A GRANDE FARSA DA SUSTENTABILIDADE
2020-10-12
Peter Koenig*, New Eastern Outlook/Adaptação de O Lado Oculto
Só os mortos viram o fim da guerra, Platão
Esta máxima é tão válida hoje como há 2500 anos. As guerras continuam e sucedem-se. Elas são exactamente um antídoto da sustentabilidade. Elas podem mesmo vir a ser a única “sustentabilidade” que a humanidade moderna conhece – destruição sem fim, matanças, exploração desavergonhada da Mãe Terra e dos seres que a habitam, incluindo os humanos.
Sim, parece que estamos decididos a praticar este princípio de “sustentabilidade” através das guerras e conflitos.
Tudo por ganância e mais ganância, numa correria sem fim. A ganância e a destruição são certamente características “insustentáveis” da nossa “civilização” ocidental. Pode ser, apesar de tudo e na dança das coisas e dos acontecimentos, que a Mãe Terra consiga sobreviver. Mas apenas no caso de se limpar, sacudindo e livrando-se dos destruidores e aniquiladores – a humanidade. Assim sendo, apenas os bravos sobreviverão: povos indígenas que se abstiveram do consumismo abjecto e, em vez disso, adoram a Mãe Terra e manifestam a sua gratidão pelas ofertas diárias que ela proporciona. Já não existem muitas sociedades assim no nosso planeta.
Enquanto isso, mente-se sobre a sustentabilidade em que dizem vivermos. Mentimos a nós próprios e às populações em geral que nos rodeiam. Fazemos com que tente acreditar-se que a sustentabilidade é a nossa causa – e a palavra usa-se com toda a liberdade e a todo o momento, adorna hoje todos os discursos políticos. A maioria de nós nem sabe o que isso significa. “Sustentabilidade” e “sustentável” para tudo e qualquer coisa tornaram-se slogans, soundbites, palavras de consumo corrente – e, porém, cada vez mais falsas e vazias.
São palavras da moda, repetidas sem cessar, ditas para promover ideias falsas e forçar as pessoas a acreditar em algo que não é aquilo que dizem ser.
O absurdo e as atrocidades
Fingimos e dizemos que trabalhamos de forma sustentável, que desenvolvemos quase tudo em que tocamos de forma sustentável; asseguramos que projectamos o futuro de forma ainda mais sustentável. É nisso que somos levados a acreditar por aqueles que cunharam este termo fabulosamente inteligente, mas falso, É uma pérola da fábrica psicológica que nos molda.
Como disse Voltaire de maneira tão incisiva: “Aqueles que vos fazem acreditar no absurdo podem fazer-vos cometer atrocidades”.
O que significa isso da sustentabilidade? Pode ter tantas interpretações quantas as pessoas que usam a palavra – ou seja, especificamente nenhuma. Parece uma coisa boa. Porque se tornou uma palavra familiar e corrente desde que o Banco Mundial a inventou, ou melhor, se apropriou da expressão “desenvolvimento sustentável” na década de noventa do século passado, primeiro em ligação com o aquecimento global, depois com as alterações climáticas – e agora com ambos os fenómenos. Vinda de quem vem – e todos sabemos o que o Banco Mundial, a par do FMI, representam para o neoliberalismo e o catecismo do “Consenso de Washington” – “desenvolvimento sustentável” é outra maneira de dizer tecnocracia, a ausência de decisões que tenham em conta o factor humano.
Imaginem que houve uma época no Banco Mundial, e possivelmente em outras instituições afins, em que todas as páginas de quase todos os relatórios tinham de conter pelo menos uma vez as palavras “sustentável” e “sustentabilidade”. Sim, é verdade, a tanto chega a insanidade então propagada – e que hoje prossegue à escala global e de maneira muito mais sofisticada. O mundo corporativo, os megapoluidores fizeram delas as palavras da moda: os nossos negócios são “sustentáveis”, os nossos produtos promovem a “sustentabilidade” no mundo inteiro.
As responsabilidades da ONU
Na verdade, as expressões “crescimento sustentável”, “desenvolvimento sustentável”, “sustentável isto”, “sustentável aquilo” foram originalmente cunhadas na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (UNCED), conhecida também como a Conferência do Rio ou Cimeira da Terra, realizada no Rio de Janeiro de 3 a 14 de Junho de 1992.
