajuda para Itália. Foram 19 os membros do Parlamento Europeu – a maioria deles conservadores pró-norte-americanos do antigo bloco soviético – que fizeram isso por eles assinando uma carta devastadora denunciando o apoio como um truque tipicamente russo com o objectivo de convencer a União Europeia a suspender as sanções contra a Rússia. Na carta lê-se que “uma imensa campanha de desinformação russa visa desacreditar a UE e dividir por dentro a nossa União, questionando a nossa solidariedade e a capacidade para enfrentarmos juntos a crise”. E acrescenta: “Essa desinformação e notícias falsas não podem ser ignoradas e deixadas sem resposta apropriada por parte da União Europeia”.

Além de os países europeus se esfaquearem nas costas entre si por se recusarem a partilhar ajuda ainda pretendem esfaquear os outros que se limitam a preencher os espaços deixados abertos por essa falta de solidariedade.

Além disso, destacaram-se vários meios de comunicação corporativos que, como sempre, rivalizam entre si para mostrar qual é mais anti-russo ou anti-chinês, quaisquer que sejam as consequências. O Washington Post condenou a Rússia por enviar um avião Antonov-124 para os Estados Unidos transportando produtos médicos e, não contente com isso, ainda gozou com Trump por ter qualificado o gesto como “muito bom”. E correu a citar um ex-general do Exército dos Estados Unidos qualificando a oferta como “um embuste”; além de um analista da Carnegie Endowment for International Peace que, no Wilson Center, a considerou “louca” e própria de “especialistas de desinformação”, pelo que era “incompreensível” como Trump podia aceitá-la.

A revista Foreign Policy, uma emanação do Washington Post, foi ainda mais longe. Num artigo febril intitulado “Cuidado com os maus samaritanos”, a direitista Elisabeth Braw, do Royal United Services Institute, acusou a Rússia e a China de “usarem a assistência de maneira ostensiva para obterem vantagens geopolíticas” e comparou a presença russa em Itália com a série norueguesa “Ocupados”, uma produção com espírito de guerra fria sobre as relações entre a Noruega e a Rússia.

Estas atitudes em série mais não fazem do que replicar o comportamento da Polónia ao fechar o espaço aéreo aos aviões russos que transportaram ajuda para Itália, obrigando-os a percorrer mais dois mil quilómetros para desembarcarem a sua solidariedade.

A ajuda russa “danificará a NATO a longo prazo”, alertou ainda Elisabeth Braw. Quanto à China, acrescentou, está claramente a utilizar a assistência médica “como uma oportunidade de relações públicas” e como um meio “para vender bens e afastar países da solidariedade da União Europeia e da NATO”.

Nem mais: atacar outros países para oferecerem ajuda e depois voltar a atacá-los por provocarem tensões internacionais. Não é de surpreender, portanto, que a China, a Rússia, Cuba e Venezuela estejam entre os oito países que apelaram ao fim das sanções impostas pelos Estados Unidos alegando que impedem a luta contra a pandemia de COVID-19, enquanto o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, fez uma eloquente apelo a uma trégua global.

Segundo Guterres, “os mais vulneráveis – mulheres, crianças, pessoas com deficiência, refugiados e deslocados – pagam o preço mais elevado e também correm o risco de sofrer perdas devastadoras com o COVID-19. Não devemos esquecer”, acrescentou o secretário-geral da ONU, “que nos países mais devastados pela guerra os sistemas de saúde entraram em colapso. Profissionais de saúde, já em número reduzido, têm sido frequentemente atingidos. Os refugiados e outros deslocados por conflitos violentos são duplamente vulneráveis. A fúria do vírus ilustra a loucura da guerra”.

Tudo isto é verdade. Mas os responsáveis pela política externa dos Estados Unidos são demasiado insensíveis perante coisas tão sentimentais como a paz e a cooperação internacional. Em vez disso, estão mais empenhados em derrotar russos, cubanos, chineses, venezuelanos, iranianos. Para eles, a resposta adequada ao COVID-19 é, evidentemente, a de incentivar os conflitos internacionais que provocam a sua propagação.


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