O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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A GUERRA SECRETA EM ÁFRICA

2019-12-03

A corrida aos recursos naturais em África é cada vez mais intensa e implica choques de interesses entre quem os dava como adquiridos por uma espécie de usucapião colonial e potências emergentes que se limitam a seguir as normas concorrenciais estipuladas pela doutrina do “mercado livre”. Considerando-se senhores do território africano, Estados Unidos e NATO reforçam uma presença militar que não hesita em estender-se sob outras bandeiras, como as da ONU e da União Europeia. Trata-se, no fundo, de pugnar por interesses geopolíticos e geoeconómicos com uma poderosa vertente corporativa; do outro lado, Rússia e China marcam posições, com base em crescentes interesses empresariais, incomodando os que se pretendiam “donos daquilo tudo”. É a guerra secreta que progride em África, limitando o direito dos africanos a usufruírem das suas riquezas.

Steve Brown, TheDuran.com/O Lado Oculto

Os Estados Unidos e a NATO operam as maiores infraestruturas militares de África, com 34 bases (algumas secretas) e 30 novos projectos de construção militar em andamento, abrangendo quatro países. 

O Tratado de Varsóvia pode já não existir mas, por outro lado, a Organização do Tratado do Atlântico Norte continua a expandir-se, a pretexto da defesa dos interesses ocidentais, especialmente num continente africano rico em recursos.

A expansão da NATO em África pretende afirmar o poder dos interesses corporativos ocidentais, onde a França de Macron se esforça por ultrapassar a Alemanha como maior potência europeia em termos de influência.

Mas os interesses dos gigantes económico-financeiros não são os únicos motores da guerra da NATO em África, uma vez que a Federação Russa também tem ambições significativas no continente. Os contratados militares privados não-governamentais da Rússia ou “Chastnaya Voennaya Kompaniya” incluem: Grupo RSB, Centro R-Redut, Antiterror-Orel, Shchit (Escudo), Grupo Wagner, SlavCorps, Grupo ARK, Patriota, MAR, Cossacks Group, nos quais o Grupo Wagner e o Shchit estão particularmente activos em África.

Mercenários ao serviço de empresas

Pode parecer uma lista impressionante, mas não se compara com o rol de contratados militares privados ocidentais que operam no Médio Oriente e no Afeganistão. Estes já existem há muito mais tempo, têm maior envergadura e são mais financiados e, em muitos casos, directamente utilizados pelos Estados que servem, especialmente os Estados Unidos. Por outro lado, os contratados russos operam em pequena escala, são flexíveis e juntam uma gama larga de nacionalidades e aptidões.

As entidades russas incluídas no conjunto de contratados militares privados são, de facto, grupos de “mercenários” porque, por lei, não podem agir em nome do governo da Federação Russa. Também está claro que se trata de entidades contratadas principalmente por interesses corporativos; os quais podem entrar em conflito com interesses concorrentes ocidentais.

Independentemente disso, a revista Foreign Policy, muito apoiada pela neoliberal Hillary Clinton, já declarou o fim do Grupo Wagner e de outros grupos militares privados russos na sua reportagem de Neil Hauer intitulada “The Rise and Fall of a Russian Mercenary Army” (Ascensão e queda de um exército mercenário russo).

O caso de Moçambique

O artigo da Foreign Policy foi publicado em 6 de Outubro de 2019, precisamente o mesmo dia em que Moçambique anunciou o êxito da Exxon na obtenção de um contrato de gás natural liquefeito na província de Cabo Delgado, no valor de 30 mil milhões de dólares. A inspiração da Foreign Policy para publicar a visão distorcida de Hauer sobre os contratados militares russos foi, sem dúvida, a batalha travada entre a Exxon e o gigante russo Gazprom pela obtenção do contrato.

E é mesmo um problema. Moçambique quase esmagou o gigante mineiro Rio Tinto quando se recusou a permitir o transporte de carvão pelo Zambeze. E a Rio Tinto não é o único gigante económico a sofrer em Moçambique. O país tem um grande problema com as dívidas ao FMI, com a pobreza generalizada e também com a acção de grupos armados em algumas partes do território; e uma das regiões mais problemáticas é a província de Cabo Delgado, fonte de gás natural liquefeito de Moçambique.

Antes de a Gazprom ter apresentado a candidatura ao contrato de gás natural de Cabo Delgado o governo de Moçambique tomou a decisão de expulsar os bandos fundamentalistas islâmicos movidos a droga que vagueiam pela província e, para limpar a região, optou por contratar a empresa de segurança mais barata.