Esta cimeira ficou intimamente ligada aos movimentos subsequentes sobre o aquecimento global e as mudanças climáticas. Foi a partir daí que começaram as projecções sobre desastres sem fim no caso de a humanidade não agir. O diagnóstico, grosso modo, é real; o problema é que essa acção de resposta e combate tem vindo a ser tomada em mãos pelos grandes e gananciosos sectores que a encaram como fonte de novos e proveitosos negócios através dos quais existe o risco de que tudo continue na mesma – isto é, se degrade cada vez mais.
A Cimeira do Rio foi a primeira de uma série de iniciativas do género sobre o clima e o meio ambiente que estão intimamente ligadas às Agendas 2021 e 2030 da ONU. A Agenda 2030 integra como seu núcleo principal os 17 “Objectivos de Desenvolvimento Sustentável” (ODS).
Estes 17 objectivos foram todos direccionados para a chamada “Agenda Verde” ou, como algumas proeminentes figuras da moda do Partido Democrático dos Estados Unidos a designam, o “New Green Deal”. Que nada mais é do que o capitalismo pintado de verde com custos terríveis para a humanidade e para os recursos naturais existentes no mundo. Tudo isto vendido com o rótulo de “um mundo mais sustentável”.
Não interessam as enormes quantidades de hidrocarbonetos – os poluidores por excelência – que serão necessárias para converter a nossa economia “negra” numa economia verde. Simplesmente porque ainda não são desenvolvidas, de modo consequente, fontes alternativas eficazes e eficientes de energia. E tudo isso acontece porque os lobbies dos hidrocarbonetos estão mais fortes que nunca, politicamente cada vez mais poderosos e também eles agora “sustentáveis”.
Os custos de energia obtida através de hidrocarbonetos (petróleo, gás e carvão) para a produção de painéis solares e moinhos de energia eólica são impressionantes. E os automóveis eléctricos de hoje – Tesla & co – são movidos por energia produzida por hidrocarbonetos – é o que acontece quando se carregam as baterias nos postos de abastecimento. Além disso, as suas baterias de lítio destroem paisagens intocadas como as enormes planícies salinas naturais na Bolívia, Argentina, Chile, China e outros lugares, como ilustra o filme “Planet of the Humans” de Michael Moore. Sem esquecer que as manobras de acesso ao lítio pelo multimilionário Elon Musk contribuíram para inspirar o golpe de Estado fascista na Bolívia.
O mito do hidrogénio
A energia do hidrogénio é promovida como a panaceia para os recursos energéticos do futuro. Será mesmo? Os hidrocarbonetos ou combustíveis fósseis representam hoje 80% de toda a energia consumida no mundo. Trata-se de uma energia não renovável e altamente poluente. E a produção de hidrogénio ainda depende principalmente de combustíveis fósseis, tal como acontece com a electricidade.
Enquanto tivermos lobbies puramente lucrativos que impedem governos de investir colectivamente em investigação de energias alternativas, como por exemplo a energia solar de segunda geração, ou seja, derivada da fotossíntese, a produção de hidrogénio continuará a assentar preferencialmente em combustíveis fósseis. Portanto, um automóvel movido o hidrogénio poderá ser até 40% a 50% ainda menos eficiente do que um automóvel eléctrico normal, o que significa que o impacto no meio ambiente pode ser consideravelmente maior. Quer isto dizer que, com a tecnologia de hoje, não é sustentável.
Claro que para alinhar na campanha de ilusão que é lançada sobre as pessoas em geral, com apoio da comunicação social corporativa, produtores de energia eléctrica pelos meios convencionais, designadamente o carvão, colocam torres eólicas ou painéis solares nos “quintais” das suas minas e que proporcionam imagens pretensamente ilustrativas das suas intenções “sustentáveis”. No entanto, nada muda, a não ser o agravamento do grau de mentira.
O Fórum Económico Mundial, com a sua manifestação anual em Davos, e o FMI estão totalmente comprometidos com a ideia do New Green Deal. Para eles, não são o capitalismo neoliberal desenfreado e o consumismo extremo que dele emana os responsáveis pelo colapso ambiental e social no mundo, mas sim apenas o uso de fontes de energia poluentes, como os hidrocarbonetos. Enquanto isso, tentam esconder o enorme uso de combustíveis fósseis a que recorrem para pretensamente criar uma economia baseada em “energia verde”. O capitalismo está bem, muito obrigado. Só há que pintá-lo de “verde”.
