ATAQUE AOS AGRICULTORES DA ÍNDIA TEM O DEDO DO AGRONEGÓCIO GLOBAL
2021-03-01
F. William Engdahl, Global Research/Adaptação de O Lado Oculto
No próximo mês de Setembro as Nações Unidas organizam a chamada Cimeira dos Sistemas Alimentares. O objectivo declarado é o de reestruturar a agricultura mundial e a produção alimentar no contexto das metas de agricultura dita “sustentável” inseridas no projecto de globalização neoliberal designado oficialmente “Agenda 2030 da ONU”. As leis de desregulação da agricultura impostas recentemente na Índia pelo governo fascista de Narendra Modi integram-se no quadro dessa agenda e, como pode perceber-se pelo terramoto social que está a registar-se no país, nada disto augura algo de bom.
Na Índia os agricultores protestam em massa e ininterruptamente desde que o governo Modi fez aprovar no Parlamento três novas leis agrícolas em Setembro do ano passado. As medidas governamentais correspondem a acções globais promovidas pelo Fórum Económico Mundial (FEM, WEF) no âmbito da sua Nova Visão para a Agricultura (NVA), área sectorial do Great Reset ou Grande Reinício, movimento corporativo accionado pelo presidente do FEM, Klaus Schwab, e que ganhou alento com a “janela de oportunidade” aberta pela pandemia de Covid-19. Na verdade, o Great Reset funciona como o processo operacional para que se cumpra a “Agenda 2030 da ONU”.
Terapia de choque
Em Setembro de 2020, numa votação oral e apressada, em vez de uma votação formal devidamente registada e sem consulta prévia aos sindicatos e organizações de agricultores, o Parlamento indiano aprovou três leis do governo de Narendra Modi desregulando radicalmente a agricultura do país. Os protestos que se seguiram e que hoje prosseguem, envolvendo milhões de pessoas, exigem a revogação dessas leis.
Em termos gerais, esses diplomas põem fim às restrições das compras de terrenos agrícolas por grandes corporações e ao armazenamento de mercadorias como meio de controlar os preços nos produtores. Permitem igualmente que as grandes empresas transnacionais ignorem os mercados estaduais ou regionais, onde os produtos dos agricultores são vendidos a preços garantidos, podendo fazer acordos directos com os produtores. Estas medidas vão fazer com que dezenas de milhões de pequenos e médios agricultores fiquem arruinados, o mesmo devendo acontecer com os pequenos e médios intermediários da frágil cadeia alimentar indiana.
As leis de Modi correspondem a medidas que o FMI e o Banco Mundial estão a exigir desde o início dos anos noventa do século passado para aplicar na agricultura indiana o modelo de agronegócio corporativo desenvolvido há algumas décadas pela Fundação Rockefeller nos Estados Unidos. Até agora, porém, nenhum governo indiano se tinha disponibilizado para atacar os produtores agrícolas, o maior grupo populacional do país, muitos dos quais se limitam a amanhar minúsculas parcelas para subsistência familiar.
O argumento de Modi é que com a alteração do sistema actual, através das medidas impostas, os agricultores indianos poderão “duplicar” as suas receitas já em 2022; uma afirmação de carácter duvidoso e não demonstrada. A partir de agora as grandes corporações poderão comprar propriedades agrícolas pela primeira vez a nível nacional, uma medida que tem por objectivo encorajar grandes empresas, gigantes da indústria alimentar e os exportadores a investirem no sector agrícola. Contra estes mecanismos, os pequenos e médios agricultores não terão quaisquer hipóteses de sobrevivência.
Quem estará por detrás destas alterações radicais favoráveis aos gigantes transnacionais do agroalimentar no país com o maior potencial agrícola do mundo? Nada mais que o Fórum Económico Mundial e a agenda para globalização da agricultura, um dos grandes cavalos de batalha da Fundação Bill Gates.
“Nova Visão” para a agricultura
As leis que o governo Modi fez aprovar na Índia são um resultado directo de vários anos de acções do Fórum Económico Mundial no âmbito da sua iniciativa designada “Nova Visão para a Agricultura” (NVA). Há mais de uma década que o FEM vem tentando impulsionar o seu modelo corporativo de “Nova Visão para a Agricultura” em África, na América Latina e na Ásia. O principal “alvo” desta movimentação, porém, tem sido a Índia, onde a apropriação da agricultura pelas grandes corporações tem encontrado corajosa resistência desde a fracassada “revolução verde” da Fundação Rockefeller na década de sessenta.
Desmantelar o sistema agrícola e alimentar tradicional da Índia é, no entanto, um objectivo fulcral do Great Reset do FEM e dos projectos de “agricultura sustentável” da Agenda 2030 da ONU. Para isso é preciso fazer com que os pequenos e médios agricultores indianos sejam forçados a vender as suas propriedades aos grandes conglomerados do agronegócio e que sejam eliminadas as medidas regionais e estaduais de apoio e protecção à agricultura familiar. Deste modo, a “nova visão” agrícola será “sustentável” para os grandes conglomerados globais do agronegócio mas não para os pequenos e médios produtores tradicionais.
