O CORONAVÍRUS E O VÍRUS DO CAPITALISMO
2020-03-17
Claudio Katz*, America Latina en Movimiento/O Lado Oculto
A crise económica mundial aprofunda-se a um ritmo tão vertiginoso como a pandemia. A redução da taxa de crescimento e a travagem brusca do aparelho produtivo da China já ficaram para trás. Agora desmoronou-se o preço do petróleo, desabaram as bolsas e instalou-se o pânico no mundo financeiro.
Muitos sugerem que o desempenho aceitável da economia foi abruptamente alterado pelo coronavírus. Admitem também que a pandemia pode provocar o reinício de um colapso semelhante ao de 2008. Mas nessa ocasião tornaram-se imediatamente visíveis a culpa dos banqueiros, a ganância dos especuladores e os efeitos da desregulação neoliberal. Agora discutem-se apenas a origem e as consequências de um vírus. Como se a economia fosse mais um paciente afectado pelo terramoto sanitário.
Na realidade, o coronavírus detonou as fortes tensões dos mercados que já vinham de trás e os desequilíbrios acumulados pelo capitalismo contemporâneo. Acentuou uma desaceleração da economia que já tinha debilitado a Europa e saqueava os Estados Unidos.
O divórcio entre essa retracção e a continuada euforia das bolsas antecipava o estoiro da típica bolha que periodicamente enche e esvazia Wall Street. O coronavírus precipitou esse desmoronamento, que não corresponde a qualquer convalescença imprevista. Apenas repete a conhecida patologia da financeirização.
Ao contrário de 2008, a nova bolha não se localiza no endividamento das famílias ou na fragilidade dos bancos. Concentra-se nos passivos das grandes empresas (dívida corporativa) e nas obrigações de muitos Estados (dívida soberana). Além disso, existem sérias suspeitas sobre a saúde dos fundos de investimento, que aumentaram a preponderância na compra-venda de títulos.
A economia capitalista gera esses abalos e nenhuma vacina pode prevenir as convulsões suscitadas pela ambição do lucro. Mas a miséria, o desemprego e os sofrimentos populares que esses terramotos provocam ficaram agora diluídos no terror provocado pela pandemia.
A queda do petróleo
Também a queda do preço do petróleo antecipou o tsunami sanitário. Dois grandes produtores (Rússia e Arábia Saudita) e um jogador de peso (Estados Unidos) disputam a fixação do preço de referência do combustível. Essa rivalidade estilhaçou a organização que continha a desvalorização do crude (OPEP+10).
O excesso de produção que precipita essa baixa do preço do petróleo é outro desequilíbrio subjacente. O excedente de mercadorias – que se estende a outros recursos de matérias-primas – está na origem da grande batalha que opõe os Estados Unidos à China.
As duas causas principais da crise actual – financeirização e excesso de produção – afectam todas as empresas que acumularam títulos dos mercados ou se endividaram para gerir os excedentes que não se vendem. O coronavírus é totalmente alheio a esses desequilíbrios mas o seu aparecimento acendeu o rastilho de um arsenal saturado de mercadorias e dinheiro.
Capitalismo sem saúde
Vários especialistas destacam também a maneira como as transformações capitalistas das últimas quatro décadas incidem na dimensão da pandemia. Notam que as contaminações anteriores – separadas por interregnos prolongados – irrompem agora com maior frequência. Aconteceu com o SARS (2002-03), a gripe porcina H1N1 (2009), o MERS (2012), o ébola (2014-16), o zika (2015) e o dengue (2016).
É muito visível a ligação entre esses surtos e a urbanização. O confinamento das populações e a sua forçada proximidade provocam a disseminação dos germes. São igualmente evidentes os efeitos da globalização, que aumentou de forma exponencial o número de viajantes e a consequente expansão dos contágios a todos os recantos do planeta. A maneira como o coronavírus provocou em poucas semanas o colapso da aviação, do turismo e dos cruzeiros é um retrato contundente desse impacto.
O capitalismo globalizou de maneira vertiginosa muitas actividades lucrativas, sem estender as fronteiras dessa remodelação ao sistema sanitário. Pelo contrário, com as privatizações e os ajustamentos fiscais agravou-se a desprotecção em todos os países perante as doenças que se mundializam a velocidades invulgares.