Vejamos então exemplos bastante claros da farsa da “sustentabilidade” em desenvolvimento.
Uso e privatização da água
Diz-nos a Coca-Cola que os seus refrigerantes são produzidos de forma “sustentável”. A alegada sustentabilidade faz parte das suas promoções de vendas em todo o mundo. Na realidade, recorre a grandes quantidades de água potável límpida e cristalina – tal e qual como a Nestlé, que tem na água engarrafada o seu ramo de negócios número um.
A Nestlé ultrapassou a Coca-Cola como primeiro produtor mundial de água engarrafada. Ambos os grupos usam fontes subterrâneas de água potável – menos dispendiosa e frequentemente mais rica em minerais. E ambos estão igualmente prestes a assinar acordos com o presidente do Brasil para explorar a maior reserva de água doce do mundo, o aquífero de Guarani, que se estende também aos territórios da Argentina, Paraguai e Uruguai. Nestlé e Coca-Cola proclamam tudo isto como actividades sustentáveis.
Tanto a Coca-Cola como a Nestlé têm histórias de terror no Sul Global – Índia, Brasil, México e outros – mas também no Norte Global. Os habitantes do minúsculo município de Osceola, no Michigan, Estados Unidos, travam uma batalha com a Nestlé acusando a empresa de utilizar técnicas de extracção de água que arruínam o meio ambiente. Segundo dados de 2018, a Nestlé paga anualmente ao Estado de Michigan a irrisória quantia de 200 mil dólares para extrair 500 milhões de litros de água, um investimento de um dólar por cada 2500 litros.
Devido às actividades de superexploração das reservas aquíferas, tanto no Sul Global como no Norte, especialmente no Verão, os lençóis freáticos caem para níveis inaceitáveis pelas populações locais, que se vêm privadas das suas fontes. Protestar contra os governos ou contra as autoridades municipais costuma ser em vão. A corrupção é abrangente – e não existe nada de sustentável nestes procedimentos.
Estes são apenas dois dos grandes grupos que recorrem à privatização da água para fins de engarrafamento. Contudo, a privatização do abastecimento público de água é um fenómeno que atinge uma expressão muito maior e que está no centro das preocupações das populações principalmente de países em vias de desenvolvimento. Trata-se de transformar recursos fundamentais para a subsistência humana e das próprias economias nacionais em fontes de receitas com extraordinária rendibilidade para empresas francesas, britânicas, suíças, norte-americanas, britânicas e espanholas.
A privatização da água é uma actividade que se caracteriza por ser socialmente insustentável, pois priva as populações, especialmente os extractos mais pobres, do acesso aos seus legítimos recursos hídricos. A água é um bem público – e o acesso à água é também um direito humano básico. A 28 de Julho de 2010, a Assembleia Geral da ONU aprovou a Resolução 64/292 através da qual reconhece explicitamente o direito humano à água e saneamento; a deliberação reconheceu igualmente que a água potável e o saneamento são essenciais para a realização de todos os direitos humanos.
A apropriação dos recursos de água públicos por empresas como a Coca- Cola, a Nestlé e muitas outras nem sequer leva em conta, imagine-se, os biliões de garrafas de plástico que acabam como lixo não tratado e não reciclado no mar, nos campos, florestas e bermas das estradas. Menos de 8% das garrafas de plástico em todo o mundo são recicladas. Energia produzida a partir de hidrocarbonetos e carvão é utilizada no processo de reciclagem. Portanto, nada do que a Coca-Cola, a Nestlé e outras praticam e propagandeiam é sustentável. Tudo isto não passa de uma grande mentira.
Os combustíveis
A BP, com a sua simbologia de negócios verdes de faz de conta, preocupa-se em dar-nos a sensação de que é uma instituição ecológica cada vez que passamos por um dos seus postos de abastecimento. A BP proclama que os seus métodos de exploração de petróleo são verdes e ambientalmente sustentáveis.