Para promover esta agenda, em sintonia com as acções legislativas do fascista Modi, o FEM criou um poderoso grupo de interesses corporativos e governamentais designado NVA India Business Council. No seu website, o FEM informa:
“O NVA India Business Council actua como um grupo informal de liderança a alto nível para defender a colaboração e o investimento do sector privado de modo a impulsionar o crescimento agrícola sustentável na Índia”.
Uma ideia do que significa “sustentável” nesta definição é dada pela composição do grupo. Em 2017, por exemplo, o NVA India Business Council integrou, designadamente: a Bayer CropScience, um dos maiores fornecedores mundiais de pesticidas agrícolas e, actualmente, de sementes de organismos geneticamente modificados (OGM, transgénicos) da transnacional Monsanto; a Cargill India Unip, empresa subsidiária do gigante norte-americano de sementes; a Dow AgroSciences, um colosso multinacional de sementes e pesticidas; a DuPont, empresa de transgénicos e agroquímicos; Louis Dreyfus Company, gigante do cartel de sementes; Val-Mart Índia, ramo do grande conglomerado de comércio e distribuição dos Estados Unidos; India Mahindra & Mahindra, maior fabricante mundial de tractores; Nestlé India Lda; PepsiCo India, Rabobank International; o banco estatal da Índia; a Swiss RE Services, a maior resseguradora do mundo; India Private Limited, fabricante de produtos químicos; e o Grupo Adani, de Gautam Adani, o segundo homem mais rico da Índia e o principal financiador do partido BJP de Narendra Modi. O poderoso grupo que se reclama de uma “nova visão” da agricultura não integra qualquer organização indiana de agricultores.
Além do principal financiador de Modi, Guatam Adani, o NVA India Business Council integra Mukesh Ambani, que faz parte igualmente do Conselho de Directores do Fórum Económico Mundial de Klaus Schwab. Ambani, outro dos principais financiadores do partido populista e nacionalista que governa a Índia, é o director administrativo da Reliance Industries, o maior conglomerado indiano, e tem a segunda maior fortuna da Ásia, calculada em 74 mil milhões de dólares. Mukesh Ambani é um grande defensor das mudanças radicais na agricultura indiana pois o seu grupo Reliance só tem a ganhar – e muito - com isso.
Durante as manifestações de Dezembro no Estado indiano do Punjab os agricultores queimaram fotos de Ambani e de Adani juntamente com as do primeiro-ministro Modi, responsabilizando-os directamente pelas novas leis.
Para quem conheça os comportamentos e as atitudes destes gigantes corporativos está claro que os interesses dos cerca de 650 milhões de agricultores indianos não são a sua prioridade. O mesmo acontece com Gita Gopinath, um indiano agora residente nos Estados Unidos como economista-chefe do FMI, para quem as leis agrícolas agora impostas têm um “potencial” capaz de aumentar as receitas dos agricultores indianos.
Em 26 de Novembro do ano passado, uma greve geral nacional mobilizou aproximadamente 250 milhões de pessoas em apoio dos agricultores. Sindicatos dos transportes representando cerca de 14 milhões de camionistas juntaram-se às manifestações para demonstrar a sua solidariedade com os sindicatos agrícolas. Este é, sem qualquer dúvida, o maior desafio que o regime do BJP (extremismo hindu de teor fascista) de Narendra Modi enfrenta até hoje; e o facto de não ter em conta a sua profundidade e alcance sugere que se trata de uma longa batalha.
Para que a Agenda 2030 da ONU ou o Great Reset do FEM se cumpram, os seus mentores consideram que as indústrias globais alimentares, como Klaus Schwab gosta de dizer, têm como principal prioridade que a Índia, com a maior população agrícola do mundo, seja colocada sob o controlo da sua rede globalista corporativa do agronegócio. É óbvio que a desregulamentação do sector agrícola indiano lançada por Modi se insere na próxima Cimeira dos Sistemas Alimentares da ONU.
O momento escolhido para a tentativa de transformação do sistema de agricultura da Índia está efectivamente relacionado com a Cimeira dos Sistemas Alimentares da ONU em Setembro próximo. O secretário-geral da ONU, António Guterres, declarou em 2019, ao anunciar a realização da cimeira em 2021, que o seu objectivo é maximizar os benefícios de “uma abordagem dos sistemas alimentares” consistente com os objectivos de desenvolvimento sustentável da organização para 2030. Nesse sentido, nomeou a ruandesa Agnes Kalibata como sua enviada especial para a Cimeira de Sistemas Alimentares. A declaração que sustenta a realização da cimeira aponta o caminho da “agricultura de precisão”, assente em GPS, grandes bases de dados (Big Data), robótica e organismos geneticamente modificados (OGM, transgénicos) como soluções.