A escolha de Moçambique recaiu sobre os russos do Grupo Wagner, que rapidamente se viram atolados numa situação extremamente difícil para combater estes anarco-psicóticos - maníacos homicidas enlouquecidos, se possível mais perigosos que os jihadistas do Isis/Daesh/Estado Islâmico.

Em Novembro deste ano o contrato do Grupo Wagner em Cabo Delgado transformou-se em tragédia quando o Moscow Times noticiou a morte de sete mercenários russos em Moçambique. Uma fonte do Grupo Wagner revelou que a empresa deixou de operar na província. 

Contratados militares privados russos também actuam na República Centro-Africana, supostamente para proteger minas de diamantes enquanto negoceiam com os rebeldes que têm o controlo dos campos de ouro de Ndassima.

Três repórteres de imagem russos foram mortos tragicamente quando escrutinavam as actividades do Grupo Wagner na República Centro Africana, o que deu origem a uma teoria da conspiração ocidental segundo a qual teriam sido vítimas do seu trabalho de investigação. A verdade, porém, é muito mais prosaica: os repórteres foram mortos quando atravessavam uma ponte depois de se terem internado demasiado em território rebelde sem protecção armada adequada.

Um outro relatório, ainda não confirmado, revela que um grupo de contratados russos do sector de segurança está desaparecido em acção na Somália, enquanto um contingente de 200 contratados militares privados da mesma nacionalidade chegaram recentemente à Líbia. Além disso, mais de 1100 contratados do Grupo Wagner estão a operar nas regiões líbias da Cirenaica e da Tripolitânia, informação coincidente com o facto de esta entidades e outros contratados militares privados russos estarem em expansão na Líbia, Camarões, Angola, Sahel… Tudo para grande consternação das Forças Armadas dos Estados Unidos, como é evidente.  

Se as informações mencionadas são ou não exageradas, isso é irrelevante. Seja qual for a realidade, ela não será compreendida no Ocidente. As intenções da Rússia em África – sejam elas quais forem – serão certamente tão incompreendidas agora como na crise do Suez, em 1956. Uma crise que conduziu a uma invasão e ocupação perigosas e preventivas do Egipto de Nasser no quadro de uma conspiração mirabolante envolvendo Israel, a França e a Grã-Bretanha.

As máquinas de guerra da NATO

O paralelo com a crise do Suez de 1956 com a situação da NATO versus Rússia na África de hoje não é totalmente absurda. Porque existe um outro lado da moeda representada pela tentativa de os interesses corporativos da Rússia – e talvez da China! – assumirem expressão própria. E esse reverso é o efeito tóxico do Comando Africano dos Estados Unidos (AFRICOM)/NATO e a sua abjecta má gestão de recursos e a subversão do direito dos Estados africanos à autodeterminação progressiva.

É o que está a acontecer, porque os Estados Unidos e a NATO operam as maiores infraestruturas militares no continente africano, com 34 bases (algumas secretas) e 30 novos projectos de construções militares da NATO ou dos Estados Unidos em andamento em África, abrangendo quatro países.

As Forças Armadas dos Estados Unidos têm mais instalações militares no Níger – cinco, incluindo Niamey, Ouallam, Arlit, Maradi e uma base secreta em Dirkou – do que em todos os outros países da África Ocidental.

A base de drones de Chebelley em Djibuti é a maior do género no mundo; a partir daí, os Estados Unidos podem atingir qualquer alvo no Sahel ou no Irão. O AFRICOM está a construir uma instalação ainda maior, a Base Aérea 201 do Níger, em Agadez, capaz de atingir a Argélia e qualquer lugar na região do Sahel; e os Estados Unidos operam uma base secreta de drones na Tunísia (Sidi Ahmed) a que agora se opõe o novo presidente do país.

Existem mais cinco bases na Somália, incluindo instalações secretas que apoiam a “Lightning Brigade” do AFRICOM, também conhecida como “Danab Advanced Infantry Brigade”. Adivinhem que está a treinar a Danab! Contratados militares privados dos Estados Unidos, é claro: a Bancroft Global Development.

No Quénia existem mais quatro bases militares norte-americanas, incluindo Manda Bay e Mombaça; é da base de Manda Bay que os Estados Unidos lançam consistentes ataques de drones contra a Somália, o Iémen e o Iraque. Funcionam mais três locais secretos Estados Unidos/NATO na Líbia, a partir dos quais se podem realizar ataques de drones contra países tão distantes como o Paquistão.

