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ISRAEL ESCUDA-SE EM AVIÕES CIVIS PARA ATACAR A SÍRIA

Embora com limitações para garantir a segurança dos aviões civis, a Síria respondeu ao ataque israelita destruindo a maioria das bombas antes de atingirem os alvos

2019-01-04

José Goulão

A Força Aérea de Israel usou dois aviões civis de passageiros como escudos, no dia de Natal, para poder bombardear regiões dos arredores de Damasco escapando aos efeitos do sistema electrónico de exclusão aérea montado sobre o território sírio. Apesar de a manobra traduzir uma dupla violação do Direito Internacional, nem o Conselho de Segurança da ONU nem o secretário-geral desta organização tomaram, até agora, qualquer posição sobre o assunto.

O ataque israelita, qualificado como uma “repelente cobardia” pela imprensa libanesa, não incomodou a comunicação social mainstream, apesar de ter posto em risco a vida de centenas de inocentes passageiros que se deslocavam para Beirute e Damasco. Só a contenção dos serviços sírios de defesa, ao evitar disparar mísseis que pusessem directamente em causa a segurança dos aparelhos civis, evitou aquilo que o ministro libanês dos transportes, Youssef Fenianos, qualificou como “uma verdadeira catástrofe”.
Devido ao sistema defensivo reforçado com que recentemente se dotou a República Árabe Síria, mediante sistemas russos de mísseis S-300 e dispositivos de guerra electrónica que criam uma zona de exclusão aérea sobre o território sírio, os Estados Unidos, os seus aliados ocidentais e Israel ficaram inibidos de prosseguir os bombardeamentos aéreos contra objectivos sírios.
Como consequências visíveis, Trump anunciou a retirada das tropas ocupantes do território sírio e Israel já não efectuava nenhum dos seus habituais bombardeamentos desde 18 de Setembro.

Um presente de Natal

No dia de Natal, seis caças F-16 israelitas começaram por invadir espaço aéreo libanês precisamente no momento em que dois aviões de passageiros aí se encontravam, ambos em manobras de aproximação aos aeroportos de destino, respectivamente Beirute e Damasco, que distam apenas 90 quilómetros um do outro.
Aproveitando o levantamento parcial do sistema de exclusão aérea sírio inerente à aproximação de aparelhos civis, os caças israelitas bombardearam instalações logísticas a menos de dez quilómetros de Damasco, atingindo um processo de embarque no âmbito da presença de forças do Hezbollah que apoiam a resistência síria contra a agressão internacional.
Os aparelhos israelitas dispararam várias bombas teleguiadas a laser GBU-39, de fabrico norte-americano; apesar das restrições, a defesa anti-aérea síria conseguiu interceptar a maioria dos engenhos: apenas dois chegaram aos alvos, ainda assim em condições de causar danos pessoais e materiais.
A manobra israelita foi denunciada por fontes dos Ministérios da Defesa sírio e russo e confirmada por fontes governamentais libanesas.
Em todas as declarações, estas fontes revelaram que as autoridades militares sírias deram prioridade à segurança dos aparelhos civis e por isso não combateram os aparelhos militares israelitas que deles se serviram como escudos. A atitude de Damasco poupou centenas de vidas humanas com as quais as forças as militares israelitas jogaram sem qualquer contemplação nem respeito pelos direitos humanos e os vários códigos de conduta estipulados pelas autoridades internacionais da aviação civil.

