RESPOSTA DO HEZBOLLAH FAZ RECUAR ISRAEL
2019-09-10
O secretário-geral do Hezbollah prometeu e cumpriu: uma semana depois de Israel ter morto dois técnicos do grupo num ataque contra a Síria e de ter atacado os arredores de Beirute chegou a anunciada represália. Os mísseis disparados pela organização de resistência libanesa não se limitaram a liquidar o alvo e a obrigar o exército de Israel a recuar e a abandonar uma base militar no norte do país; puseram termo a uma escalada de violência ao nível de 2006 e demonstraram uma nova capacidade do movimento libanês para por Israel em respeito e atingir qualquer região deste país. A notícia não correu mundo, mas a relação de forças está diferente: o potencial balístico do Hezbollah revela um caminho para a paridade táctica com o Estado sionista.
Richard Lavébière, Proche&Moyen Orient/O Lado Oculto
A fronteira sul do Líbano com Israel acaba de ser palco de uma escalada militar que se prolongou por vários dias. No dia 1 de Setembro, o Hezbollah disparou dois mísseis anti-tanque contra um blindado israelita situado nas imediações da base militar israelita de Avivim (no extremo norte do país).
Esta operação realizou-se como represália pela morte de dois peritos em drones do Hezbollah, mortos durante um ataque aéreo israelita contra a Síria, em 24 de Agosto, e dois dias depois do sobrevoo e da explosão de dois drones israelitas sobre os arredores sul de Beirute. Represálias formais da represália: o exército israelita respondeu lançando bombas de fósforo para uma zona fronteiriça não habitada.
Retirada sionista
O receio de uma escalada militar semelhante à ocorrida em Julho de 2006, que desencadeou a “guerra dos trinta dias”, foi rapidamente afastado; o exército israelita evacuou toda uma região com uma profundidade de várias dezenas de quilómetros. Segundo fontes de serviços de informações militares europeus e árabes, “o exército israelita não está absolutamente pronto para repetir uma operação convencional contra o Líbano num contexto regional e operacional que mudou muito em seu desfavor…”
O último ataque da Resistência (expressão utilizada pelos partidários do Hezbollah para designar esta organização político-militar libanesa) foi filmado por operadores no terreno. Na sequência de imagens transmitida pela cadeia Al-Manar (televisão do Hezbollah) podem ver-se nitidamente os dois mísseis partir simultaneamente de dois pontos de tiro diferentes antes de atingirem o mesmo alvo com alguns segundos de intervalo. A distância percorrida foi calculada entre 1,5 e dois quilómetros.
As armas utilizadas são mísseis pesados do tipo Kornet guiados a laser. Ao serviço do exército russo desde 1998, estes engenhos são exportados sob a designação Kornet-E. Utilizados pelo Hezbollah durante a guerra de 2006, os Kornet permitiram neutralizar numerosos tanques Merkava e helicópteros de combate. Em 6 de Dezembro de 2010, um Kornet foi disparado da Faixa de Gaza contra um tanque Merkava, que ficou com a blindagem esventrada.
Avaliação do general Amin Htaite
Segundo o general libanês Amin Htaite – um dos mais prestigiados peritos militares da região, especializado em armas balísticas – a operação de Avivim realizou-se segundo as seguintes modalidades.
Teatro de operações: “Contra o território de Israel e em profundidade, a alguns quilómetros da fronteira; uma opção que, pela primeira vez, é uma mensagem destinada a Israel advertindo que começou uma nova era de confrontação e que qualquer movimentação de militares no norte do país está, a partir de agora, sob fogo da Resistência libanesa. Esta evolução vai bastante para além do que a Resistência tinha imposto com os seus mísseis terra-terra e que permitiu colocar o conjunto do território de Israel na sua mira”.
Timing: “A operação desenrolou-se na tarde de 1 de Setembro, isto é, precisamente uma semana depois de o secretário-geral do Hezbollah, Hassan Nasrallah, ter prometido uma resposta punitiva e apenas oito dias depois da agressão israelita. Uma semana durante a qual deixou Israel marinar na confusão, perplexidade e inquietação à espera da inevitável resposta; e que exerceu uma pressão psicológica que levou os comentadores israelitas a reconhecer o poder de Nasrallah na guerra psicológica e a sua capacidade para influenciar, ou mesmo pesar sobre a consciência do público”.
O nome da unidade operacional: “O grupo da Resistência que executou a operação foi baptizado com os nomes dos mártires ‘Daher’ e ‘Zahib’, para indicar que esta foi realizada como resposta à agressão israelita que assassinou estes dois combatentes na Síria”.
