ISDS, OU OS ESTADOS E OS POVOS NAS GARRAS DAS MULTINACIONAIS
2019-06-28
Jorge Fonseca de Almeida*, especial para o Lado Oculto
O ISDS é um mecanismo de resolução de conflitos legais entre investidores privados estrangeiros e Estados nacionais que está a ser consagrado nos grandes tratados de comércio mundial. Este mecanismo retira da esfera da Justiça de cada país a resolução de diferendos legais, esvazia o sistema de justiça loca, e institui um sistema judicial privado favorável às grandes multinacionais. É um novo e fulminante ataque à democracia e mais um passo na institucionalização de uma plutocracia à escala mundial.
A sigla ISDS (Investor State Dispute Settlement) ou também ICS (Investment Court System) designa um sistema judicial privado, que substitui o sistema judicial estatal, com jurisdição na resolução de conflitos entre o Estado de um país e investidores estrangeiros.
Esta modalidade está instituída em diversos acordos internacionais, nomeadamente na NAFTA (entre os Estados Unidos, o Canadá e o México), no CETA (entre a União Europeia e o Canadá) e em muitos outros.
Uma Justiça antidemocrática
Supremo Tribunal de Justiça
Numa democracia as leis são feitas pelos representantes do povo e depois aplicadas por órgãos independentes – o Sistema Judicial com os seus tribunais, juízes e múltiplas instâncias.
As regras que regem o ISDS não são as leis do Estado a que o caso reporta, não são as leis que os representantes desse povo aprovaram mas sim as da arbitragem incluídas nos Tratados de Comércio. No caso de Portugal e dos restantes membros da União Europeia os Tratados de Comércio Externo só podem ser negociados pela Comissão Europeia.
As leis nacionais apenas se aplicam aos cidadãos, ficando as multinacionais acima dessas leis, reservando-se o direito de as não cumprir e de poder processar o Estado exigindo avultadas indemnizações sempre que entenderem estar os seus interesses prejudicados por nova legislação ambiental, laboral ou outra.
No sistema ISDS os “juízes” são nomeados pelas partes, logo não são independentes nem imparciais, e das suas decisões não há apelo para nenhuma instância superior - mesmo que se verifiquem irregularidades e ilegítimas influências sobre os “juízes”. Eis o paraíso dos mais ricos e poderosos. A lei do mais forte impondo-se em todo o seu esplendor.
Este sistema significa o fim do “primado da lei”, princípio basilar da democracia, sendo abertamente substituído pelo “primado do investidor internacional”.
Naturalmente que os investidores exigem, para sua própria salvaguarda, a legitimação destes procedimentos antidemocráticos. Assim, foi assinado um Tratado Internacional – a Convenção de Nova Iorque – em que os Estados signatários se comprometem a reconhecer e a implementar as decisões do sistema ISDS. Portugal assinou sem reservas esta Convenção durante o Governo do PS liderado por António Guterres.
América Latina
O Institute for Policy Studies publicou em Abril deste ano um interessante estudo sobre 38 casos ISDS que, ao longo dos anos, várias multinacionais do sector mineiro abriram contra diversos países latino-americanos reclamando avultadas indemnizações.
Um caso paradigmático foi a condenação do Equador no pagamento de 1800 milhões de dólares à multinacional norte-americana Occidental Petroleum pelo cancelamento de um contrato de exploração petrolífera nos Andes depois desta ter cometido várias ilegalidades e de ter posto em perigo o modo de vida dos índios da região.
A maioria dos processos iniciados pelas empresas mineiras relacionam-se com a implementação de legislação laboral, de saúde, ou ambiental.
Países como a Bolívia, a Colômbia, a Costa Rica, a República Dominicana, o Equador, El Salvador, a Guatemala, o México, o Panamá, o Peru, o Uruguai e a Venezuela todos já foram alvo de processos ISDS, perderam e tiveram de pagar enormes indemnizações a grandes multinacionais por protegerem os seus interesses e os das suas populações e meio ambiente.
Caso paradigmático é o da empresa canadiana Bear Creek Mining, que processou o Peru em centenas de milhões de dólares depois de estar a envenenar a água, o que originou intensos protestos por parte dos agricultores e habitantes locais. A empresa ganhou o caso e o Peru foi condenado.
Muito semelhante é o caso da Goldcops na Guatemala, que contaminou a água usada pelas comunidades maias das imediações da mina de Marlin.
Os países mais fracos da América Latina têm sido ao longo da última década alvo de muitos processos de que resultaram várias condenações ao pagamento de avultadas indemnizações por parte dos Estados a empresas multinacionais, na maioria norte-americanas ou canadianas. Estes casos prendem-se quase todos com a intervenção do Estado na não renovação de licenças ou proibição da continuação de actividades, depois de provada a prejudicial actuação dessas empresas em termos de contaminação das água e dos solos ou desrespeito das normas locais.
Contudo, o sistema arbitral não leva em conta essa actuação criminosa ou negligente e concentra-se apenas nos prejuízos causados às empresas. Uma justiça totalmente enviesada.
Crescem os casos
De acordo com as Nações Unidas, os processos contra Estados independentes através do sistema de ISDS têm vindo a crescer a ritmo acelerado, contando-se já 117 países processados por multinacionais através deste mecanismo. Nenhum país parece estar a salvo da cobiça das multinacionais.
Na esmagadora maioria dos casos, os Estados processados são de países pobres e ou em vias de desenvolvimento e as empresas que reclamam indemnizações são provenientes dos países mais desenvolvidos e ricos.
Segundo as estatísticas, as empresas que mais reclamam indemnizações são provenientes dos Estados Unidos (ver quadro) logo seguidas de multinacionais sediadas na Holanda, Reino Unido e Alemanha.
Origem das multinacionais reclamantes
Os Estados Unidos são bem o exemplo de aproveitamento deste mecanismo. De todos os casos até Dezembro de 2018 as empresas norte-americanas surgem como reclamantes em 174 e os EUA apenas foram processados 16 vezes. Na Holanda é ainda mais claro: 108 vezes as empresas deste país processaram outros Estados enquanto a Holanda nunca foi processada. O Reino Unido e a Suíça também quase não sofrem processos, mas as suas multinacionais são lestas a procurar obter indemnizações de Estados fracos.
ISDS por países
Fonte: Investor Policy Hub, 2019
No extremo oposto surgem a Venezuela e a Argentina. A primeira já foi processada 47 vezes e apenas uma vez uma empresa desse país processou outro Estado, enquanto a Argentina já foi processada 60 vezes e apenas em cinco casos empresas argentinas intentaram contra outros Estados.
Torna-se evidente que o sistema ISDS se tornou uma forma de os países mais poderosos extorquirem avultadas indemnizações de Estados mais fracos.
Portugal
Portugal tem até hoje passado incólume neste processo de ferozes ataques das multinacionais, nunca tendo sido processado. Mas tal não garante que não venha a sê-lo no caso de pretender disciplinar alguma multinacional não cumpridora de regras ambientais ou laborais.
O risco é tremendo, já que as indemnizações, nestes casos, são sempre da ordem das centenas de milhões de dólares.
Contra esta situação cresce o movimento internacional de repúdio do ISDS, reclamando o primado da Lei do Estado e a submissão das multinacionais ao Direito local. Portugal, pelas suas fragilidades, devia encabeçar tal movimento. Antes que seja tarde.
Economista, MBA