O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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CHINA REAGE E ENFRENTA AS AMEAÇAS

2020-05-10

Enfrentada a crise do novo coronavírus na província de Hubei, especialmente em Wuhan, a China reanima decididamente as actividades económicas e sociais tendo também em consideração que está a ser vítima de uma concentração de ataques norte-americanos e ocidentais para conter o país como potência emergente. Pequim reage procedendo à restauração das próprias forças e também no âmbito da parceria estratégica com a Rússia, que adquire novas valências. O mundo está em mudança.

Pepe Escobar, Asia Times/O Lado Oculto 

No meio da mais profunda contracção económica em quase um século, o presidente da República Popular da China, Xi Jinping, já tinha deixado muito claro, no mês passado, que o país deveria estar pronto para desafios externos sem precedentes e implacáveis.

Não se referia apenas à possível ruptura das cadeias globais de abastecimentos e à diabolização ininterrupta de todos os projectos relacionados com as Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cintura e Estrada (ICE).

Uma fuga de um suposto documento, secreto dentro da China mas, ainda assim, obtido por alguma fonte obscura ligada ao Ocidente, dá a conhecer, na sua essência, que o jogo de culpas contra a China relacionado com o vírus é como a reacção aos acontecimentos de 1990 na Praça Tiananmen – aí está tudo de novo.  

Segundo o documento invisível, a China teria de "se preparar para o confronto armado entre as duas potências globais" - uma referência aos Estados Unidos. É como se esta fosse uma estratégia agressiva implantada pelo Estado chinês em primeiro lugar, e não uma resposta à escalada massiva da guerra híbrida 2.0 exercida pelo governo norte-americano.

Para todos os efeitos práticos, a diabolização histérica da China em Washington já superou as histerias anteriores, a diabolização da Rússia.  

O que Pequim costumava definir como um "período de oportunidade estratégica" acabou. Corriam rumores, nos círculos intelectuais, de que a direcção do Partido Comunista da China (PCC) acreditava que essa janela estratégica de oportunidade duraria sem obstáculos até a data chave, 2049 - quando o "rejuvenescimento nacional" deveria estar plenamente realizado.

É preciso esquecer tudo isso. Agora o jogo todo é sobre a guerra híbrida 2.0 implantada pelos Estados Unidos para conter a superpotência emergente, custe o que custar. E isso implica que uma infinidade de planos chineses estejam agora a ser acelerados.  

A ideia primordial nos negócios é restaurar a produtividade da máquina do "Made in China". Durante a sua recente visita à província de Shaanxi, historicamente crucial para o PCC, o presidente Xi insistiu nisso, juntamente com a ofensiva anti pobreza. Ele prometera eliminar a pobreza este ano.

Significativamente, e ao contrário de todas as previsões ocidentais, as exportações da China cresceram 3,5% em Abril, em comparação com uma queda de 6,6% em Março. Este facto abala totalmente a lógica da dissociação. O governo japonês, por exemplo, está a acelerar, à pressa, a transferência de fábricas instaladas da China. Não é uma estratégia muito inteligente.

Essas fábricas estão a deixar uma nação que tem tudo menos a erradicação do COVID-19. E mudam-se para o Vietname, onde existe também uma economia socialista (com características vietnamitas).  

O PIB da China caiu 6,8% no primeiro trimestre de 2020. A recuperação já está em andamento. Oficialmente, o desemprego estava em 5,9% no final de Março - sem levar em conta os trabalhadores migrantes que voltaram para as grandes cidades depois de passar o auge do COVID-19 nos campos. Havia projecções de desemprego de 20% - depois recuaram.

A recuperação será uma mistura de estímulos económicos para as empresas, grandes e pequenas; investimentos em infraestruturas; e vouchers para uma grande parte das massas trabalhadoras. O sistema hukou - vinculando direitos sociais ao local de residência - também será reformado. A data chave será 22 de Maio, durante a sessão do Congresso Nacional Popular que fora adiada.  

Cinturão e Estrada a caminho

Geopoliticamente, a análise do think tank francês CAPS (Centro de Análise de Previsão e Estratégia), um braço do Ministério dos Negócios Estrangeiros em Paris, tornou-se praticamente um mantra em todo o Ocidente.

O CAPS está alarmado com o facto de a China se ter tornado indispensável, enquanto questiona seus "valores" e sua "agenda secreta". Com a União Europeia totalmente paralisada e demonstrando graficamente a sua irrelevância em muitos e variados níveis, especialmente em termos de um acordo sobre um pacote de resgate eficaz para todos os seus membros, o Ocidente - em declínio, quase em bloco, está aterrorizado com a possibilidade de a China estar num processo irreversível para se tornar a principal potência global.      

Mesmo depois de sofrer o enorme golpe do COVID-19, Pequim parece estar no controlo de todas as variáveis básicas de sua política económica (instituições financeiras, grandes corporações). O PCC vai duplicar o desenvolvimento de toda a máquina de produção, a par da aplicação generalizada das técnicas de Inteligência Artificial.

