GÁS DO MEDITERRÂNEO ORIENTAL ENVENENA A NATO
2020-09-28
Edward Barnes, Beirute; Exclusivo O Lado Oculto
Há aspectos em que a Organização do Tratado do Atlântico Norte ou NATO é uma aliança militar apenas na designação. O conflito de intensidade crescente que tem vindo a desenvolver-se nas águas do Mediterrâneo Oriental devido aos recursos energéticos entretanto descobertos e à indeterminação de várias Zonas Económicas Exclusivas (ZEE) revela que a união militar entre diferentes países ocidentais pode vacilar perante circunstâncias deste tipo.
A tensão actual entre a Grécia e a Turquia é apenas uma faceta de um conflito muito mais abrangente e que envolve, além destes dois países da NATO, outros membros ou não da aliança como Israel, Egipto, Chipre, Líbano, França, Itália, Líbia e algumas outras nações mediterrânicas e europeias. Notavelmente ausentes da lista estão os Estados Unidos e a Rússia; este último, em especial, pode ter muito a ganhar ou a perder, em termos de alavancagem económica, consoante o desfecho dos conflitos. E Washington coloca discretamente fichas nos dois lados do conflito.
Conflitos desta natureza têm origens actuais e também raízes históricas: a Turquia e a Grécia travaram uma guerra breve, mas com consequências, em 1974. Muito relevante para a presente conflagração multifacetada é o acordo assinado em 2 de Janeiro pelo primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu e os seus homólogos grego e cipriota, respectivamente Kyriakos Mitsotakis e Nicos Anastasiades. O documento prevê a construção de um gasoduto designado EastMed que, uma vez finalizado, deverá abastecer a Europa com gás natural israelita, bombeado principalmente a partir da Bacia do Levante ou Leviatã. Está em causa, designadamente, o facto de parte deste gás não ser legalmente exportado por Israel, uma vez que existem acusações de apropriação ilegítima apresentadas designadamente pelo Líbano e pela Autonomia Palestiniana – neste caso em relação a possível aproveitamento indevido das reservas Marine 1 e Marine 2, situadas nas águas de Gaza e cuja exploração o governo de Telavive não permite às autoridades palestinianas.
A cada um os seus cálculos
Vários países europeus pretendem fazer parte do projecto a partir de cálculos de que poderão tirar proveito dele. As vantagens europeias não seriam apenas económicas mas também geoestratégicas. O gás exportado por Israel, hipoteticamente mais barato, diminuiria a dependência da Europa em relação ao gás natural russo, transportado através de dois gasodutos: o Nord Stream e o Gazprom, que atravessa o território da Turquia.
A empresa Gazprom contribui alegadamente com cerca de 40% das necessidades da Europa em gás natural, o que, no entender da casta política dominante europeia, se traduz em influência económica e política da Rússia – uma dedução que não é verificável no quotidiano dos países clientes europeus. Alguns países europeus, principalmente a França, têm desenvolvido esforços para se “libertarem” do que consideram ser um “estrangulamento” das suas economias provocado pela Rússia.
Na verdade, a rivalidade entre a França e a Itália que se manifesta actualmente a propósito da Líbia, onde se inclinam para facções diferentes, corresponde a interesses coloniais próprios relacionados com o que consideram ser uma dependência excessiva da Rússia e da Turquia em termos de gás natural e outras fontes energéticas.
A Rússia e a Turquia, por seu lado, assumiram posições diferentes no conflito líbio – gerado pela guerra de devastação do país conduzida pela NATO em aliança com o terrorismo islâmico – em função das movimentações com alcance energético desenvolvidas por países da União Europeia e da aliança militar. Moscovo parece inclinar-se para as forças da Cirenaica leais ao general Khalifa Haftar, embora apenas mercenários russos tenham sido detectados na região; a Turquia está directamente associada, inclusivamente através do envio de tropas, ao chamado Governo do Acordo Nacional (GNA), reconhecido pela ONU e sediado em Tripoli.
Um xadrez de contradições
O gasoduto EastMed patrocinado por Israel, Grécia e Chipre (governo de Nicósia) lançou achas na fogueira do conflito líbio provocado pela NATO. Enfureceu a Turquia, que foi excluída do acordo; e preocupou a Rússia, cujo gás chega à Europa parcialmente através da Turquia, além de dar mais poder a Israel no sentido de cimentar a sua integração económica com o continente europeu.
A Turquia tem, além disso, um contencioso próprio com a Grécia e Chipre (e agora com Israel) uma vez que explora os recursos energéticos detectados em águas territoriais cipriotas adjacentes à região do norte do país ocupada e colonizada militar e civilmente por Ancara.
Antecipando a aliança EastMed comandada por Israel, em 28 de Novembro de 2019 a Turquia e o governo líbio de Tripoli (em nome de todo o país, embora tenha jurisdição territorial limitada) assinaram um Tratado de Fronteira Marítima, um acordo que deu a Ancara acesso às águas territoriais do país. A ousada manobra permite que a Turquia reivindique direitos de exploração de gás natural numa vasta região que se estende da costa sul do território turco até à costa nordeste da Líbia.
A “Zona Económica Exclusiva” assim declarada, envolvendo também reivindicações por interesses vários, é inaceitável por muitas potências europeias porque, se continuar em vigor, cancelará o ambicioso EastMed e porá em causa a estrutura geopolítica da região ditada em grande parte pela Europa e garantida pela NATO. Uma situação criada precisamente por um país da NATO, dotado com o segundo maior exército da aliança.
As debilidades da NATO
Esta e outras circunstâncias revelam que a NATO parece não ser já a grande aliança unificada que foi durante a guerra fria, apesar dos seus alargamentos posteriores e da expansão militar através do planeta.
E se a guerra contra o Iraque lançada em 1991 foi a primeira expressão de uma NATO que emergiu unipolar da guerra fria depois da dissolução do Tratado de Varsóvia, as guerras do Afeganistão iniciada em 2001 e a do Iraque, em 2003, podem ter sido o início remoto da sua ruína.
Os estrategos militares tiveram até de inventar o inusitado termo “liderar na rectaguarda” para a participação dos Estados Unidos na guerra contra a Líbia na qual a NATO provocou a destruição do Estado líbio, tornando o país ingovernável até hoje, por acção operacional de tropas britânicas, francesas e italianas, entre outras. Os acontecimentos demonstraram uma ambiguidade na utilização da aliança pelos Estados Unidos, tornada entretanto mais evidente durante a administração Trump.
Por isso a França assume um papel mais importante em algumas crises em curso no Médio Oriente e especificamente no estado superior de desestabilização gerada pelas questões energéticas no Mediterrâneo Oriental.
Existem, de facto, circunstâncias estranhas geradas por colaborações militares antagónicas que passam pelo interior da NATO e que vão para lá do eixo do conflito entre a Grécia e a Turquia – sendo que começa a não ser segredo que os Estados Unidos apostam em todos os tabuleiros. São óbvias, portanto, as forças centrífugas que minam a capacidade da NATO para ser um instrumento unido e eficaz num conflito com estas características. Emergem assim as debilidades de uma aliança que, armada como nenhuma outra entidade no mundo, assumindo-se pretensamente como o polícia da ordem globalizante, está afinal à mercê de conflitos de interesses, neste em redor de questões energéticas estratégicas.