A NOVA ROTA DA SEDA E OS ATAQUES À CHINA

2020-12-21
Pepe Escobar, Asia Times/O Lado Oculto
Sete anos depois de lançados pelo presidente Xi Jinping, primeiro em Astana e depois em Jacarta, os projectos chineses das Novas Rotas da Seda ou Iniciativa Cintura e Estrada (ICE) – Belt and Road Iniciative (BRI) – deixam cada vez mais a oligarquia plutocrática norte-americana num transe alucinado.
A paranóia implacável sobre a "ameaça" chinesa tem muito a ver com a saída oferecida por Pequim a um Sul Global permanentemente endividado devido à exploração do FMI e do Banco Mundial.
Na velha ordem, as elites político-militares eram rotineiramente subornadas em troca do acesso sem restrições das empresas aos recursos das suas nações, juntamente com esquemas de privatização e austeridade total ("reformas estruturais").
Esta situação prolongou-se durante décadas, até que a Iniciativa Cintura e Estrada alterou as regras do jogo em termos de construção de infraestruturas – proporcionando uma alternativa ao monopólio imperial.
O modelo chinês permite todo tipo de impostos paralelos, vendas, alugueres, arrendamentos - e lucros. Isto significa a criação de oportunidades de receitas extraordinárias para os governos anfitriões - com um corolário importante: a liberdade em relação às imposições neoliberais estranguladoras do FMI/Banco Mundial. Isto é o que está no centro da célebre política "win-win" (de vantagens mútuas) proposta pela China.
Além disso, o foco estratégico geral da ICE no desenvolvimento de infraestruturas não apenas em toda a Eurásia, mas também em África, implica uma grande mudança no jogo geopolítico. A ICE está a fazer com que vastas áreas do Sul Global se tornem completamente independentes da armadilha da dívida imposta pelo Ocidente. Para dezenas de nações, esta é uma questão de interesse nacional. Neste sentido, a Cintura e Estrada pode considerar-se um mecanismo pós-colonialista.
A ICE, de facto, reflecte a simplicidade de Sun Tzu aplicada à geoeconomia: nunca interromper o inimigo quando está a cometer um erro - neste caso escravizando o Sul Global através de uma dívida perpétua; usar então as próprias armas - neste caso a "ajuda" financeira - para desestabilizar a prepotência inimiga.
Na estrada com os mongóis
É claro que nenhum dos aspectos atrás focados será capaz de serenar o vulcão paranóico, que continuará a cuspir um dilúvio de alertas vermelhos 24 horas por dia, sete dias por semana, zombando da ICE como "pobremente definida, mal administrada e visivelmente fracassada". "Visivelmente", é claro, apenas para os excepcionalistas.
Previsivelmente, o vulcão paranóico alimenta-se de uma mistura tóxica de arrogância e desconhecimento crasso da história e da cultura chinesas.
Xue Li, director do Departamento de Estratégia Internacional do Instituto de Economia e Política Mundial da Academia Chinesa de Ciências Sociais, mostrou que "desde a proposta de Iniciativa Cintura e Estrada, em 2013, a diplomacia chinesa deixou de manter um perfil discreto para se tornar mais proactiva nos assuntos globais". Mas a política de "parceria em vez de aliança" não mudou, e é pouco provável que mude no futuro. O facto indiscutível é que o sistema de diplomacia de alianças preferido pelos países ocidentais é a escolha de algumas nações do mundo; mas a maioria dos países preferem a diplomacia não-alinhada. Além disso, a grande maioria são nações em desenvolvimento na Ásia, África e América Latina".
Os atlantistas estão desesperados porque o "sistema de diplomacia de alianças" está em declínio. A esmagadora maioria do Sul Global está agora a ser reconfigurada como um Movimento Não-Alinhado (MNA, NAM) recentemente reactivado - como se Pequim tivesse encontrado uma maneira de reavivar o Espírito de Bandung de 1955.
Os estudiosos chineses gostam de citar um manual imperial do século XIII, segundo o qual as mudanças políticas deveriam ser "benéficas para o povo". Se elas beneficiarem apenas os funcionários corruptos, o resultado é o luan ("caos"). Deste ponto de vista, a ênfase chinesa do século XXI está na política pragmática ao invés da ideologia.
Comparando paralelos esclarecidos com as dinastias Tang e Ming, na verdade é a dinastia Yuan que oferece uma introdução fascinante ao funcionamento interno da ICE.
Façamos então uma pequena viagem de regresso ao século XIII, quando o imenso império de Genghis Khan foi substituído por quatro khanates ou canatos.
Existiram o Canato do Grande Khan - que se tornou a dinastia Yuan - governando a China, Mongólia, Tibete, Coreia e Manchúria; o Ilcanato, fundado por Hulagu (o conquistador de Bagdade), governando o Irão, o Iraque, o Azerbaijão, o Turquemenistão, partes da Anatólia e do Cáucaso; a Horda de Ouro governando a estepe noroeste da Eurásia, da Hungria Oriental à Sibéria e, acima de tudo, os principados russos; e o Canato de Chaghadaid (baptizado em homenagem ao segundo filho de Genghis Khan) governando a Ásia Central do Xinjiang Oriental ao Uzbequistão, até à ascensão de Tamerlão ao poder em 1370.
Nesses tempos assistiu-se à enorme aceleração do comércio ao longo da Rota da Seda Mongol.
