O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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RÚSSIA E CHINA DESCONGELARAM A GEOESTRATÉGIA

2020-06-14

Do Extremo Ocidente ao Extremo Oriente, a Eurásia é um conceito geoeconómico e geopolítico onde se mexem as pedras de um Grande Tabuleiro de Xadrez, assim definido por Zbigniew Brzezinski, um dos estrategos imperialistas a par de Henry Kissinger. Nesse cenário deverão ser enquadrados os passos em curso para um desanuviamento entre a União Europeia e a Rússia – para desespero da administração Trump – mas também as contradições existentes na redefinição de uma nova ordem internacional onde a parceria estratégica Rússia-China tem um papel cada vez mais determinante – descongelando a geoestratégia moldada pelo imperialismo.

Pepe Escobar, Asia Times/O Lado Oculto

O professor Sergey Karaganov é informalmente conhecido nos círculos influentes da política externa como o "Kissinger russo" - com o bónus extra de não ter de carregar com o rótulo de "criminoso de guerra" desde o Vietname e do Camboja ao Chile e além.

Karaganov é o reitor da Faculdade de Economia Mundial e Assuntos Internacionais da Universidade Nacional de Pesquisa da Escola Superior de Economia de Moscovo. É também o presidente de honra do Presidium do Conselho de Política Externa e de Defesa da Rússia.    

Em Dezembro de 2018 tive o prazer de ser recebido no escritório de Karaganov em Moscovo para uma conversa individual, essencialmente sobre a Grande Eurásia - o roteiro russo para a integração da Eurásia.

Agora Karaganov expandiu as suas principais reflexões para um veículo atlantista italiano normalmente mais destacado pelos seus mapas do que pelas suas “análises" previsíveis, elaboradas como se fossem um comunicado de imprensa directo da NATO.  

Mesmo observando, correctamente, que a União Europeia é uma "instituição profundamente ineficiente" no caminho lento para a dissolução – o que é um eufemismo total - Karaganov observa que as relações Rússia-UE estão a caminho de uma relativa normalização.

Isto é uma coisa que vem sendo discutida activamente nos corredores de Bruxelas há meses. Não é exactamente a agenda prevista pelo Deep State (Estado profundo) dos Estados Unidos – ou mesmo pela administração Trump. O grau de exasperação com as artimanhas da equipa de Trump é inédito.

Ainda assim, como reconhece Karaganov, "as democracias ocidentais não conseguem existir sem um inimigo." Espaço onde entram as banalidades rotineiras do secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, sobre a "ameaça" russa”.

Mesmo quando o comércio da Rússia com a Ásia é agora equivalente ao comércio com a UE, uma nova "ameaça" surgiu na Europa: a China. 

Uma Aliança Interparlamentar sobre a China foi inventada na semana passada como uma nova plataforma de diabolização, reunindo representantes do Japão, Canadá, Austrália, Alemanha, Reino Unido, Noruega e Suécia, assim como membros do Parlamento Europeu.

A China, "sendo liderada pelo Partido Comunista Chinês", deve ser encarada como uma "ameaça" aos "valores ocidentais" - a mesma velha tríade de democracia, direitos humanos e neoliberalismo. A paranóia encarnada na dupla "ameaça" Rússia-China nada mais é do que uma ilustração gráfica do primeiro grande choque do tabuleiro de xadrez: a integração da NATO com a Eurásia.

Uma grande potência asiática 

Karaganov divide a crucial parceria estratégica Rússia-China numa fórmula de fácil absorção: assim como Pequim encontra um forte apoio no poder estratégico da Rússia como contrapoder aos Estados Unidos, Moscovo pode contar com o poder económico da China.

E lembra um facto crucial: quando a pressão ocidental sobre a Rússia estava no auge após o golpe de Maidan na Ucrânia e o referendo na Crimeia, "Pequim ofereceu a Moscovo crédito praticamente ilimitado, mas a Rússia decidiu enfrentar a situação por conta própria".

Um dos benefícios subsequentes é que Rússia e China abandonaram a disputa na Ásia Central - algo que vi com os meus próprios olhos em viagens realizadas no final do ano passado.

Isso não significa que a competição tenha sido eliminada. Conversas com outros analistas russos revelam que o medo do excessivo poder chinês ainda está presente, especialmente quando se trata das relações da China com Estados mais fracos e não soberanos. Mas o resultado final, para um praticante de realpolitik tão bom como Karaganov, é que o "pivot para o Oriente" e a entente estratégica com a China favoreceram a Rússia no Grande Tabuleiro de Xadrez (a Eurásia).  

Karaganov entende totalmente o ADN russo como uma grande potência asiática - levando em consideração tudo, desde política autoritária até à riqueza de recursos naturais da Sibéria.

A Rússia, diz, está "próxima da China em termos de história comum, apesar da enorme distância cultural que os separa". Até ao século XV, ambos estiveram sob o império de Genghis Khan, o maior da história. Se a China assimilou os mongóis, a Rússia acabou por expulsá-los, mas em dois séculos e meio de submissão incorporou muitos traços asiáticos".

Karaganov considera Kissinger e Brzezinski "estrategos lúcidos" e lamenta que, mesmo sugerindo o contrário, "a classe política americana" tenha inaugurado uma "nova Guerra Fria" contra a China. Nesse sentido, observa o objectivo de Washington como o de quem trava uma "última batalha" lucrando com as bases avançadas que os Estados Unidos ainda dominam no que Wallerstein definiria como o colapso do sistema mundial. 

Novo Movimento dos Não-Alinhados

Karaganov é muito acutilante na linha independente da Rússia - contrapondo-a sempre ferozmente a "quem apontava para uma hegemonia global ou regional: dos descendentes de Genghis Khan a Carlos XII da Suécia, de Napoleão a Hitler. Nas esferas militar e política, a Rússia é autossuficiente. Não o é nas esferas económica, tecnológica e cibernética, onde precisa de mercados e parceiros externos, que vai procurar e encontrar".

O resultado é que o sonho de aproximação Rússia-UE permanece muito vivo, mas sob a "óptica euroasiática".  

É aí que entra o conceito de Grande Eurásia, como discuti com Karaganov no nosso encontro: "uma parceria multilateral e integrada, oficialmente apoiada por Pequim, baseada num sistema igualitário de laços económicos, políticos e culturais entre diversos Estados", com a China desempenhando o papel de primus inter pares. E isso inclui uma "parte significativa do extremo ocidente do continente euroasiático, ou seja, a Europa".  

É para isso que a evolução no Grande Tabuleiro de Xadrez parece apontar. Karaganov - correctamente - identifica o oeste e norte da Europa como atraídos pelo "polo americano", enquanto o sul e o leste da Europa estão "inclinados para o projeto euroasiático".  

O papel russo, nesse quadro, será o de "equilibrar as duas potências hegemónicas possíveis" como "garante de uma nova união de nações não-alinhadas". Isto revela uma nova configuração muito interessante do Movimento dos Não-Alinhados.

Encaremos então a Rússia como um dos apoiantes de uma nova parceria multilateral e multivectorial, passando finalmente de um status de "periferia da Europa ou da Ásia" a "um dos centros fundamentais do norte da Eurásia.” Um trabalho em - constante - progresso.


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