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PIRATARIA EM LONDRES COM O OURO DA VENEZUELA

2020-07-06

Gabriela Kuenhle*, America Latina en Movimiento/O Lado Oculto

O direito nacional e internacional deixou de contar. O actual espectáculo legal montado no Tribunal de Comércio de Londres sobre as reservas de 30 toneladas de lingotes de ouro venezuelanas guardadas na Grã-Bretanha conduz a esta conclusão. Surpreendentemente, a uma velocidade que ninguém imaginaria, o tribunal presidido pelo juiz Nigel Teare decidiu reconhecer unicamente Juan Guaidó como presidente legítimo da Venezuela. Um acto de moderna pirataria. 

Em 22 de Junho começou em Londres o julgamento da querela pelos activos da Venezuela bloqueados em Inglaterra. Trata-se de 1300 milhões de dólares em propriedades estatais venezuelanas. Durante décadas os governos de Caracas, inclusivamente os anteriores ao “chavismo”, usaram as suas barras de ouro guardadas nas abóbadas subterrâneas do Banco de Londres para realizarem transacções financeiras internacionais. Actualmente o Banco de Londres nega-se a cumprir com a sua obrigação de devolvê-las à luz de um contrato internacional em vigor. 

Em virtude da dramática situação económica na Venezuela, aprofundada e levada até à asfixia económica pelas sanções impostas pelos Estados Unidos, o governo de Nicolás Maduro tenta há um ano recuperar os activos, mas sem êxito. Em consequência, o Banco Central da Venezuela (BCV) apresentou queixa contra o Banco de Inglaterra (BoE) em 14 de Maio por incumprimento de contrato.

O juiz Nigel Teare abriu o processo na semana passada. Aceitou de antemão uma estratégia de litígio que requeria, como primeiro passo, esclarecer quem é o presidente legítimo da Venezuela “reconhecido” como tal pelo governo britânico (!): o presidente Maduro ou o dirigente opositor, o autodenominado “presidente interino” Juan Guaidó.

Poderá a Grã-Bretanha decidir sobre um assunto da soberania da Venezuela?

O juiz Teare introduziu um marco político no processo legal, o que cria um precedente perigoso. Como se fosse de direito que um poder estrangeiro – a Grã-Bretanha – possa decidir sobre um tema que afecta a soberania de uma nação, esquivando-se a consultar a vontade da sua população.

Em 22 de Junho, o primeiro dia do julgamento, o advogado de Guaidó, Andrew Fulton, argumentou que a Grã-Bretanha reconheceu Guaidó “legal e politicamente” como o presidente da Venezuela. Citou uma declaração do ministro britânico dos Negócios Estrangeiros, Jeremy Hunt, de 4 de Fevereiro de 2019 como prova “concludente”. A declaração pública então proferida dizia o seguinte: “O Reino Unido reconhece agora Juan Guaidó como o presidente constitucional provisório da Venezuela até que possam celebrar-se eleições presidenciais credíveis”. Deste modo, Guaidó seria presidente da Venezuela para efeitos legais, ainda que esta seja mais uma fake news.

Relações diplomáticas válidas com o governo venezuelano

O advogado Nick Vineall, representante dos interesses da Junta Executiva do Banco Central da Venezuela, argumentou em sentido contrário: o governo britânico reconhece o governo de Maduro em termos das realidades diplomáticas. Sustentou que ambas as partes mantiveram sempre “relações diplomáticas plenas, normais e recíprocas”. Ambos os governos mantêm embaixadas operacionais nas duas capitais.

Vineall, que insistiu na importância do estatuto diplomático, destacou simultaneamente: “A declaração do então ministro dos Negócios Estrangeiros Hunt em relação a Juan Guaidó é ambígua e não é abrangente”. Ainda que expresse apoio político, não implica um reconhecimento de Guaidó como chefe de Estado venezuelano ou chefe de governo em todos os aspectos. “Se Londres concedesse direitos governamentais integrais a Guaidó seria uma violação do direito internacional”, disse.

O advogado recordou também que o governo britânico se negou a apresentar um certificado específico para o julgamento em curso no qual reconhecesse Guaidó de forma específica. Limitou-se a assinalar a declaração “ambígua” do ministro Hunt – proferida há ano e meio.

O debate põe em cima da mesa as contradições e os limites nos aspectos políticos e de direito. Por um lado, 50 governos reconheceram Guaidó no começo da sua carreira como “presidente interino” da Venezuela, enquanto 150 Estados membros da ONU não o fizeram. Por outro lado, todos mantiveram as suas relações diplomáticas oficiais com o governo de Maduro. Seria importante apurar se os mesmos governos estariam dispostos a dar o mesmo crédito a Guaidó em função das suas acções neste ano e meio.

O fundo da querela sobre a verdadeira presidência

Mas qual é o fundo da querela sobre a verdadeira presidência da Venezuela? Que relação tem com o ouro depositado em Londres?

De acordo com a lei venezuelana, os membros da Junta Executiva do Banco Central são nomeados pelo presidente do país. Mas passaram a ter concorrência há alguns meses. Guaidó fundou uma comissão directiva do BCV “no exílio” nos Estados Unidos. Este grupo reclama agora o controlo sobre o banco estatal e as suas transacções, como se fosse uma instituição paralela com legalidade paralela.

