O REGRESSO DO MILITARISMO ALEMÃO
2020-01-14
Há poucos anos ainda, um presidente federal alemão foi obrigado a demitir-se por defender a afirmação dos interesses alemães através da guerra. Hoje, essa política militarista é promovida pela ministra da Defesa e candidata a chanceler, Annegret Kramp-Karrenbauer (CDU), sem que nada lhe aconteça. A ministra, note-se, sucede no cargo à nova presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, para quem “a Europa deve aprender a utilizar a linguagem da força”. A Alemanha imperial, agora no quadro da NATO e da União Europeia, retoma o seu caminho
Karl Muller, Horizons et Débats/O Lado Oculto
Helmut Schmidt (Partido Social Democrata, SPD), chanceler alemão de 1974 a 1982, foi ministro da Defesa entre 1969 e 1972. O seu mandato neste cargo ficou assinalado por uma redução do serviço militar de base de 18 para 15 meses e pela criação das escolas superiores militares (Bundeswehrhochsschulen). Foram anos caracterizados também por uma política alemã de contenção ou desanuviamento. A ideia de fazer a guerra com soldados alemães (então da Alemanha Ocidental) na Europa ou em qualquer outra parte do mundo era considerada, na altura, como totalmente absurda. Alguns anos antes, o chanceler Ludwig Erhard (CDU, direita) tinha rejeitado qualquer implicação militar na guerra dos Estados Unidos contra o Vietname, apesar das fortes pressões exercidas pelo governo norte-americano.
Cinquenta anos mais tarde, em 2019, a Alemanha tem uma ministra da Defesa, Annegret Kramp-Karrenbauer (CDU), que procura, através do seu mandato, atingir a posição de chanceler. Porém, não o faz com menos exército, com sinais de contenção e uma vontade de paz, mas defendendo um aumento do arsenal militar e com a vontade de incrementar a disponibilidade das forças armadas alemãs (Bundeswehr) para entrar em guerra e ampliar as suas zonas de intervenção.
O sistema de coordenadas
A política da ministra alemã da Defesa desenvolve-se num sistema de coordenadas de política interna e externa em mutação que apenas pode ser abordado aqui de uma maneira sucinta. Uma característica marcante deste sistema de coordenadas é o desacordo reinante tanto na Alemanha como nas relações internacionais. Citamos apenas alguns exemplos: mesmo as propostas mais recentes da ministra alemã da Defesa não geram um consenso nacional. A grande maioria dos alemães continuam a rejeitar as missões alemãs de combate no estrangeiro e os partidos concorrentes da CDU utilizam com objectivos políticos o ambiente que se instalou no país sobre esses assuntos. Isso reflecte o período pré-eleitoral: numerosas reacções controversas às novas propostas de Kramp-Karrenbauer provam-no bem.
A isso junta-se o desacordo entre a Alemanha e a França. Enquanto o presidente francês, Emmanuel Macron, fala da “morte cerebral” da NATO e apela a um poderoso exército europeu, a política alemã insiste na manutenção de uma ligação transatlântica estreita nos preparativos de guerra alemães e europeus. Nas circunstâncias actuais deixou de ser possível ter uma perspectiva fiável do caminho que tomarão os Estados Unidos, até agora potência dirigente da NATO, durante os próximos anos. A política alemã distancia-se do presidente norte-americano em exercício como nunca aconteceu antes na história da Alemanha, mas enquanto isso acontece submete-se quase totalmente à força norte-americana, que está associada a nomes como Clinton e Obama e à pretensão de uma ordem mundial globalizada dominada por essa força.
Outro exemplo: A transição para um mundo multipolar, que há anos se vem anunciando, não é aceite pelas forças que até agora reivindicaram um poder global. O risco de uma guerra pela supremacia mundial é considerável.
Kramp-Karrenbauer e a política mundial
As reivindicações de Kramp-Karrenbauer foram claramente expressas na sua conferência de 7 de Novembro aos soldados da Escola Superior Militar de Munique.
Muitos órgãos de comunicação social falaram do assunto e entrevistaram a ministra sobre o conteúdo da palestra. No início da intervenção falou de “tempos incertos e em mutação” e de um “mundo que perdeu as suas referências”. Como presumíveis elementos chave deste processo, a ministra enumerou “a agressão russa na Ucrânia”, “o crescimento poder político-militar da China em paralelo com uma ânsia de poder que não se limita à sua vizinhança próxima”. Em resumo: “assistimos actualmente a um regresso da concorrência entre grandes potências por esferas de influência, com um espírito de dominação”.
A análise de Kramp-Karrenbauer segue as recomendações do seu conselheiro Karl-Heinz Kamp, que até recentemente foi presidente do Gabinete Federal para a Política de Segurança (Bundesamt fur Sicherheitspolitik).
