O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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DOS CÉUS ABERTOS À ABERTURA DA ÉPOCA NUCLEAR

2020-06-02

Finian Cunningham, Strategic Culture/O Lado Oculto

Outro tratado para travar a guerra morde o pó da derrota. Em menos de dois anos, o presidente Donald Trump já proibiu três grandes tratados de controlo de armamento – um recorde no acto de minar décadas de construção de uma arquitectura internacional de segurança. Primeiro foi o acordo nuclear com o Irão (2018), depois o Tratado de Forças Nucleares de Médio Alcance (INF, 2019) e agora o Tratado Céus Abertos. 

Há ainda uma preocupação crescente com a possibilidade de o governo Trump deixar cair o tratado de controlo de armas que resta, o Novo SART (2010), que limita os mísseis estratégicos de longo alcance em poder da Rússia e dos Estados Unidos. Se assim for, o mundo assistirá a uma corrida aos armamentos nunca vista desde a guerra fria. Estará então aberta a estação propícia para as armas nucleares.

A essa mistura maligna juntam-se as tensões cada vez mais graves entre os Estados Unidos, a NATO, a Rússia e a China. O confronto pode sair do controlo, o que terá consequências catastróficas para o planeta. Existe a sensação de que o risco de conflagração nuclear é maior do que em qualquer outro momento desde a crise dos mísseis em Cuba, em 1962, há muito mais de meio século.

Há fortes suspeitas de que o governo Trump esteja deliberadamente a usar a loucura do medo extremo como táctica de negociação. É uma aposta desmedida e extremamente perigosa para a segurança mundial, mas parece ser esta a maneira diabólica de Trump para alcançar os acordos que pretende.

Chantagem para juntar a China

O que o presidente dos Estados Unidos quer é vincular a China aos tratados de controlo de armas juntamente com a Rússia. O arsenal nuclear da China é uma mera fracção dos que estão em poder dos Estados Unidos ou da Rússia – calcula-se que seja a 20ª parte do stock combinado. Pequim tem declarado repetidamente que não participará em limitações de armas com os Estados Unidos ou a Rússia até que estas duas superpotências nucleares façam primeiro reduções drásticas nos seus números de ogivas. O que parece razoável. A responsabilidade recai assim sobre Washington e Moscovo de demonstrarem progressos no campo do desarmamento, como estão obrigados a fazer no âmbito de Tratado de Não Proliferação, estabelecido em 1970.

Trump, por seu lado, tem repetido que a possível extensão do Novo START com a Rússia depende de conseguir levar a China a um acordo trilateral. O presidente norte-americano parece, portanto, estar a usar a ameaça de uma corrida aos armamentos como tentativa para envolver a Rússia e a China num acordo trilateral. Mas o Novo START é um tratado bilateral entre Washington e Moscovo. Ao fazer pressão para o transformar num instrumento trilateral Trump está a tentar reescrever o acordo com a Rússia de maneira a integrá-lo nos seus objectivos de controlar Pequim. 

Trump está, portanto, a fazer chantagem afirmando que está pronto a revogar a assinatura dos Estados Unidos – e a comprometer a segurança global – para forçar a China a sentar-se à mesa das negociações nos termos pretendidos por Washington.

Quando o governo Trump se retirou do Tratado de Forças Nucleares de Médio Alcance (INF) no ano passado acusou a Rússia de estar a violar o acordo. Moscovo negou as alegações e demonstrou que são infundadas, inclusivamente convidando os Estados Unidos a enviar observadores aos locais sob suspeita, o que foi rejeitado. Mais tarde tornou-se clara a verdadeira razão pela qual Washington decidiu retirar-se do tratado de 1987: o desejo de cercar a China com mísseis nucleares de médio alcance no âmbito da sua estratégia Indo-Pacífico.

Ao abandonar o INF, o governo Trump está a desestabilizar a segurança europeia e a pressionar Moscovo com a constante ameaça de fazer regressar os mísseis de curto e médio alcance dos Estados Unidos ao território europeu.

O aumento da insegurança internacional e o espectro de uma nova corrida armamentista é a táctica seguida por Washington para tentar obrigar a China a limitações de armas a par da Rússia. O desmantelamento do INF e a ameaça de abandono do Novo START fazem parte da mesma estratégia de chantagem de negociações. Não se trata apenas de uma acção no sentido de afrouxar o controlo de armamentos, mas também de associar a Rússia e a China. Talvez o governo Trump esteja a calcular que pode incomodar Moscovo de modo a que este acabe por pressionar Pequim para que aceite “a grande pechincha” de Trump.

Fim dos Céus Abertos

O anúncio do abandono do Tratado de Céus Abertos (OST) parece enquadrar-se nesse plano de jogo. O tratado foi assinado em 1992 e entrou em vigor em 2002, assinado por 35 países, a maioria dos quais europeus. O acordo permite voos de reconhecimento sobre territórios, uma medida considerada de construção de confiança.

Tal como aconteceu com o Tratado INF, a administração Trump está a invocar supostas violações do OST pela Rússia como pretexto para retirar-se de outra forma de controlo de armas. O objectivo real é, novamente, o de gerar insegurança e ameaças latentes para pressionar Moscovo a fazer concessões. O objectivo final de Trump e seus estrategos continua a ser o de arrastar a China para o controlo trilateral de armas.

Trump anunciou a retirada dos Estados Unidos do Tratado Céus Abertos com uma ambiguidade notável.

“A Rússia não cumpre o tratado; então, enquanto assim proceder nós retiramo-nos, mas existe uma possibilidade muito boa de estabelecermos um novo acordo ou de fazer qualquer coisa para reformulá-lo”, disse Trump durante uma recente conferência de imprensa.

Michael Pompeo, o seu secretário de Estado, também expressou mensagens no mesmo sentido e declarou o fim da presença dos Estados Unidos no OST.

Parece mais do que uma coincidência o facto de, na mesma semana, o enviado de Trump às negociações sobre controlo de armamentos, Marshall Billingslea, ter feito uma proposta pontual a Moscovo de estender o Novo START, mas apenas se a China for conduzida a um tratado de limitação nuclear trilateral.

“Pretendemos criar agora um novo regime de controlo de armas para impedir uma corrida armamentista completa. Foi por essa razão que o presidente Trump expressou o forte desejo de ver a China incluída em futuros acordos de controlo de armas nucleares”, disse Billingslea durante uma conferência virtual no Hudson Institut. “Um acordo de controlo de armas em três vias será a melhor maneira de evitar uma corrida armamentista imprevisível”, acrescentou.

Poderá perguntar-se: qual o inconveniente de tentar alcançar um acordo trilateral sobre armas nucleares envolvendo os Estados Unidos, a Rússia e a China? Certamente uma grande oportunidade como esta poderia ser considerada um grande progresso no sentido do desarmamento nuclear geral.

Trata-se, porém, de um raciocínio que põe a carroça à frente dos bois. Em primeiro lugar, os Estados Unidos e a Rússia deverão reduzir significativamente os seus arsenais, como estão obrigados a fazer. Além disso, o controlo de armas e o desarmamento têm tudo a ver com confiança e integridade. Washington está a destruir a confiança e a integridade criando deliberadamente uma situação de insegurança para atingir o seu objectivo geopolítico de controlar a China. De que maneira Trump poderá construir confiança e fazer acordos genuínos quando está a fazer todos os possíveis para matar qualquer confiança num compromisso sério no sentido da obtenção da paz e da segurança internacionais?


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