Um desmentido logo desmentido

As autoridades militares israelitas foram as únicas que desmentiram os factos relatados por Damasco, Moscovo e Beirute. Um comportamento padronizado e que nada tem a ver com a realidade. Aliás os factos falam, neste caso, muito mais do que as palavras, uma vez que, durante o ataque contra a Síria, Israel activou plenamente os seus sistemas defensivos, prevendo as respostas sírias.
Não é, aliás, a primeira vez que Israel adopta comportamentos semelhantes. Anteriormente, caças F-16 “esconderam-se” atrás de um avião de reconhecimento russo Il-20 para bombardear território sírio. Uma das respostas do sistema de defensivo de Damasco atingiu o aparelho russo quando tinha como alvo o caça israelita agressor, o que provocou a morte dos ocupantes, 15 altos quadros russos.
Desta feita, o facto de a Síria não ter caído no engodo cobarde e traiçoeiro montado por Israel para tentar provar que pode driblar a zona de exclusão aérea poupou centenas de vidas. Um dos aviões aterrou calmamente em Beirute e o outro pousou incólume no aeródromo de Khmeimim, para onde foi desviado para escapar às bombas israelitas sobre Damasco.
Aliás, foi a manobra israelita escudando-se no aparelho Il 20 que provocou o reforço dos sistemas defensivos sírios, acordada entre as autoridades de Moscovo e de Damasco e que entrou recentemente em actividade plena, com efeitos palpáveis imediatos. Por exemplo, os bombardeamentos da chamada “coligação internacional” supostamente contra o Isis ou “Estado Islâmico”, e que atingiam principalmente civis em regiões do Norte da Síria, reduziram-se em cerca de 80%. Além disso, o presidente norte-americano anunciou a redução do esforço militar próprio na Síria, embora outros aliados, designadamente a França, tenham revelado a intenção de manter-se no terreno, alegadamente procurando negócios que possam proporcionar compensações para o investimento feito na guerra – segundo explicou uma porta-voz do Quai d’Orsay.

Onde está a ONU?

O ataque israelita de dia de Natal ofende duplamente, no mínimo, o Direito Internacional. Em primeiro lugar, os caças israelitas em operações violaram o espaço aéreo libanês. É certo que tal não aconteceu pela primeira vez, podendo dizer-se que é até um velho hábito das forças militares israelitas, que usam realmente o Líbano como uma extensão territorial de Israel. Não é a frequência, porém, que “legaliza” o comportamento, baseando-se num qualquer direito de usucapião inscrito numa espécie de código jurídico próprio e exclusivo de Israel.
Um mau hábito enraizado também devido ao comportamento complacente das instâncias internacionais, que nada fizeram e fazem para o travar – e não lhes faltaram ocasiões para isso.
A omissão das instituições internacionais é mais grave ainda nesta situação, uma vez que existe também a utilização das vidas de seres humanos inocentes como reféns de uma operação militar agressiva. Se Damasco não tivesse manifestado contenção e os dois aparelhos fossem abatidos, apanhados no fogo cruzado resultante de uma guerra que a Síria não provocou, haveria centenas de mortos a registar; e talvez então, mesmo sem ser necessário recorrer a muita especulação, observaríamos a ira da “comunidade internacional”, quiçá palavras revoltadas e compungidas do secretário-geral António Guterres contra um crime de amplas proporções.
Palavras que não se ouviram agora. Nem da parte de Guterres, nem do Conselho de Segurança, nem de qualquer outro órgão normalmente tão eloquente, de Washington a Bruxelas, de Varsóvia a Londres, Paris, Madrid ou Lisboa.
Não é novidade que a balança de António Guterres está mal calibrada em assuntos internacionais e também no Médio Oriente. A sua atenção, a sua pronta e dedicada solidariedade sempre que, de tempos a tempos, um atentado atinge Israel chegam a ser comoventes, por isso contrastando cruamente com o alheamento perante as arbitrariedades e as constantes violações de direitos humanos em Jerusalém Leste e na Cisjordânia e o ostensivo esquecimento devotado à permanente catástrofe humanitária em Gaza.
O crime do silêncio, neste caso, tem braços ainda muito mais longos e sem prazo de validade, uma vez que outorga a Israel as autorizações – aliás desnecessárias – para prosseguir impunemente os seus crimes, desprezando as vidas e os direitos elementares de seres humanos inocentes.

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