CHINA AVISA ESTADOS UNIDOS SOBRE AS "LINHAS VERMELHAS"
2020-06-30
M.K. Bhadrakumar, The Oriental Review/O Lado Oculto
Se no mundo actual de guerras de informação existe um assunto em que a Carnegie Endowment para a Paz Internacional, a CNN, o NEW York Times e o Washington Post podem estar de acordo com a agência chinesa Xinhua e a publicação oficial chinesa Global Times é o de que Michael Pompeo é o pior secretário de Estado da história dos Estados Unidos. E os danos estão feitos.
Há poucos dias, dois meios de informação oficiais de Pequim, o China Daily e o Diário do Povo, órgão do Partido Comunista, publicaram opiniões idênticas sobre a desonestidade, a falta de escrúpulos e de credibilidade de Pompeo como político e ser humano.
Os artigos foram publicados dez dias depois de o secretário de Estado norte-americano ter tomado a iniciativa de convidar Yang Jiechi, membro da Comissão política do Partido Comunista e principal responsável pela diplomacia da China, para uma delicada missão de tipo “kissingeriana” onde fossem traçadas as linhas vermelhas nas areias do relacionamento entre Pequim e Washington. O encontro realizou-se a 17 de Junho no Hawai.
Pompeo pretendia principalmente forçar Pequim a cumprir todos os aspectos do acordo comercial de Janeiro passado, através do qual a China se compromete com uma compra massiva de produtos agrícolas dos Estados Unidos, principalmente soja. Trata-se de uma questão extremamente importante para Trump, do ponto de vista pessoal, porque o lobby dos agricultores faz parte do seu “núcleo eleitoral” na perspectiva das eleições presidenciais de Novembro.
É difícil dizer exactamente onde falhou a missão de Michael Pompeo, mas os diplomatas norte-americanos entraram nas negociações com Yang na expectativa de obterem concessões provocando/ameaçando Pequim sobre Hong Kong, Taiwan e o Xinjiang - a chamada “questão uigur”.
Na realidade, na altura em que Pompeo e Yang se encontraram no Hawai o presidente Donald Trump assinou legislação sobre sanções contra a pretensa repressão dos uigures da China. (E em 25 de Junho o Senado dos Estados Unidos aprovou um projecto de lei sobre a lei de segurança de Hong Kong que permitiria aos Estados Unidos impor sanções contra a polícia de Hong Kong, as autoridades chinesas e bancos).
Erro de cálculo
Aparentemente, Pompeo estaria confiante numa situação de grande enfraquecimento da China devido ao impacto da pandemia de COVID-19 na sua economia, na política e na posição internacional; um quadro que teria abalado a liderança e o prestígio do Partido Comunista da China.
Pelo contrário, a delegação de Pequim no Hawai não reflectiu essa situação prevista por Pompeo; Yang rejeitou firmemente as pressões do secretário de Estado sobre Hong Kong, Taiwan e o Xinjiang, como sugerem as posições tornadas públicas pelo porta-voz do Ministério dos Negócios Estrangeiros.
Sem surpresa, a reacção do Departamento de Estado foi taciturna e evasiva. Numa conferência de imprensa posterior, no entanto, um alto funcionário desse organismo admitiu praticamente que a missão de Pompeo fora um fracasso.
Aliás o próprio Michael Pompeo mudou rapidamente a sua atitude logo que deixou o Hawai, passando da diplomacia para o comportamento de lobo guerreiro; lançou um ataque fulminante contra a China num discurso em Copenhaga em 19 de Junho, proferiu a seguir mais quatro declarações no mesmo tom e fez uma comunicação de “falcão” no dia 25 em Bruxelas.
Pompeo comporta-se cada vez mais como alguém possuído. Pode ter traçado um plano para tentar desviar a atenção do fracasso da missão no Hawai, mas um comportamento tão excessivo e errático de um secretário de Estado norte-americano é invulgar, mesmo para os padrões de guerra fria.