Olhemos para a realidade. O maior derramamento de petróleo no mar provocado pela indústria de hidrocarbonetos foi o da plataforma Deepwater Horizon, do Macondo Prospect da BP, que começou em 20 de Abril de 2010 e durou até 19 de Setembro desse ano no Golfo do México. Por responsabilidade da BP, foram derramados cerca de 780 mil metros cúbicos de petróleo bruto numa área até 180 mil metros quadrados. A BP garantiu uma limpeza completa e em Fevereiro de 2015 deu a tarefa como concluída. No entanto, pelo menos 60% do petróleo e alcatrão derramados pela explosão ao longo das costas e das praias não foram limpos – e podem nunca ser removidos. Onde estão a sustentabilidade, o respeito pela promessa feita? Outra mentira absoluta.
A BP e outras empresas petrolíferas têm registos terríveis de direitos humanos em quase rodos os lados onde operam, principalmente em África, no Médio Oriente e na Ásia. A revogação dos direitos humanos nada tem igualmente a ver com sustentabilidade.
Usamos aqui a BP como exemplo dos comportamentos na indústria do petróleo. Nenhum dos gigantes desta área opera de forma sustentável em qualquer parte do mundo, muito menos onde se praticam as destrutivas fracturas dos lençóis freáticos.
Indústria mineira
Uma indústria mineira sustentável é outra grande mentira. Mas é uma conversa que vende bem aos cegos. E a maior parte das pessoas do mundo “civilizado” são tratadas como cegas. Infelizmente. Grandes empresas do sector querem continuar nas suas zonas de conforto explorando o cobre, o ouro, metais e pedras preciosas, os metais terras raras e todos os materiais para utilizar em equipamentos electrónicos cada vez mais sofisticados e sobretudo armamentos militares de precisão guiados electronicamente.
A actividade mineira sustentável de qualquer coisa não renovável é uma enorme incongruência. Qualquer coisa não renovável que seja retirada da terra é, por natureza, não sustentável. Desaparece simplesmente. Para sempre. Além de as matérias-primas não serem renováveis, os danos ambientais provocados pelas actividades mineiras, principalmente de cobre e ouro, são terríveis. Quando uma mina é explorada, no quadro de uma concessão curta de 30 a 40 anos, a empresa responsável deixa para trás montanhas de resíduos, água e solo contaminados que podem levar mais de mil anos a regenerar-se.
No entanto, todas as entidades envolvidas nestes negócios proclamam que as suas actividades são “sustentáveis”. E as pessoas acreditam.
Capitalismo hipoteca o futuro
Na verdade, a sustentabilidade decorrente da nossa geração é pouco mais do que zero. Além da poluição, envenenamento e intoxicação que deixamos à nossa volta, as actividades associadas à nossa “civilização”, sobretudo ocidental, vêm usando recursos naturais numa taxa três a quatro vezes superior à que é oferecida pela Mãe Terra. O Ocidente ultrapassou o limiar um nos anos sessenta. Em África e na maior parte da Ásia, no entanto, a taxa de esgotamento está ainda bem abaixo do factor um, com uma média algures entre 0,4 e 0,6. Mas a corrida às matérias-primas nesses territórios é desenfreada, se necessário com a protecção de guerras, regimes autoritários e mecanismos coloniais, conduzida por grandes potentados transnacionais.
“Sustentabilidade” é um soundbite, uma palavra-muleta, um elemento indispensável do jargão que torna bem-falantes os discursos da moda para intervenção política, social, económica e empresarial proferidos por adeptos directos ou disfarçados do neoliberalismo que nos governa. “Sustentabilidade” é publicidade enganosa, propaganda pura, uma mentira recorrente para que possamos prosseguir com os nossos modos de vida insustentáveis. É assim que o capitalismo funciona, adaptando-se para que os lucros continuem a escorrer. Enquanto faz profissões de fé “verdes” incentiva cada vez mais o consumismo generalizado e o luxo para cada vez menos oligarcas – hipotecando os recursos de amanhã.
A “sustentabilidade” de tudo não é apenas um slogan barato, é uma mentira ruinosa. De facto, é necessário um Great Reset, um Grande Reinício ou uma Grande Restauração, mas não segundo os métodos apregoados pelo Fórum Económico Mundial e o FMI. Estes pretendem transferir cada vez mais recursos e activos dos 99,99% da população mundial para uma elite cada vez mais endinheirada, pintando o velho capitalismo com novas tonalidades verdes brilhantes - e enganando toda a gente pelo caminho.
*Economista e analista político com 30 anos de actividade no Banco Mundial