A PANDEMIA E O PANDEMÓNIO NO MUNDO CAPITALISTA
2020-04-11
Alexandre Weffort
A crise mundial que tem por mote o novo coronavírus arrasta-se já há três meses, na sua fase conhecida, desde que o SARS-CoV-2 foi identificado em Wuhan. A doença a que aquele vírus dá origem, a COVID-19, já fez correr “rios de tinta” (ou, melhor dizendo, “de bites”, já que a informação, a análise e a crítica a respeito do tema são produzidas e difundidas em suportes virtuais, no mundo telemático que é, de momento, o único espaço seguro de circulação social (não é, na verdade, o único nem é, também, assim tão seguro como também se sabe).
A crise manifesta-se nas suas várias vertentes sendo, em primeiro lugar, uma crise mundial ao nível da saúde pública. É nesse primeiro nível que observamos o impacto destruidor de uma doença para a qual as sociedades não possuem defesas, onde a capacidade de assistência médica se vê impotente perante a avalanche súbita de casos graves de infecção respiratória que exigem equipamentos médicos de cuidados intensivos.
Instala-se uma situação caótica no sistema hospitalar de alguns países (com casos mais agudos na Europa, nomeadamente em Itália e Espanha). E, como primeiro critério de racionalização, impõe-se o confinamento das pessoas às suas casas, medida preventiva adoptada a nível quase global, no intuito de conter a rápida propagação do vírus e evitar o colapso dos sistemas de saúde.
A China, mais especificamente, a província de Hubei (na região central da nação mais populosa do planeta, com 1400 milhões de habitantes), primeiro país a defrontar-se com o novo coronavírus, teve de defrontar-se também com a estigmatização inicial, lançada pelos Estados Unidos nos media internacionais no âmbito de uma ofensiva ideológica que acompanha outros níveis de conflito real (a nível comercial) e latente (a nível militar).
A China adoptou medidas drásticas de contenção da epidemia no seu território e, simultaneamente, desenvolveu esforços no plano das estruturas de combate à COVID-19 (construindo de raiz ou adaptando espaços para a criação de hospitais gigantescos em tempo recorde). O exemplo chinês, visto com alguma perplexidade no mundo ocidental, tornou-se modelar, seguido com variantes mais condizentes com as condições económicas dos diversos países.
Na verdade, as variantes referidas, mais do que resultantes da idiossincrasia cultural (do Oriente e do Ocidente), entendem-se ao nível da raiz ideológica do sistema social existente (socialista uns, capitalistas outros). As imagens são esclarecedoras, falando mais que mil palavras: o nível do equipamento e o respeito pela privacidade do paciente conforme são considerados no estádio de Wuhan (imagem em cima) e no Estádio Universitário de Lisboa (imagem em baixo).
Ou, na forma confrangedora com que se tomam os cuidados de saúde em relação aos “sem-abrigo” na cidade de Las Vegas, nos Estados Unidos (num estacionamento a céu aberto, com o cuidado de se marcar no chão as linhas delimitadoras de um confinamento à casa inexistente).
Armazéns da morte
Mas o pandemónio do coronavírus assume a sua dimensão mais gritante ao penetrar em espaços de confinamento estabelecidos como algo natural: os lares de terceira idade. É nessas estruturas sociais (na sua maior parte estabelecimentos privados) que, dito cruamente, os mais idosos aguardam o final da vida. Esses espaços acabam transformados em verdadeiras armadilhas de contágio. Casos dramáticos são relatados em Itália, na Espanha ou em Portugal, onde os falecidos se contam, em cada um desses lares, às dezenas.
E no momento em que este texto foi redigido, os EUA alcançaram a dianteira na pandemia, tanto em números de casos de infecção como de mortes pela COVID-19 atingindo a cifra de 500 mil casos e mais de 19 mil mortes, realidade que não se encontra totalmente reflectida no quadro
porque, como revela a cadeia de informação norte-americana NBC, ocorreram nos Estados Unidos mais de 2200 casos de falecimento em lares que não são considerados pelo governo federal na contagem oficial das mortes.
Seja nessas instituições para a terceira idade, seja em consequência das estratégias seguidas (do negacionismo que EUA, Reino Unido, Holanda [Países Baixos] e outros países seguiram, contrariando as indicações da OMS), a pandemia provocada pelo novo coronavírus assume a dimensão de um verdadeiro genocídio dos mais velhos da sociedade, onde as estruturas destinadas ao acolhimento dos idosos no final da sua vida, os lares de terceira idade, desempenham involuntariamente o papel de caritativa armadilha ao serviço do (inconfessado por muitos) objectivo de salvaguarda económica dos países que subordinam o valor da vida humana ao jogo dos cifrões (como o já muitas vezes referido ministro japonês dizia em 2013 e como os jovens políticos governantes holandeses hoje praticam).
Na matéria já referida, publicada pela NBC, é dado à estampa o aviso dramático: “um lar de idosos oferece conselhos sombrios: leve seus entes queridos para casa”. A pandemia traz à evidência o pandemónio da saúde pública construída numa lógica capitalista. E mesmo aquelas iniciativas geradas num espírito solidário, como os lares de terceira idade, quando subordinados a uma estratégia caritativa, na exiguidade dos recursos que lhes são atribuídos acabam por desempenhar um papel nefasto.
O papel nefasto dos lares, convertidos em armadilhas para idosos numa política económica de subvalorização da vida humana, é um elemento que acentua o forte contraste existente no posicionamento público dos governantes europeus (colocando de um lado os países latinos como Portugal, Espanha e Itália e, do outro, a Alemanha, a Holanda e mesmo a França), contraste de posições entre a austeridade idiossincrática dos Estados mais ricos e o sentido mais caritativo dos outros, que se arrisca a quebrar de forma insanável a unidade europeia - a UE como pandemónio anunciado.