O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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O FMI, ESSA MÁQUINA DE TERROR IMPERIAL

Georgieva e Lagarde: uma do Banco Mundial para o FMI, outra do FMI para o BCE, pessoas diferentes, siglas distintas para o mesmo sistema de terror financeiro imperial

2019-10-25

Vijay Prashad*, Globetrotter/Independent Media Institute/O Lado Oculto 

Mais uma reunião anual do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Washington. Desta feita, e pela primeira vez, os trabalhos iniciaram-se sob a direcção da nova presidente da instituição, a búlgara Kristalina Georgieva, a quem bastou atravessar a rua para assumir funções, pois antes estava na presidência do Banco Mundial. Sucedeu à francesa Christine Lagarde, que por acaso atravessou o oceano Atlântico para exercer funções de presidente do Banco Central Europeu (BCE). Continuamos a assistir a uma dança de cadeiras entre um punhado de burocratas entrando e saindo de elevadas posições. 

Ao longo dos últimos 40 anos, o FMI teve sempre a mesma agenda: garantir que os países em vias de desenvolvimento sigam as regras de globalização impostas pelos Estados capitalistas avançados. A soberania destes países em desenvolvimento tornou-se irrelevante, pois os seus governos são obrigados a ceder às pressões do FMI sobre as políticas fiscal e monetária e também sobre a agenda de comércio e desenvolvimento. Qualquer tentativa para romper com a ortodoxia do FMI tem como resposta uma feroz série de sanções, incluindo a sinalização do FMI aos credores internacionais para que não façam empréstimos a qualquer país que a instituição considere recalcitrante. Os fundos só fluirão para países em dificuldades se aceitarem o pacote político que lhes for estabelecido, não pelos legisladores nacionais mas sim pelos economistas do FMI instalados em Washington DC.

“Distúrbios do FMI”

Durante estas quatro décadas foram frequentes as revoltas de populações nas ruas de países que, mercê de acordos com o FMI, foram submetidos a situações de austeridade social. Na década de oitenta do século passado, esses levantamentos populares foram designados coo “distúrbios do FMI”. Estava claro para muita gente que tinham sido as políticas impostas pelo FMI a provocar situações desesperadas que levaram as multidões a protestar nas ruas. A designação desses movimentos era, portanto, adequada: o ênfase era colocado onde devia ser: no FMI e não nos distúrbios em si.

Um dos levantamentos mais conhecidos desse período aconteceu na Venezuela – o “Caracazo” de 1989 – que abriu o processo que viria a levar Hugo Chávez ao poder e ao início da Revolução Bolivariana. É aceitável considerar que o processo de 2011 designado como “Primavera Árabe” tenha resultado do aproveitamento de situações de descontentamento popular geradas pelo FMI, designadamente as políticas de austeridade combinadas com aumentos de preços dos alimentos. As actuais situações no Paquistão e no Equador devem ser englobadas no conceito de “distúrbios do FMI”.

Sorrisos traiçoeiros

Perante esses levantamentos o FMI procura utilizar sempre novas linguagens para associar a políticas antigas. É assim que se ouve falar em “pactos sociais”, “ajustes estruturais” e até na bizarra “austeridade expansionista”. As discussões sobre género e ambientalismo dentro do FMI são muito louváveis mas não passam de palavras para adornar um regime sustentado na austeridade contra as maiorias das populações. Sobre os sorrisos e as palavras simpáticas está um cérebro que estabelece uma terrível dependência de políticas moldadas por cortes salariais, redução de sectores públicos, privatizações, algemas nos gastos públicos e total liberalização do funcionamento das empresas. A retórica mais doce de nada serve para tornar o quadro político menos severo.

O povo do Equador levantou-se contra os acordos do presidente Lenin Moreno com o FMI. Por causa disso houve um recuo na decisão de cortar os subsídios aos combustíveis. Moreno não teve escolha: seria pura e simplesmente derrubado se continuasse pelo mesmo caminho.

Qual democracia?

Agora, Moreno tem de voltar ao FMI. Se as normas democráticas prevalecessem, o FMI deveria respeitar o “referendo” do povo equatoriano. Mas não existe democracia no FMI. A instituição marcha ao ritmo do seu principal financiador. Actualmente, os Estados Unidos dispõem de 16,52% das acções com direito de voto. Seguem-se o Japão (6,15%), a China (6,09%), a Alemanha (5,32%), o Reino Unido e a França, cada um com 4,03%. Por “convenção”, o presidente do FMI é europeu, mas os europeus nada controlam no FMI. Em 1998, o New York Times deixou escapar que o FMI “age como um braço do Tesouro dos Estados Unidos”. Washington tem, de facto, um direito de veto na definição da política do Fundo.

Quanto isso é do interesse dos Estados Unidos, a ortodoxia do FMI é suspensa (o caso do Egipto de Mubarak em 1987 e 1991). Quando convém aos Estados Unidos colocarem os pauzinhos na engrenagem de um determinado país é exactamente isso que o FMI faz. Que o povo do Equador ou de qualquer outro país viva em democracia isso é irrelevante; o que é relevante – seja através da força ou da trapaça – é que os povos se curvem perante as imposições do FMI e, por detrás delas, dos Estados Unidos. Moreno retirou os cortes dos subsídios. É provável, contudo, que nos bastidores ele encontre maneira de os retomar, com outro nome ou outro mecanismo. O FMI não lhe exigirá menos do que isso. 

A tragédia humana do Malawi

As consequências da ortodoxia do FMI são muitas vezes mortais, como aconteceu no trágico e doloroso caso do Malawi. Em 1996, os enviados do FMI pressionaram o governo do Malawi a privatizar a sua empresa de desenvolvimento e comercialização agrícola. Esta empresa administrava o stock de cereais no Malawi e regulava os preços de venda no país.

A privatização da empresa, em 1999, deixou o governo do Malawi sem meios para proteger a população em caso de emergência. Entre Outubro de 2001 e Março de 2002, o preço do milho aumentou 400%. Inundações em 2000-2001, seguidas por um ano de seca, colocaram em perigo a produção de alimentos no país. As pessoas começaram a morrer – até cerca de três mil. O FMI não cedeu. O Malawi teve de continuar a pagar a sua dívida: em 2002 gastou 70 milhões de dólares só em cobranças do serviço da dívida, o que representou cerca de 20% do orçamento nacional (mais do que o Malawi gastou no conjunto dos sectores de saúde, educação e agricultura). Não houve salvação para o Malawi, cuja crise alimentar se prolonga até hoje. Bakili Muluzi, na época o presidente do país, disse: “O FMI é o culpado da crise alimentar aguda”. O que aconteceu com o Malawi em 2002 é o que acontece com tantos outros países que sofrem os ataques do FMI.

Na reunião anual do FMI ninguém levantará, obviamente, a questão da democracia, tanto em termos do próprio funcionamento da instituição como do relacionamento do FMI com os países soberanos através do mundo. As ruas do Equador rejeitaram as imposições do FMI. O eleitorado da Argentina fará o mesmo dentro de dias. Haverá espaço para estabelecer um debate sobre a divergência entre a política do FMI e a democracia? A principal razão destes levantamentos populares não é apenas sobre as pessoas quererem subsídios dos combustíveis, preços e uma moeda estáveis; o que elas pretendem, acima de tudo, é terem o controlo democrático da sua própria economia.

*Historiador, editor e jornalista indiano; director do Tricontinental: Institute for Social Research



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