O PERIGOSO CAMINHO DA SUÍÇA PARA A EXTREMA-DIREITA
2021-02-07
Largos extractos da população da Suíça batem-se contra a chamada “Lei Federal de Combate ao Terrorismo”, que contém em si exemplos do deslizar do poder político para a extrema-direita através de medidas que tendem a sobrepor a arbitrariedade policial ao poder judicial. A Suíça é, neste momento e apesar de isso não ser repercutido na comunicação social dominante, um exemplo de como o neoliberalismo em crise busca cada vez mais a sua sobrevivência através do regime que lhe dá mais garantias: o extremismo de direita.
Franklin Frederick, Alainet.org/O Lado Oculto
No dia 25 de setembro de 2020 o Parlamento Suíço aprovou a revisão da lei federal de combate ao terrorismo. A nova lei provocou muitos protestos, incluindo o lançamento de um referendo popular, um dos principais instrumentos da democracia directa como é praticada na Suíça, permitindo aos cidadãos rejeitar decisões tomadas pelo Parlamento. São necessárias 50 mil assinaturas válidas – confirmadas pelas autoridades competentes, com endereço correspondente à assinatura – para que um referendo seja aprovado. Devido à pandemia, a recolha de assinaturas têm sido feita principalmente por internet, mas os números parecem já ter ultrapassado o dobro das assinaturas necessárias.
Esta reacção popular à nova legislação explica-se e justifica-se pois, de acordo com o website das entidades responsáveis pelo referendo, a nova lei pode abolir a presunção de inocência:
“As medidas previstas na nova lei não são ordenadas por um tribunal, mas pela Polícia Federal, com base em meras suspeitas (não são necessárias provas). A falta de um órgão de controlo judicial é uma violação da separação de poderes. Além disso, estas medidas violam claramente os direitos fundamentais e os direitos humanos.”
A lei também viola a Convenção Europeia de Direitos Humanos, ainda segundo o website mencionado:
“A nova lei prevê a possibilidade de aplicar a prisão domiciliária. (...) Pode ser aplicada sem que exista realmente um crime e não requer provas como o local ou a data do alegado crime. Qualquer pessoa pode ser punida com esta medida durante seis meses e sem necessidade de provas. Esta privação de liberdade representa uma violação da Convenção Europeia de Direitos Humanos. O artigo 5º da Convenção Europeia de Direitos Humanos proíbe a privação arbitrária de liberdade com base unicamente na suspeita. A Suíça seria assim a única democracia ocidental que permitiria a prisão de cidadãos sem qualquer razão. As únicas excepções são os Estados Unidos, com os campos de Guantánamo."
E ainda mais grave, a nova lei também viola a Convenção relativa aos Direitos da Criança, pois suas medidas “podem ser aplicadas a crianças a partir dos 12 anos de idade, respectivamente 15 anos de idade para prisão domiciliária, novamente sem ordem judicial.”
Ampla autoridade à polícia
Cerca de cinquenta professores de direito da Suíça comunicaram ao Conselho Federal as suas preocupações em relação à esta lei.
E peritos do próprio Alto Comissariado para os Direitos Humanos da ONU advertiram que esta nova legislação “viola as normas internacionais de direitos humanos ao expandir a definição de terrorismo, criando um precedente perigoso para a supressão da dissidência política a nível mundial (...).”
Os peritos do Alto Comissariado da ONU “ficaram particularmente alarmados com o facto de a nova definição de ‘atividade terrorista’ da lei já não exigir a perspectiva de qualquer crime. Pelo contrário, pode mesmo abranger actos lícitos destinados a influenciar ou modificar a ordem constitucional, tais como actividades legítimas de jornalistas, da sociedade civil e de activistas políticos.”
Os peritos também criticaram o facto de que a nova lei concede “à polícia federal ampla autoridade para designar ‘potenciais terroristas’ e para decidir sobre medidas preventivas contra eles sem um controlo judicial significativo.”
Sob o pretexto de “luta contra o terrorismo”, muitos governos procuram suprimir qualquer crítica legítima ao modelo neoliberal. Deste modo, leis supostamente criadas para “defender a democracia” são, na verdade, instrumentos de defesa de uma ordem económica particular: o neoliberalismo. O que é novo na legislação da Suíça é a possibilidade de criminalização de jovens: a partir de 12 anos (!), como mencionado. O alvo óbvio desta criminalização é o movimento dos jovens pelo clima. Um número cada vez maior de jovens tem-se manifestado nas ruas em diversas partes do mundo com críticas à falta de acção efectiva dos governos em relação à gravidade da mudança climática, denunciando com muito vigor a incompatibilidade entre o capitalismo neoliberal e a preservação ambiental. Este movimento tem crescido exponencialmente na Suíça, tornando-se uma força política considerável.
Em Setembro de 2018, por exemplo, aconteceu em Berna a maior manifestação já registada na história da cidade: cerca de 100 mil pessoas, na sua vasta maioria jovens, tomaram as ruas em protesto. Este movimento teve um impacto decisivo nas eleições para o Parlamento que se realizaram a seguir, em Outubro, levando o Partido Verde a obter a maior votação da sua história.
No dia 21 de Setembro de 2020 os jovens activistas ocuparam a Praça Federal em Berna, em frente à sede do Parlamento. Esta acção teve muita repercussão na imprensa internacional e mensagens de apoio aos activistas surgiram de várias partes do mundo.