Alguns estudiosos também recordam que a seguir ao SARS (Síndrome Respiratório Agudo Severo) foram desencadeados vários programas de investigação para conhecer e prevenir os novos vírus. Prevaleceram os interesses dos conglomerados farmacêuticos, que dão prioridade à venda dos medicamentos a doentes solventes. Um exemplo dramático desta primazia do lucro verificou-se nos Estados Unidos no começo da actual pandemia, onde os testes de detecção do coronavírus foram pagos. Esta falta de gratuitidade reduziu o conhecimento dos casos num momento decisivo para o diagnóstico.
Outros peritos sublinham o facto de se ter destruído o habitat de muitas espécies selvagens para forçar a industrialização de actividades agropecuárias. Esta devastação do meio ambiente criou condições para a mutação acelerada ou o fabrico de novos vírus.
A China foi o epicentro dessas mudanças. E em nenhum outro país convergiu de maneira tão vertiginosa a urbanização com a integração das cadeias globais de valor e a adopção de novas normas de alimentação.
Socorrer empresas, o velho guião
O coronavírus já recriou na nata do establishment o mesmo receio que invadiu todos os governos durante o colapso financeiro de 2008. Por isso repetem-se comportamentos e dá-se prioridade ao socorro das grandes empresas. Mas existem muitas dúvidas sobre a eficácia actual desse guião.
Com menores taxas de juros tenta travar-se o desmoronamento do nível de actividade. Mas o preço do dinheiro já se encontra num patamar que torna incerto o efeito de reactivação provocado pela baixa. A injecção massiva de capital e a redução de impostos provocam as mesmas dúvidas.
O dólar e os títulos do tesouro dos Estados Unidos converteram-se novamente no principal refúgio de capitais que procuram proteger-se da crise. Mas a principal potência é comandada actualmente por um presidente brutal, que utilizou esses recursos para o projecto imperial de restaurar a hegemonia norte-americana.
Salve-se quem puder
Devido a isso, ao contrário de 2008 prevalece agora uma total ausência de coordenação perante o colapso que sobrevoa a economia. A sintonia que se percebia no G20 foi substituída por decisões unilaterais adoptadas pelas potências. Impôs-se um princípio defensivo de salvação à custa do vizinho.
Não só os Estados Unidos definem medidas sem consultar a Europa (suspensão de voos) como os próprios países do velho continente actuam por conta própria, esquecendo-se de que pertencem a uma associação comum. Todas as consequências de uma globalização da economia – no velho quadro dos Estados nacionais – afloram no medo actual. Ninguém sabe como lidará o capitalismo com este cenário.
As terríveis consequências da crise para a economia latino-americana estão à vista. A queda dos preços das matérias-primas é complementada com massivas fugas de capitais e grandes desvalorizações das moedas no Brasil, no Chile e no México. O colapso de que sofre a Argentina começa a transformar-se no espelho dos sofrimentos de toda a região.
É evidente que o coronavírus golpeará os mais desfavorecidos e produzirá tragédias inimagináveis se chegar aos países com sistemas de saúde inexistentes, deteriorados ou demolidos. A estrutura hospitalar nas economias avançadas já se tornou periclitante devido ao elevado poder de contágio da pandemia e ao seu impacto forte sobre as pessoas mais velhas.
No início do coronavírus multiplicaram-se as interrogações sobre o comportamento dos diferentes governos. Houve fortes indícios de irresponsabilidade, ocultação de dados ou demoras na prevenção, tentando não afectar os negócios. Mas a drástica reacção posterior começa a aproximar-se das práticas de uma economia de guerra. Nesta viragem influiu o contágio sofrido por vários membros das elites de ministros, gestores e figuras do mundo do espectáculo.
Virose na comunicação
Também os meios de comunicação oscilam entre a ocultação dos problemas e o estímulo do terror colectivo. Alguns extremam esse medo para propagar sentimentos racistas, hostilizar a China ou denegrir os imigrantes. Mas todos carregam o coronavírus com as responsabilidades da crise, como se o capitalismo fosse alheio às convulsões em curso.
Os poderosos procuram bodes expiatórios para não assumirem responsabilidades pelos dramas que originam, potenciam ou mascaram. O coronavírus é o perigo do momento, mas o capitalismo é a doença duradoura da sociedade actual.
*Economista, investigador do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas da Argentina (CONICET), professor da Universidade de Buenos Aires