O que parece estar agora estabelecido é que a China vai assegurar primeiro os seus interesses nacionais - em termos de cadeias de abastecimentos globais e exportações. A curto e médio prazo, haverá um foco concentrado em Novas Rotas da Seda seleccionadas por via terrestre e corredores de conectividade marítima - incluindo a Rota da Seda da Saúde.  

Mesmo com o COVID-19, o comércio da China com as nações da Iniciativa Cintura e Estrada cresceu 3,2% no primeiro trimestre, algo não desprezível mesmo quando comparado com os 10,8% de todo o ano de 2019.

De acordo com o Ministério do Comércio, Pequim comercializou com 56 nações da Cintura e Estrada espalhadas pela Ásia, África, Europa e América do Sul bens representando importantes 30% do total do comércio anual. Agora compare-se a situação com a contracção de 13% a 32% no comércio global prevista pela Organização Mundial do Comércio (OMC) para 2020.

Portanto, mesmo que uma queda do comércio no primeiro trimestre de 2020 tenha sido mais do que a previsível, a actividade deverá ser retomada rapidamente, especialmente em relação ao Sudeste Asiático, Europa Oriental e mundo árabe.  

A ICE está previsivelmente a enfrentar uma série de desafios a curto e médio prazo - todos ligados à conectividade interrompida: quebras nas cadeias de abastecimentos, restrições generalizadas de viagens e vistos, controlos fronteiriços severos, atrasos nos projectos por causa do aumento dos custos.  

Exemplos incluem o caminho-de-ferro de alta velocidade Jakarta-Bandung no valor de seis mil milhões de dólares, com 150 quilómetros de extensão na Indonésia: os especialistas técnicos chineses regressam agora lentamente depois de estarem ausentes por causa das restrições governamentais. Ao longo do Corredor Económico China-Paquistão, a quarentena obrigatória para os técnicos chineses congelou o progresso durante pelo menos dois meses. O mesmo se aplica a projectos no Bangladesh e no Sri Lanka.

De acordo com um relatório da Economist Intelligence Unit (da Revista The Economist), a COVID-19 faria descarrilar a Iniciativa Cintura e Estrada em 2020. Isso pode ter acontecido apenas durante os primeiros quatro meses do ano. Mesmo sob o COVID-19, Pequim assinou acordos para novos projectos da ICE em Mianmar, Turquia e Nigéria.

A construção da ferrovia de alta velocidade China-Laos, com 414 quilómetros de extensão - ligando Yunnan, via Vientiane, à Tailândia, Malásia e Singapura – continua em construção, com a conclusão prevista para o final de 2021. A Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), significativamente, é agora o parceiro comercial número um da China, à frente da União Europeia, que se afogou na crise.  

De olho no yuan digital

O segredo é que a complexa macro estratégia do PCC não será perturbada. Implicando isto que a China continuará a ser o principal motor da economia global, com ou sem a interrupção, e com a ICE no centro da estratégia de política macro externa da China, aliada a um sólido impulso em direcção ao multilateralismo.

Por muito que vastas faixas da economia mundial, especialmente em todo o Sul Global, não mostrem intenção de se desligar da China, Pequim terá de ter em conta a necessidade de contra atacar a guerra híbrida de espectro total lançada por Washington em todas as frentes - geoeconómica, cibernética, biológica, psicológica.  

Como Kishore Mahbubani assinalou no seu último livro, isso não significa que a China tenha a intenção - e a capacidade - de se tornar uma nova polícia do mundo. Certamente irá acelerar o seu poder económico e financeiro, por exemplo na implementação cuidadosa do yuan digital, possivelmente lastrado em ouro.

Existe também uma incessante viragem do jogo que é responsável por noites de insónia do establishment dos Estados Unidos: a parceria estratégica Rússia-China.

Há duas semanas, um acontecimento geopolítico de grande importância foi virtualmente enterrado pela corona-histeria.

Moscovo está plenamente ciente de que Washington está a implantar sistemas de defesa antimíssil muito próximos das fronteiras da Rússia - concretizando o potencial para lançar um primeiro ataque nuclear. Pequim está acompanhando estes desenvolvimentos com preocupação.

O fato de Moscovo estar ciente disso é apenas uma parte da história: o ponto-chave é que a Rússia confia na possibilidade de armas sofisticadas como o Sarmat e o Avangard tratarem do assunto.

Mais complexa é a questão dos laboratórios de armas biológicas do Pentágono na ex-URSS - uma questão também acompanhada de perto por Pequim. Moscovo identificou um laboratório perto de Tblisi, na Geórgia, e 11 deles na Ucrânia. E já em 2014, quando a Crimeia foi reanexada à Rússia, os cientistas tinham descoberto um laboratório em Simferopol.

Todas essas informações - sobre armas nucleares e biológicas - como fontes me confirmaram, são trocadas ao mais alto nível da parceria estratégica Rússia-China.

O próximo grande movimento no tabuleiro do xadrez geopolítico aponta para o facto de esta parceria estratégica negociar como equipa as suas relações bilaterais com os Estados Unidos.

Nada poderia ser mais racional, considerando que os dois países são considerados as duas maiores "ameaças" aos Estados Unidos, de acordo com a Estratégia de Segurança Nacional.  

Fala-se numa grande mudança de paradigma.  


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