O ENIGMÁTICO “ACORDO DE PAZ” NO AFEGANISTÃO
2020-02-28
Pepe Escobar*, Asia Times/O Lado Oculto
Quase duas décadas depois da invasão e ocupação do Afeganistão a seguir ao 11 de Setembro e após uma guerra interminável que custou mais de mais de dois biliões (milhões de milhões) de dólares é difícil não haver nada de "histórico" num possível acordo de paz entre os Estados Unidos e os Talibã na cidade de Doha, no Qatar.
Devemos começar por destacar três pontos.
1- Os Talibã queriam a saída de todas as tropas norte-americanas. Washington recusou.
2- O possível acordo reduz apenas o número de efectivos norte-americanos de 13 mil para 8600. Este número era o que já existia antes do governo de Trump.
3- A redução só acontecerá dentro de ano e meio – assumindo-se o que tem vindo a ser descrito como uma trégua.
Para que não haja mal-entendidos, o vice-líder dos Talibã, Sirajuddin Haqqani, escreveu num artigo certamente lido pelas elites norte-americanas que existe uma linha vermelha: a retirada total dos Estados Unidos.
E Haqqani é inflexível: não há acordo de paz se os norte-americanos permanecerem.
Ainda assim existe um acordo. Como? É simples: entra em cena uma série de "anexos" secretos.
O principal negociador dos Estados Unidos, o aparentemente eterno Zalmay Khalilzad, um remanescente das eras Clinton e Bush, passou meses a codificar esses anexos – o que foi confirmado por uma fonte em Cabul actualmente fora do governo mas familiarizada com as negociações.
Vamos dividir esses anexos em quatro pontos.
1 - As forças antiterroristas dos EUA poderiam ficar. Mesmo que isso venha a ser aprovado pela chefia dos Talibã, será um anátema para as massas de combatentes do grupo.
2- Os Talibã têm de renunciar ao terrorismo e ao extremismo violento. É uma questão retórica, não constitui problema.
3- Haverá um esquema para verificar a chamada trégua, enquanto diferentes facções afegãs discutem o futuro, o que o Departamento de Estado norte-americano descreve como "negociações intra-afegãs". Culturalmente, como veremos mais adiante, os afegãos de diferentes origens étnicas terão sérias dificuldades em verificar os seus próprios conflitos.
4- A CIA teria permissão para fazer negócios em áreas controladas pelos Talibã. Esse é um anátema ainda mais sério. Todas as pessoas familiarizadas com o Afeganistão pós-11/9 sabem que o principal motivo para os negócios da CIA é o rasto de heroína que financia as operações obscuras da Agência de Langley.
Caso contrário, tudo sobre este acordo "histórico" permanece bastante vago.
Até o secretário da Defesa dos Estados Unidos, Mark Esper, foi forçado a admitir que a guerra no Afeganistão "ainda" está “num estado de impasse estratégico".
Quanto ao desastre financeiro estratégico, basta examinar o último relatório do SIGAR. SIGAR significa algo como uma Agência Geral Especial para Reconstrução do Afeganistão. De facto, no Afeganistão praticamente nada foi "reconstruído".
Nenhum acordo é real com o Irão de fora
A confusão "intra-afegã" começa com o facto de Ashraf Ghani ter sido declarado o vencedor das eleições presidenciais realizadas em Setembro do ano passado. Mas praticamente ninguém o reconhece como tal.
Os Talibã não dirigem a palavra a Ghani, mas apenas a algumas pessoas que fazem parte do governo em Cabul. E descrevem essas conversações, na melhor das hipóteses, como entre "afegãos comuns".
Todo os que estejam familiarizados com a estratégia talibã sabem que as tropas dos Estados Unidos/NATO nunca serão autorizadas a ficar. O que poderá acontecer é os Talibã permitirem que algum tipo de contingente de salvaguarda, por alguns meses e, em seguida, um destacamento muito pequeno permaneçam para proteger a embaixada norte-americana em Cabul.