A ocupação, totalmente pacífica, foi dispersada pela polícia e gerou reacções histéricas por parte de muitos parlamentares e de grande parte da imprensa na Suíça, condenando a ação “ilegal” dos activistas. Alguns parlamentares solicitaram que os serviços secretos passassem a investigar os jovens e, mais recentemente, um outro parlamentar suíço chegou a comparar a ocupação com a invasão do Capitólio pelos manifestantes da extrema-direita dos Estados Unidos.
Extrema-direita, o berço do neoliberalismo
Pela nova lei, a maioria dos jovens envolvidos na ocupação poderiam ser acusados de “terrorismo”, sofrendo as punições previstas. Lutar pelo futuro do planeta passou a ser um “crime” a ser punido pelo Estado.
Mas como foi possível que uma legislação que permite a criminalização de crianças a partir dos 12 anos como “terroristas” tenha sido proposta e aprovada pelo Parlamento da democrática e supostamente esclarecida Suíça? Uma tal legislação tem sido há muito o sonho da extrema-direita no Brasil, que tem trabalhado ferozmente pela possibilidade de criminalizar tanto os movimentos sociais como os jovens. Bolsonaro e os seus apoiantes adorariam ter uma lei semelhante no Brasil e provavelmente vão tentar seguir este exemplo da Suíça.
As forças políticas por detrás desta lei têm uma longa história, que em parte é também a história da construção da própria ordem neoliberal. Numa obra importante – The Road From Mont Pélerin – uma coleção de ensaios de vários autores sobre a história do neoliberalismo, Dieter Plehwe escreveu na “Introdução”:
“A dimensão transnacional da história local/nacional do neoliberalismo tem sido particularmente forte no Reino Unido e nos Estados Unidos da América. A Suíça também merece reconhecimento como um espaço neoliberal transnacional particular devido à hospitalidade dos intelectuais e instituições neoliberais suíças aos neoliberais austríacos, alemães e italianos refugiados. Não foi certamente mera coincidência que a Sociedade Mont Pèlerin tenha sido fundada neste país: apenas a Suíça forneceu aos intelectuais neoliberais o espaço intelectual e institucional e o apoio financeiro necessário para organizar uma conferência internacional de e para os neoliberais logo após a Segunda Guerra Mundial. Até ao final dos anos cinquenta, continuou a ser mais fácil para os neoliberais reunirem-se na Suíça do que em qualquer outro lugar: quatro das dez reuniões da Sociedade Mont Pèlerin entre 1947 e 1960 ocorreram na Suíça. Foram necessários mais de dez anos após a guerra para que uma reunião se realizasse nos Estados Unidos.”
As forças políticas e económicas que fizeram a Suíça tão receptiva à ideologia neoliberal, fornecendo “aos intelectuais neoliberais o espaço intelectual e institucional e o apoio financeiro necessário” antes de qualquer outro país, continuam a actuar e são as principais responsáveis pela nova lei.
Num um outro ensaio em The Road From Mont Pélerin, Keith Tribe escreveu:
“O que distingue o neoliberalismo do liberalismo clássico é a inversão entre as relações políticas e económicas. Os argumentos pela liberdade tornam-se económicos e não políticos, identificando a impessoalidade das forças de mercado como o principal meio para assegurar o bem-estar popular e a liberdade pessoal.”
Deste modo, qualquer crítica ao neoliberalismo transforma-se numa crítica à própria liberdade, devendo, portanto, ser punida pelo Estado como “terrorismo”.
Ainda nesta obra, Rob van Horn e Philip Mirovsky observam que o “neoliberalismo é, sobretudo, uma teoria de como reorganizar o Estado de modo a garantir o sucesso do mercado e dos seus participantes mais importantes, as grandes corporações.”
Muitas dessas grandes corporações têm sido justamente o alvo das críticas mais contundentes do movimento pelo clima, causando-lhes um enorme dano à imagem pública. Não é de surpreender, então, que os “participantes mais importantes do mercado” estejam por detrás da elaboração de uma legislação específica para controlar estes “abusos”.
Que uma tal lei anti-terror tenha sido aprovada pelo Parlamento da Suíça revela o poder da ideologia neoliberal dentro deste país e a capacidade das grandes corporações para influenciar governos e legislações mesmo numa reconhecida democracia como a da Suíça. Num momento em que o neoliberalismo fracassa em todo o mundo, uma reacção do establishment neoliberal era de esperar. Pois o neoliberalismo só consegue manter-se pela mentira, pela força ou por uma combinação destas duas. Mas a mentira neoliberal não consegue iludir mais ninguém, o fracasso é por demais visível e eloquente. Para a sua sobrevivência, restam ao neoliberalismo apenas a violência e a repressão, por todos os meios possíveis, inclusive os legais,
A tradição humanitária e democrática da Suíça está agora nas mãos dos seus jovens activistas. O movimento pelo clima tem o potencial de transcender fronteiras e gerações, de unir o Norte e o Sul do planeta numa luta comum pela nossa mãe Terra contra seus exploradores. Mas a reacção combinada do poder económico e do poder de Estado pode ser excessiva e leis como esta mostram claramente os riscos e perigos a que estes jovens estão expostos. Cabe a cada um de nós agora apoiar esta luta, com a alegria, a criatividade e o carinho que a preservação da vida merece.