Há ainda a base de Camp Lemonnier em Djibuti, com uma guarnição aproximada de quatro mil efectivos dos Estados Unidos e da NATO. Alega-se que Camp Lemonnier é “a única base permanente norte-americana em África” – talvez porque muitas ao serviço dos Estados Unidos/NATO estejam ainda em construção, outras sejam secretas ou simplesmente conhecidas por siglas do jargão apenas ao alcance dos militares.

Camarões, Mali e Chade também abrigam instalações a que os tropas norte-americanos chamam “locais de contingência”, sem dúvida alavancados pela NATO na sua tentativa de controlar o Sahel. Incluem as bases de drones de Garoua, Douala e Salak… Instalações onde são treinados prestadores de serviços militares privados e nas quais se acompanham os ataques de drones norte-americanos contra os imortais e indestrutíveis terroristas do Boko Haram, é claro.

Outra base secreta norte-americana no Chade localiza-se no território histórico de Faya Largeau. O estatuto operacional actual destas instalações é oficial e obviamente desconhecido. As facilidades em Libreville, no Gabão, existem para permitir o acesso rápido de tropas dos Estados Unidos ou da NATO para um influxo urgente de forças, objectivo estratégico que é o mesmo da base localizada em Dakar, no Senegal.

Poderíamos continuar a enumerar as bases da NATO e dos Estados Unidos em África (secretas ou não); espero que assim tenha ficado justificado o argumento segundo o qual a poderosa presença EUA/NATO em África se estende para lá do que a imaginação possa alcançar, mesmo que seja a do mais dedicado seguidor dos assuntos militares.

Que o gigantismo dessa presença possa ser seriamente contrariado pelo movimento de um pequeno número de contratados militares privados russos, equipados com armamento leve e poucos recursos, não é apenas improvável mas totalmente absurdo.

Pelo contrário, o que deve realmente preocupar qualquer cidadão do mundo é a insuflada, perigosa, letal, dispendiosa e destrutiva presença da NATO, das Forças Armadas dos Estados Unidos e do seu Estado de vigilância em África. Porque as tropas norte-americanas se combatem a si próprias – à imagem de Shiva, o destruidor – como criadoras do terror.

O caso da Argélia

A Argélia, agora uma democracia progressista encarando o futuro, com uma eleição presidencial iminente, a 12 de Dezembro, está certamente ciente disso. A Argélia conhece profundamente o neocolonialismo ocidental e as suas regras e, por isso, evitou o pântano do endividamento ao FMI.

Actualmente, a Argélia exporta mais petróleo para o resto do mundo que o Irão. Tem uma economia estável, uma inflação baixa em comparação com outras nações africanas e pode enfrentar um futuro desanuviado, sem interferências ocidentais. Daí as preocupações argelinas com o facto de o país estar cercado por todos os lados pelas ferramentas hegemónicas dos Estados Unidos e do seu intervencionismo.

De uma certa maneira, a Argélia representa um exemplo em relação ao resto do Norte de África como país que procura cumprir plenamente o seu direito à autodeterminação. A maioria das outras nações africanas têm dificuldades em seguir o mesmo caminho porque já foram subvertidas pelas guerras por recursos e lucros, muitas delas proporcionadas pelo sistema corporativo de Washington.

O contraponto a isto é claramente a Rússia, independentemente de os seus esforços parecerem fracos e de poderem ser mal compreendidos os seus objectivos em África. Mas o contraponto russo à destruição e corrupção praticadas pelos Estados Unidos/NATO pode não ser tão directo como o leitor imagina.

Isto acontece porque, segundo as nossas fontes, a Rússia está a abrir caminhos para a China em África – uma suposição que faz todo o sentido. A China não é, nem nunca foi, uma potência neocolonial. A China está consciente da destruição provocada pela perda do direito à autodeterminação uma vez que se trata de um país que foi, ele próprio, colonizado por interesses ocidentais.

A cooperação entre a Rússia e a China em África é tão inevitável como a incapacidade de Washington para manter eternamente a expansão do seu gigantismo militarista.

Esta é uma conclusão que irá ser comprovada pelo passar do tempo e pelo fracasso constante de Washington em compreender os erros gravosos e trágicos do hegemónico passado colonial – erros que os Estados Unidos agora estão apenas a construir, em parte exemplificados pela histeria raivosa contra a Rússia que os consome. E quanto ao futuro de África… Resta-nos apenas esperar. 


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