Kamp é desde Outubro de 2019 o representante especial do director político do Ministério federal da Defesa. As suas colaborações em diversos jornais de língua alemã têm demonstrado que é um dos agitadores da política germânica de guerra. Em 5 de Setembro, na revista Cicero, apelou a um maior envolvimento da NATO (e das forças militares alemãs) na Ásia, porque “a subida da China terá efeitos consideráveis na situação securitária da Europa”. Enquanto a força russa, segundo ele, “assenta em pés de barro” e os Estados Unidos são, de facto, a potência mundial “mas querem cada vez menos desempenhar esse papel”, a China “defende os seus interesses para lá das próprias fronteiras e sem ter em conta as sensibilidades dos vizinhos”. Deste modo, segundo Kamp, “o dinamismo económico, político e militar da China vai continuar”, pelo que este país acabará “por tornar-se a segunda superpotência ao lado dos Estados Unidos”.
“NATO deverá virar-se para a Ásia”
Kamp considera que a China vai estar em condições de “pôr em causa a ordem mundial ainda dominada pela América”. O país asiático lança as vistas para todas as regiões do mundo, ameaçando assim os interesses de todos, incluindo os Estados europeus membros da NATO. “Se a razão de ser da NATO é garantir a segurança dos seus membros e defender os seus interesses vitais, terá como tarefa fundamental posicionar-se perante todas as ameaças à segurança externa, seja qual for a sua origem geográfica. Se os perigos surgirem na região Ásia-Pacífico, a NATO deverá virar-se para essa região", considera Kamp. Para esse efeito propõe um programa em três fases para conter a China. “A longo prazo”, escreve, “se a hegemonia mundial da China se concretizar também no plano militar, os grandes Estados europeus (…) não poderão evitar, num terceiro tempo, desenvolver eles próprios as capacidades que lhes permitam projectar o seu poder sobre vastos territórios, designadamente no sector marítimo”. A Alemanha e a Europa como potência marítima? Isso conduzirá provavelmente a “uma futura NATO que terá como uma das tarefas essenciais a luta contra os perigos na região Ásia-Pacífico”.
Como consequência disto, Kramp-Karrenbauer, por sua vez, declara: “Os nossos parceiros da região indopacífico (…) sentem-se cada vez mais oprimidos pelas pretensões da China. Eles esperam um sinal de solidariedade claro. (…) É tempo de a Alemanha lhes dar esse sinal mostrando a nossa presença na região juntamente com os nossos aliados”.
Como antes da Primeira Guerra Mundial
Estes comentários são-nos familiares e recordam-nos as décadas que precederam a Primeira Guerra Mundial e o que, na época, essencialmente os britânicos agitavam: a ameaça alemã. Esta ameaça terá sido substituída actualmente pelo perigo russo e ainda mais pelo perigo chinês? Até que ponto tudo isto é real? Ou trata-se simplesmente de nova propaganda de preparação da guerra e de dissimular a veleidade individual de tornar-se uma potência mundial? As pessoas tornaram-se sensíveis a estas questões. Um pequeno trabalho que acaba de ser publicado em Frankfurt pelas edições Westend contém uma tradução alemã de uma conferência do geoestratego britânico Halford John Mackinder feita em 1904: “A chave do domínio mundial. A teoria do Heartland”. No mesmo livro, Willy Wimmer, antigo secretário de Estado do Ministério alemão da Defesa, acrescenta uma análise da situação actual.
“Todos os meios militares que forem necessários”
Kramp-Karrenbauer e a política alemã tecem em conjunto a sua imagem diabolizante do inimigo. Para a ministra alemã da Defesa, isso só pode ter como única consequência uma declaração abstracta do género: a Alemanha deve assumir, “a partir de agora, mais responsabilidades no mundo”.
Há alguns anos, o presidente federal Horst Kohler teve de se demitir depois de ter falado em guerras pelos interesses alemães. Kramp-Karrenbauer faz o mesmo actualmente, mas com toda a impunidade. Segundo a ministra, a Alemanha “deve fazer mais” para proteger os seus “valores e interesses”; na “resolução dos conflitos”, isto é também nas guerras através do mundo, a Alemanha deverá “intervir mais cedo, de maneira mais decidida e mais significativa”: “Um país com a nossa dimensão e a nossa força económica e tecnológica, um país com a nossa posição estratégica e com interesses globais como os nossos, este país não pode simplesmente ficar de lado a olhar”.
Além do mais, a Alemanha é uma “nação mercantil (…) dependente de rotas marítimas livres e pacíficas”. Mas isso “tem o seu preço”. Por isso, a Alemanha deve aumentar o seu arsenal militar. A Alemanha deve “desenvolver um ponto de vista sobre cada questão que tenha a ver com interesses estratégicos”. Como todos os Estados do mundo, a Alemanha tem “os seus próprios interesses estratégicos. Por exemplo, enquanto nação mercantil colocada no coração da Europa e activa na rede mundial”. É por isso que a Alemanha de Kramp-Karrenbauer “deve também fazer qualquer coisa e tomar iniciativas para transformar atitudes e interesses em realidade”. Isso “compreende também colocar em questão o nosso status quo actual em matéria de política de segurança. (…) E, enfim, isso compreende igualmente a nossa disponibilidade para explorar, de forma concertada com os nossos aliados e parceiros, toda a panóplia de meios militares quando necessário”.
Nada sobre a carta das Nações Unidas
Sublinhemos, da mesma maneira, que na sua exposição a ministra não fez qualquer menção à Carta das Nações Unidas e à igualdade de direitos de todos os Estados soberanos do mundo, ao dever de paz para todos os Estados e povos, à proscrição da guerra.