Washington pisou o risco
De qualquer maneira, em 26 de Junho o Wall Street Journal (WSJ) pode ter dado uma explicação plausível para toda esta descarga de adrenalina. O jornal faz alusão a declarações circulando “discretamente” em Pequim para alertar Washington de que as compras de produtos agrícolas norte-americanos previstas na “fase um” do acordo comercial de Janeiro podem cessar completamente se os Estados Unidos ultrapassarem as “linhas vermelhas” – isto é, se Washington se intrometer em assuntos que o governo chinês considera “fora dos limites”.
Segundo o WSJ, que cita autoridades sob anonimato, Yang fez essa advertência a Pompeo durante a reunião no Hawai. “O lado norte-americano deve abster-se de ir longe demais na intromissão; as linhas vermelhas não podem ser ultrapassadas”, disse uma autoridade chinesa citada pelo jornal norte-americano.
O Global Times, órgão em inglês que reflecte a orientação do Partido Comunista da China, publicou também no dia 26 um comentário no mesmo sentido: o de que a equipa de Trump deve “mostrar mais boa vontade ou dar sinais positivos para compensar o impacto” das suas declarações irresponsáveis sobre a China “se quer evitar novas perdas num mercado com tantas incertezas”.
A China mais “assertiva”
Segundo o Global Times, o acordo comercial não é a única questão nas relações bilaterais “que exige esforços para eliminar dúvidas e preocupações. O governo dos Estados Unidos precisa de reflectir sobre todas as frentes de batalha que abriu contra a China nos últimos meses”, designadamente a repressão de empresas de elevada tecnologia como a Huawei, a ameaça de revogar o estatuto especial de comércio de Hong Kong e a guerra por causa dos voos militares.
O comentário conclui com a afirmação de que “apenas reflectindo e envidando esforços para remediar os danos provocados às relações Estados Unidos-China em várias frentes será possível que os laços económicos e comerciais bilaterais voltem ao normal”.
A China esclareceu de maneira mais pormenorizada a sua posição sobre os recentes sobrevoos militares dos Estados Unidos em Taiwan, sobre as mudanças de Washington a propósito das vendas de armas a Taipé e das diligências de Pompeo para que Taiwan possa ser representado como um Estado independente na Organização Mundial de Saúde (OMS) e outras acções.
O Global Times revelou que o Exército Popular de Libertação (EPL) da China enviou aviões militares para o espaço aéreo do Sudoeste de Taiwan por oito vezes apenas em Junho. Especificou que além das missões de reconhecimento e as que têm como objectivo interceptar aparelhos militares dos Estados Unidos que voem na região, o EPL está igualmente a realizar “operações de treino para impedir os potenciais reforços norte-americanos e japoneses oriundos das ilhas de Guam e Ryukyu através dos canais de Miyako, a Leste de Taiwan, e de Bashi, Balintang e Babuyan, a Sudoeste de Taiwan”.
O texto acrescenta que “o ELP poderia usar essas operações para bloquear efectivamente a área à presença de forças estrangeiras, garantindo que as forças do território de Taiwan fiquem circunscritas”.
Recorrendo a um lugar comum poderá dizer-se que a China está a ser mais “assertiva” do que anteriormente. Qual a razão? Será uma reacção injustificada, como pretendem fazer crer analistas norte-americanos e indianos, ou uma tentativa de encobrir fraquezas chinesas?
Na realidade, a China está a reagir a uma série de acções calibradas dos Estados Unidos para irritá-la, provocá-la, humilhá-la e ameaçá-la. A colocação de três porta-aviões da Marinha dos Estados Unidos com 100 mil toneladas no Oceano Pacífico pela primeira vez em três anos é a mais recente manobra desse tipo. A China mantém-se impávida, mas os danos estão feitos.
Os movimentos provocatórios dos Estados Unidos criaram tensões no relacionamento bilateral. Movimentos que estão a sair pela culatra a Washington. Nessa perspectiva, a “assertividade” da China acaba por ser uma dissuasão – e não uma pretensa agressão – num clima de segurança em que a confiança mútua se desintegra por todos os lados.