A jogada permite ao governo dos Estados Unidos e seus aliados dar a aparência de um quadro legal para as expropriações e os bloqueios das finanças venezuelanas no estrangeiro. Pretendem que o grupo de Guaidó represente uma alternativa legalmente legítima à actual Junta Directiva em funções no Banco Central da Venezuela. Sugerindo ainda que teria o direito de receber os enormes activos do povo venezuelano. O Tribunal de Comércio Internacional de Londres baseia-se também nesta hipótese.

Seguindo o guião, este processo de direito abre a possibilidade de mudar o órgão director do Banco Central, permitindo cortar as suas raízes ao questionar a legitimidade do próprio presidente do país.

Decisão sobre dois grupos de direcção do Banco Central Venezuelano

Agora o tribunal decidirá qual dos dois grupos da Junta do Banco Central Venezuelano tem legitimidade para o cargo e, portanto, seja considerado o sócio contratual do Banco de Inglaterra. Segundo o tribunal, havia que esclarecer de antemão qual das duas figuras presidenciais teria direito a nomear uma direcção do banco. A resposta dependeria do reconhecimento do governo britânico. O mundo virado de pernas para o ar?

O Conselho Executivo do BCV demonstrou responsabilidade humanitária ao destinar os seus activos no estrangeiro a um fundo fiduciário da ONU com fins humanitários na Venezuela. Perante a situação de emergência imediata dos seus compatriotas agravada pela pandemia de coronavírus, Juan Guaidó deveria suspender, pelo menos temporariamente, a querela jurídica e apoiar a acção da ONU na Venezuela, dando acordo ao financiamento do combate à emergência com fundos venezuelanos no estrangeiro. Não é de estranhar que actualmente Guaidó tenha tão poucos seguidores na Venezuela.

Jurisdição limitada do Tribunal britânico?

Além disso, deve esclarecer-se se o Tribunal Comercial Britânico tem competência legal para reconhecer a nomeação de alguns executivos bancários extraoficiais por parte de Guaidó – sem respeitar as leis venezuelanas. O Supremo Tribunal da Venezuela já declarou nulos os factos. Será que o Tribunal de Londres vai ignorar a sentença de Caracas? Com que argumentos?

Guaidó não cumpre os critérios de presidente interino

Guaidó não tem legitimidade legal na Venezuela, definitivamente não cumpre os critérios estabelecidos pela Constituição venezuelana para um presidente interino. Muito menos cumpre os critérios do direito internacional. Por exemplo, deveria ter convocado novas eleições o mais tardar três meses depois da sua auto-proclamação. Pode o tribunal inglês ignorar as normas constitucionais venezuelanas?

Fugindo ao problema, o advogado Fulton, defensor de Guaidó, reclamou no julgamento que o tribunal não poderá julgar se Guaidó tem autoridade sobre o Estado da Venezuela e as suas instituições, o que excederia a jurisdição de um tribunal britânico. Apenas pode decidir se o governo britânico o reconhece. Por consequência, as decisões de Guaidó deverão “ser aceites sem ser questionadas” como “actos soberanos de um Estado estrangeiro”.

O advogado Vineall assumiu a posição oposta. Pediu ao juiz que tenha em conta a sentença de Caracas. Porque “o tema da querela é o ouro armazenado em área de jurisdição britânica”.

Não devem esperar-se decisões do juiz Teare antes de Agosto ou Setembro, um desperdício de tempo valioso para a população venezuelana, que continua à espera dos fundos da ONU convertidos em medicamentos e alimentos.

Guaidó está associado a crimes graves

Além disso, todos os esforços legais e políticos para impor Guaidó como chefe de Estado venezuelano chocam com a sua idoneidade posta em questão.

Não pode estar habilitado para o cargo pelo menos até que os tribunais tenham resolvido todas as acusações de crimes graves que pendem sobre ele. Isso inclui corrupção na administração de fundos de origem incerta destinados a desertores militares venezuelanos envolvidos na tentativa de golpe armado na Venezuela em 2019.

Inclui os contactos documentados com a máfia colombiana do narcotráfico, ou a sua assinatura num contrato de muitos milhões de dólares com a empresa de mercenários norte-americana Silvercorp para a realização de atentados terroristas e assassínios encomendados, também completamente documentados.

A Interpol também deveria estar interessada nestes assuntos. Não se trata de crimes passíveis de ajustes de contas com a justiça no mundo inteiro? Será esta uma pessoa com idoneidade para garantir a administração limpa do milionário dinheiro estatal venezuelano. Poderão o governo e o poder judicial do Reino Unido permitir-se ignorar estes casos?

Converter a política internacional em direito internacional

O julgamento de Londres está a transformar a política internacional em direito internacional. O que cria um precedente e uma incerteza legal para o futuro de consequências imprevisíveis. No futuro, os tratados de Estado e internacionais poderão ser desrespeitados retroactivamente ou mesmo ser completamente cancelados por meio deste tipo de governos paralelos recorrendo a instituições sombra e alegados funcionários designados no exterior das normas legais. Basta apenas o veredicto de um juiz para proclamar a palavra mágica “justiça”. Querem lutar contra um suposto défice democrático na Venezuela com um défice democrático na Europa?

*Psicóloga e socióloga, jornalista colaboradora em meios europeus e latino-americanos em temas de direitos humanos, democracia e meio ambiente. Colaboradora do Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)


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