Washington obviamente rejeitará essa possibilidade. A suposta "trégua" será rompida. Trump, pressionado pelo Pentágono, enviará mais tropas. E a espiral infernal estará de volta aos carris.
Outro grande buraco no esquema de acordo é o facto de os norte-americanos ignoraram completamente o Irão durante as negociações em Doha.
Isso é totalmente absurdo. Teerão é um parceiro estratégico essencial para o seu vizinho de Cabul. Além das milenares ligações históricas/culturais/sociais, há pelo menos 3,5 milhões de refugiados afegãos no Irão.
No pós-11/9, Teerão começou lenta, mas seguramente, a cultivar relações com os Talibã - porém não a um nível militar/armamentista, segundo diplomatas iranianos. Em Beirute, em Setembro passado, e depois em Nur-Sultan, em Novembro, recebi uma imagem clara de como estão as discussões sobre o tema Afeganistão.
A ligação russa com os Talibã passa por Teerão. Os líderes dos Talibã têm contactos frequentes com o Corpo dos Guardas da Revolução Islâmica. Só no ano passado a Rússia organizou duas conferências em Moscovo entre dirigentes políticos dos Talibã e os mujahideen afegãos. Os russos estavam empenhados em integrar os afegãos de etnia usbeque nas negociações. Ao mesmo tempo, alguns dirigentes dos Talibã encontraram-se com agentes do Serviço Federal de Segurança da Rússia (FSB) quatro vezes em Teerão, em segredo.
A essência de todas estas discussões foi "encontrar uma solução para os conflitos fora dos padrões ocidentais", segundo um diplomata iraniano. Os participantes procuraram algum tipo de federalismo: os Talibã com os mujahideen a administrar alguns vilayets (departamentos locais ou autárquicos).
A questão de fundo é que o Irão tem melhores ligações ao Afeganistão do que a Rússia e a China. E tudo isso funciona dentro do quadro mais amplo da Organização de Cooperação de Xangai (OCX). A parceria estratégica Rússia-China quer uma solução afegã originada dentro da OCX, organização da qual tanto o Irão como o Afeganistão são observadores. O Irão pode tornar-se um membro pleno da OCX no caso de regressar ao acordo nuclear, o Plano de Ação Conjunto Global (JCPOA), até Outubro - portanto, ainda não sujeito a sanções da ONU.
Todos estes actores querem as tropas norte-americanas fora do Afeganistão - para sempre. Portanto, a solução aponta sempre para uma federação descentralizada. Segundo um diplomata afegão, os Talibã parecem prontos a partilhar o poder com a Aliança do Norte. A chave do jogo é o Hezb-e-Islami (Partido Islâmico), onde Jome Khan Hamdard, um comandante aliado ao famoso mujahid Gulbudiin Hekmatyar, de Mazar-i-Sharif, e apoiado pela Arábia Saudita e o Paquistão, está muito interessado em reiniciar uma guerra civil.
Compreendendo o Pashtunistão
Aqui está um problema vindo do passado, revivendo o contexto da visita dos Talibã a Houston e mostrando como as coisas não mudaram muito desde a primeira administração Clinton. Trata-se, como sempre, da questão de os Talibã receberem a sua parte - na época relacionada com os negócios de um pipeline atravessando o Afeganistão; agora com a sua reafirmação no que pode ser descrito como Pashtunistão.
Nem todo o afegão de etnia pashtun é um talibã, mas a esmagadora maioria dos talibãs são pashtuns.
O establishment de Washington nunca fez os trabalhos de casa sobre como "conhecer o seu inimigo", neste caso procurando entender como os pashtuns, de grupos extremamente diferentes, estão ligados por um sistema comum de valores que estabelece a sua base étnica e as regras sociais fundamentais. Essa é a essência do seu código de conduta - o fascinante e complexo pashtunwali. Embora incorpore numerosos elementos islâmicos, o pashtunwali está em total contradição com a lei islâmica em muitos pontos.