Alvo e objectivo: “A operação teve como alvo um veículo militar blindado israelita de transporte de tropas com capacidade para oito homens e que, normalmente, não se desloca com menos de três soldados a bordo. Esta opção marca a vontade da Resistência de infligir perdas humanas nas fileiras do inimigo pelo menos equivalentes às sofridas pela Resistência com os dois mártires caídos em território sírio”.
Armamento utilizado: “Os mísseis anti-tanque Kornet, que deixaram uma marca negra na consciência colectiva israelita devido ao facto de terem destruído tanques Merkava em Wadi Alhojair e na planície de Khiyam em 2006, impediram Israel de aceder ao rio Litani e de realizar qualquer operação militar, ainda que simbólica. Este míssil, de elevada precisão, tem um alcance eficiente de 5,5 quilómetros”.
Ambiente securitário e operacional: “A acção desenvolveu-se durante o estado de alerta israelita mais elevado ao nível de operações e de informações, no norte de Israel, e ao cabo de uma semana durante a qual a Resistência exerceu uma forte pressão psicológica que obrigou o inimigo a colocar cinco brigadas em estado de alerta máximo no norte, com a mobilização dos aviões de combate e dos drones necessários para os apoiar, bem como um terço da marinha militar israelita”.
O medo mudou de campo
No dia seguinte à operação do Hezbollah, a correspondente de Russia Today (palestiniana originária da região) deslocou-se à base de Avivim. Verificou que a zona foi completamente evacuada numa profundidade de várias dezenas de quilómetros. Quanto ao comunicado do exército israelita afirmando que o golpe do Hezbollah apenas atingira manequins de uma encenação sabiamente orquestrada, várias fontes militares europeias desmentiram esta versão sublinhando que uma dezena de soldados tinham sido transferidos de urgência para um dos hospitais militares da região.
Acontece que este ataque altera completamente os dados estratégicos e tácticos observados até agora entre Israel e o Líbano. Em primeiro lugar, o ataque nada tem de surpresa: numa semana o chefe do Hezbollah ameaçou por duas vezes Israel com represálias. Como é hábito, as autoridades de Telavive puderam constatar que Hassan Nasrallah faz o que diz e diz o que faz, as suas considerações sobre as capacidades operacionais do Hezbollah não são para encarar de ânimo leve. Em dois discursos anteriores, que remontam ao início do ano passado, advertira claramente que o arsenal da Resistência – mísseis balísticos de médio e longo alcance – permitem, a partir de agora, atingir “qualquer território em Israel, incluindo a central nuclear de Dimona.
Em Telavive a ameaça é levada a sério, uma vez que os serviços israelitas acabam de publicar um relatório alarmista explicando que as forças especiais do Hamas estão em vias de se equipar massivamente com mísseis Kornet. Desde há vários anos, com a ajuda do Irão e do Hezbollah, as unidades armadas da Faixa de Gaza aplicam as mesmas tácticas que as utilizadas pelo Hezbollah: uso de mísseis artesanais e de importação, escavação de subterrâneos e deslocação de comandos em motas todo-o-terreno. O relatório destaca as mesmas evoluções operacionais no Iraque e no Iémen, onde as facções Houthi progrediram muito na utilização de mísseis tácticos.
O general Amin Htaite acrescenta:
“Pela primeira vez o norte de Israel está na mira dos mísseis anti-tanque activados por operadores capazes de alvejar um objectivo a olho nu. É um salto qualitativo dado pela Resistência, porque mesmo em 2006 não foi realizada qualquer operação semelhante com tanta precisão. A utilização destas armas limitava-se apenas à defesa do território libanês. Os israelitas lembrar-se-ão perfeitamente da declaração de Nasrallah segundo a qual poderia enviar combatentes para a Galileia para se baterem directamente no território israelita. Uma vez que isso aconteça, e de uma vez por todas, a doutrina militar israelita segundo a qual a guerra trava-se apenas no campo do adversário voará definitivamente em pedaços”.
“Paridade táctica”
É verdade que a natureza assimétrica do fraco e do forte continua a caracterizar a globalidade do frente-a-frente israelo-libanês, mas “o potencial balístico do Hezbollah está em vias de reequilibrar os dados em favor de uma real paridade táctica”, explica um adido de defesa europeu destacado em Beirute; “o último ataque do Hezbollah leva-nos até à situação operacional de 1948, isto é, a uma defesa de Israel totalmente dependente dos seus apoios externos, sendo os principais as transferências norte-americanas de alta tecnologia. Mas sejam quais forem os progressos técnicos dos meios ofensivos e de defesa, o exército israelita já não pode estar seguro de uma assimetria a seu favor que pontuou a maior parte das guerras israelo-árabes (excepto a de Outubro de 1973) precisamente desde 1948…”.