Kalibata, ex-ministra da Agricultura do Ruanda devastado pela guerra é também a presidente da AGRA, a chamada “Aliança para a Revolução Verde em África”. A AGRA é mais uma das criações globalistas das Fundações Gates e Rockefeller para generalizar a utilização de sementes patenteadas transgénicas e pesticidas químicos, neste caso na agricultura africana. Um dos elementos-chave colocado por Bill Gates à frente da AGRA é Robert Horsch, que desempenhou durante 25 anos o cargo de executivo sénior do grupo Monsanto.
A Fundação Bill e Melinda Gates é também um “parceiro contribuinte” do Fórum Económico Mundial.
Cerca de 15 anos e mil milhões de dólares de fundos de Gates, Rockefeller e outros grandes “filantropos”, a AGRA não contribui para uma situação melhor dos agricultores africanos. São forçados pelos seus governos a comprar sementes de fornecedores transnacionais muitas vezes vinculados à Monsanto e outras empresas de transgénicos e fertilizantes químicos.
Os resultados são o aumento de dívidas e, frequentemente, a falência. Os agricultores estão proibidos de reutilizar sementes comerciais, além de serem obrigados a abandonar as sementes tradicionais, susceptíveis de serem reutilizadas. Segundo os seus promotores, a AGRA está “orientada para o mercado”, o que significa a rede de exportação global controlada pela Cargill e outros gigantes do cartel das sementes. Na década de noventa do século passado, sob pressão de Washington e do agronegócio, o Banco Mundial exigiu que os governos africanos e outros de países em vias de desenvolvimento cancelassem os subsídios à agricultura. As importações baratas e subsidiadas da União Europeia e da OCDE conduzem os agricultores locais à falência. Isto é intencional.
Falsas promessas
O relatório intitulado “False Promises (Falsas Promessas) de 2020, que aborda a actuação da AGRA em 13 países analisados, conclui que “os aumentos de rendimento das principais culturas básicas durante os anos da AGRA foram tão baixos como nos anos anteriores” à “aliança”. Em vez de reduzir a fome para metade nesses países, a situação piorou. O número de pessoas que passam fome aumentou 30% durante os anos da AGRA, afectando 130 milhões nos 13 países analisados.
No relatório pode ler-se que “a AGRA de Gates tornou a produção de alimentos africanos mais globalizada e mais dependente do que nunca da vontade de empresas multinacionais globais cujo objectivo é obter produtos baratos. Isto força os agricultores a endividar-se, além de exigir ‘colheitas comerciais’ específicas como milho ou soja transgénicos para exportação”.
A estratégia confidencial de desenvolvimento agrícola 2008-2011 da Fundação Gates delineou o seguinte:
“Os pequenos agricultores com potencial para produzir excedentes podem criar um sistema orientado para o mercado (…) para sair da pobreza. (…) A visão de êxito envolve agricultores orientados para o mercado laborando em propriedades lucrativas (…) o que exigirá algum grau de mobilidade da terra e uma percentagem menor de emprego total relacionado com a produção agrícola directa”.
Em 2008, o director de Desenvolvimento Agrícola da Fundação Gates era Rajiv Shah, que dirigiu a criação da AGRA em representação da fundação, juntamente com a Fundação Rockefeller. Shah é actualmente presidente da Fundação Rockefeller, parceira de Gates na AGRA. A Fundação Rockefeller financiou a criação se sementes transgénicas patenteadas na década de setenta do século passado, a formação de bancos de sementes juntamente com o Banco Mundial e esteve na base do lançamento da fracassada “revolução verde” na Índia. Rajiv Shah é também uma figura destacada no cumprimento das agendas do Fórum Económico Mundial. O mundo é pequeno.
O facto de a presidente da AGRA estar à frente da organização da Cimeira de Sistemas Alimentares da ONU por designação de Guterres (observe-se a utilização recorrente e sintonizada da expressão “sistemas alimentares”) expõe os vínculos que formam a intrincada rede onde se evidenciam a própria ONU, o Fórum Económico Mundial com o seu sistema de mega empresas globais e as Fundações Gates e Rockefeller. Um núcleo fulcral e pujante do globalismo dominado pelo sistema económico e financeiro controlado pelos impérios transnacionais que não conhecem fronteiras nem pátrias.
A Índia, país com 1400 milhões de pessoas – com cerca de metade dependentes da agricultura – é o último bastião onde o agronegócio global não conseguiu dominar a produção de alimentos.
A OCDE é há muito um instrumento da globalização do agronegócio industrial, o que é confirmado pela deterioração da qualidade alimentar e da nutrição nos países membros. A China abriu-se a essa tendência e funciona como um membro importante do mundo dos transgénicos com a Syngenta, além de ser o maior produtor mundial de glifosatos.
O papel central da AGRA de Gates-Rockefeller na Cimeira de Sistemas Alimentares da ONU, o papel principal do FEM na redefinição de “sistemas alimentares” mundiais e as pressões exercidas durante o último ano sobre o primeiro-ministro indiano para seguir na Índia a mesma agenda corporativa que é aplicada em África não são coisas que aconteçam por acaso. Por este caminho há riscos sérios de falhas catastróficas em colheitas e mesmo coisas piores no sector alimentar globalizado.