Todos esses governos controlados pelos mongóis privilegiaram o comércio local e internacional. Esta situação proporcionou um boom nos mercados, impostos, lucros - e prestígio. Os canatos rivalizaram para poder contar com os melhores estrategos comerciais. Estabeleceram as infraestruturas necessárias para viagens transcontinentais (a ICE do século XIII) e abriram o caminho para múltiplos intercâmbios Leste-Oeste, transcivilizacionais.
Quando os mongóis conquistaram os Song, no Sul da China, expandiram o comércio terrestre da Rota da Seda para a Rota Marítima da Seda. A dinastia Yuan passou a controlar os poderosos portos da China Meridional. Deste modo, quando se registava qualquer tipo de turbulência em terra o comércio transferia-se para os mares.
Os eixos-chave funcionavam através do Oceano Índico, entre o Sul da China e a Índia, e entre a Índia e o Golfo Pérsico ou o Mar Vermelho.
As mercadorias viajavam por terra para o Irão, Iraque, Anatólia e Europa; por mar, através do Egipto e do Mediterrâneo, para a Europa; e de Aden para a África Oriental.
Funcionava igualmente uma rota marítima de comércio de escravos entre os portos da Horda Dourada no Mar Negro e no Egipto - dirigida por comerciantes muçulmanos, italianos e bizantinos. Pelos portos do Mar Negro transitavam mercadorias de luxo que chegavam por terra vindas de Leste. E as caravanas viajavam para o interior da costa da Índia durante as perigosas estações das monções.
Esta frenética actividade comercial foi uma proto-ICE que atingiu o auge nos anos 1320 e 1330 até ao colapso da dinastia Yuan, em 1368, em paralelo com a Peste Negra na Europa e no Médio Oriente. O ponto-chave: todas as estradas terrestres e marítimas estavam interligadas. Os planificadores da ICE do século XXI beneficiam de uma longa memória histórica.
"Nada mudará fundamentalmente"
Agora compare-se esta riqueza do intercâmbio comercial e cultural com a paranóia primária, provinciana, anti-ICE e generalizada anti-China nos Estados Unidos. O que obtemos é o Departamento de Estado, em tempos de saída de Mike "Nós Mentimos, Trapaceamos, Roubamos" Pompeo emitindo uma diatribe insignificante sobre o "Desafio China". Ou a Marinha norte-americana reactivando a Primeira Esquadra, provavelmente com base em Perth, para "ter a sua marca no Indo-Pacífico" e assim manter "o domínio marítimo numa era de grande competição de poderes".
O financiamento do Pentágono em 2021será de 740 500 milhões de dólares, valor astronómico que será supervisionado em teoria por Lloyd Austin, um general do império armamentista Raytheon, último “comandante geral” dos Estados Unidos no Iraque que dirigiu o CentCom entre 2013 e 2016 e depois se aposentou em troca de alguns suculentos cargos de portas giratórias como o de membro da direcção da Raytheon e também da Nucor, empresa ultratóxica, poluidora de água, atmosfera e solos.
Austin é um personagem que apoiou a guerra no Iraque, a destruição da Líbia e supervisionou o treino dos “rebeldes moderados” para injectar na Síria – também conhecidos por Al-Qaida reciclada – autores de chacinas de milhares de civis sírios.
A Lei de Autorização de Defesa Nacional, que integra o orçamento do Pentágono, está repleta de “ferramentas para contar a China”.
Incluindo:
1. A chamada "Pacific Deterrence Initiative (PDI) - Iniciativa de dissuasão do Pacífico, código de contenção da China no Indo-Pacífico, impulsionando o Quad (grupo informal incluindo Estados Unidos, Japão, Índia e Austrália).
2. Operações massivas de contrainteligência.
3. Uma ofensiva contra a "diplomacia da dívida". Uma acção absurda: os acordos da ICE são voluntários, com base em vantagens mútuas e abertos à renegociação. As nações do Sul Global privilegiam este sistema porque os empréstimos são a longo prazo e com juros baixos.
4. Reestruturação das cadeias globais de abastecimento conduzidas pelos Estados Unidos. Boa sorte com isso. As sanções contra a China permanecerão em vigor.
5. Pressão generalizada forçando as nações a não utilizarem o sistema 5G da Huawei.
6. Reforçar Hong Kong e Taiwan como cavalos de Tróia para desestabilizar a China.
O diretor da Inteligência Nacional norte-americana, John Ratcliffe, já deu o tom: "Pequim pretende dominar os Estados Unidos e o resto do planeta dos pontos de vista económico, militar e tecnológico”. Sinta medo, muito medo do terrível Partido Comunista da China, "a maior ameaça à democracia e à liberdade no mundo inteiro desde a Segunda Guerra Mundial".
Aí está: Xi Jinping é o novo Hitler.
Portanto, nada mudará fundamentalmente a partir de Janeiro de 2021 - como prometido oficialmente pela dupla vitoriosa Joe Biden-Kamala Harris: manter-se-á uma guerra híbrida contra a China, distribuída por todo o espectro, como Pequim já compreendeu perfeitamente.
E daí? A produção industrial da China continuará a crescer enquanto nos Estados Unidos continuará a diminuir. Haverá mais avanços dos cientistas chineses, como a computação quântica fotónica - que realizou 2600 milhões de anos de computação em quatro minutos. E o espírito da dinastia Yuan do século XIII continuará a inspirar a Iniciativa Cintura e Estrada.