Esta evolução explica, segundo a mesma fonte, “o aumento de operações com caças israelitas na Síria e, mais recentemente, no Iraque”. Numa encenação pouco habitual, Benjamin Netanyahu reivindicou os “golpes defensivos” de 24 de Agosto na Síria. Sem assumir oficialmente a responsabilidade, deixou perceber que o seu país poderia ser responsável por vários ataques que ocorreram no Iraque contra objectivos “xiitas aliados do Irão” desde Julho último.
Em 29 de Agosto, Netanuahu afirmou ainda que o Irão e o Hezbollah tentam produzir mísseis de precisão no Líbano, com o objectivo de melhorar um arsenal calculado em cerca de 130 mil rockets e mísseis. O programa teria sido lançado no Outono de 2016. Em que é que este esforço de defesa nacional é ilegítimo?
Dito isto, as gesticulações de Benjamin Netanyahu inserem-se, evidentemente, no contexto da campanha para as legislativas israelitas de 17 de Setembro. Estes esforços de comunicação, no entanto, não enganam ninguém num terreno onde o exército israelita já não faz actualmente a lei.
Para a opinião mundial, as gesticulações do primeiro-ministro israelita já não conseguem “criminalizar” as operações do Hezbollah que, tudo somado, se inserem numa lógica de defesa e de segurança nacionais para a salvaguarda do Líbano
Defesa Nacional
No seu magistral livro “O Hezbollah, um movimento nacional-islâmico” os politólogos Frédéric Domont e Walid Charara apresentam, de maneira fundamentada e ilustrada, à margem das questões militares, a concepção geral dos programas sociais da organização político-militar.
“O Hezbollah trabalha eficazmente para atenuar as carências do Estado libanês em matéria de saúde, educação e apoios sociais em várias regiões onde os habitantes jamais viram um funcionário libanês”, revelam os autores; “os quadros destes diferentes programas de acção social e educativa insistem constantemente na dimensão nacional libanesa e nos diferentes domínios ligados à segurança do território”.
Esta abordagem ampliou-se nos últimos 15 anos e os programas sociais reforçaram a credibilidade militar e nacional do Hezbollah. Esta atingiu um pico no Verão de 2013, quando Hassan Nasrallah oficializou o envolvimento militar da organização na Síria, nas regiões fronteiriças em redor da cidade libanesa Tripoli. Por esta altura, os terroristas do grupo Jabhat al-Nusra (al-Qaida na Síria) estavam a um passo de conquistar Tripoli, o porto do norte do Líbano. Os jihadistas chegaram mesmo a anunciar a intenção de coordenar operações com grupos salafitas líbios a partir desta frente marítima libanesa. Na época escrevemos que a intervenção do Hezbollah – que provocou numerosos protestos - permitiu salvaguardar a integridade territorial e política do País dos Cedros, o que hoje é geralmente reconhecido.
As autoridades de Telavive reivindicam agora, abusivamente, uma parte das águas territoriais libanesas ricas em hidrocarbonetos (blocos 9, 10 e 11 do campo conhecido como Leviatã) e as suas unidades navais violam quotidianamente o espaço marítimo libanês. De maneira ainda mais evidente e regular, os caças israelitas penetram, quase todos os dias, no espaço aéreo libanês sem serem inquietados. Cada pedido para dotação de mísseis anti-aéreos dirigido pelo Estado libanês aos Estados Unidos, França, Grã-Bretanha ou Alemanha é imediatamente recusado porque Israel protesta oficialmente, e ao mais alto nível, junto dos países solicitados.
Nestas condições, o Hezbollah tem toda a legitimidade para dizer que conservará o seu potencial militar enquanto as potências regionais e internacionais não permitirem ao exército libanês dotar-se dos meios necessários para uma defesa eficaz e credível do país. Efectivamente, no estado actual das coisas e perante a persistente relação de forças com Israel, o Hezbollah assume, em grande parte, as responsabilidades da defesa e da segurança nacionais do Líbano.
É verdade que os cidadãos israelitas têm o legítimo direito à segurança. Mas por que razão e em virtude de que princípios os palestinianos, os libaneses e todos os outros habitantes do Médio Oriente não têm os mesmos direitos? Quer isso agrade ou não, o Hezbollah/Resistência contribui para a edificação desta igualdade de tratamento numa região onde um povo que se considera “eleito” não pode comportar-se como dominador…