O Islão introduziu elementos morais fundamentais na sociedade pashtun. Mas há também normas jurídicas, impostas por uma nobreza hereditária, que apoiam todo o conjunto e que têm origem nos turco-mongóis.
Os pashtuns - uma sociedade tribal - têm uma profunda aversão ao conceito ocidental de Estado. O poder central só pode esperar neutralizá-los com - para ser franco - subornos. É o que se passa com esta espécie de sistema de governo existente no Afeganistão. O que levanta a questão de quanto - e com o quê - os Estados Unidos estão a subornar agora os Talibã.
A vida política afegã, na prática, funciona com actores que são facções, sub-tribos, "coligações islâmicas" ou grupos regionais.
Desde 1996 e até 11 de Setembro de 2001 os Talibã incarnaram o retorno legítimo dos pashtuns como o elemento dominante no Afeganistão. Foi por isso que instituíram um emirado e não uma república, um sistema mais apropriado para uma comunidade muçulmana governada apenas pela legislação religiosa. A desconfiança em relação às cidades, particularmente Cabul, também expressa o sentimento da superioridade pashtun sobre outros grupos étnicos afegãos.
Os Talibã representam um processo de superação da identidade tribal e a afirmação do Pashtunistão. As castas dominantes norte-americanas nunca compreenderam esta dinâmica poderosa - e essa é uma das principais razões para a derrota dos Estados Unidos.
Corredor de Lápis Lazúli
O Afeganistão está no centro da nova estratégia norte-americana para a Ásia Central: "expandir e manter o apoio à estabilidade no Afeganistão" juntamente com a preocupação em "incentivar a conectividade entre a Ásia Central e o Afeganistão".
Na prática, o governo Trump quer que os cinco "istãos" da Ásia Central apostem em projectos de integração, como o projeto de eletricidade CASA-1000 e o corredor comercial Lápis Lazúli, que é uma reedição da Antiga Rota da Seda, ligando o Afeganistão ao Turquemenistão, Azerbaijão e Geórgia antes de cruzar o Mar Negro para a Turquia e depois para a União Europeia.
Mas a questão é que o corredor Lápis Lazúli deve integrar-se no Corredor Médio da Turquia, que faz parte das Novas Rota da Seda, ou Iniciativa Cintura e Estrada (ICE), juntamente com o Corredor Económico China-Paquistão Plus, também um sector da ICE. Pequim planeou essa integração antes de Washington.
O governo Trump está apenas a pôr em evidência o óbvio: um Afeganistão pacífico é essencial para o processo de integração.
O analista Andrew Korybko argumenta correctamente que “a Rússia e a China poderiam nesta altura avançar mais na construção do Anel Dourado entre eles, Paquistão, Irão e Turquia, 'abraçando' a Ásia Central com oportunidades potencialmente ilimitadas que superam em muito as que os Estados Unidos oferecem ao 'cercar' a região a partir de uma perspectiva estratégica norte-americana de soma zero e 'forçá-la'”.
O falecido cenário desejado por Zbigniew “Grande Tabuleiro” Brzezinski pode estar morto, mas a miríade de apostas norte-americanas para dividir e reinar impostas ao Heartland transformaram-se em guerra híbrida explicitamente dirigida contra China, Rússia e o Irão - os três principais nós da integração da Eurásia.
E isso significa que, no que diz respeito à realpolitik do Afeganistão, com ou sem acordo, os militares dos Estados Unidos não têm intenção de ir a lugar algum. Eles querem ficar - custe o que custar. O Afeganistão é uma base inestimável do Grande Médio Oriente para implantar técnicas de guerra híbrida.
Os pashtuns certamente estão a receber a mensagem dos principais membros da Organização de Cooperação de Xangai. A questão é como pretendem eles derrotar a Equipa Trump.
*Jornalista e correspondente de várias publicações internacionais