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CHINA: UM PAÍS, DUAS SESSÕES, TRÊS AMEAÇAS

2020-05-25

As duas importantes sessões do Congresso Nacional do Povo em Pequim incidiram sobre o posicionamento da China em relação à guerra fria que tem sido movida contra o país pelos Estados Unidos e o Ocidente em geral, acelerada com as incidências da pandemia de COVID-19. O Congresso deu alento a uma recuperação e a um relançamento económico rápido no plano interno como base material e tecnológica para concretizar os grandes projectos sociais domésticos e as acções internacionais estabelecidos e em desenvolvimento. Algumas coisas vão mudar no plano internacional, a começar por Hong Kong.

Pepe Escobar, Asia Times/O Lado Oculto

Os principais destaques das duas sessões do XIII Congresso Nacional do Povo de Pequim já são do domínio público.  

Em resumo: nenhuma meta de PIB para 2020; um défice orçamental de pelo menos 3,6% do PIB; um bilião (um milhão de milhões) de yuans em títulos especiais do tesouro; cortes de taxas/impostos corporativos em 2,5 biliões de yuans; um modesto aumento do orçamento de defesa de 6,6%; estruturas governamentais a todos os níveis comprometidas em "apertar o cinto".

O objectivo, como está previsto, é colocar a economia doméstica da China pós-Covid-19 no caminho do crescimento sólido em 2021.

Previsivelmente, todo o foco na esfera anglo-americana tem sido apontado para Hong Kong – uma vez que será estabelecido um novo marco legal, a ser aprovado na próxima semana, concebido para evitar a subversão, a interferência estrangeira "ou quaisquer actos que ponham seriamente em risco a segurança nacional". Afinal, como salienta um editorial do Global Times, Hong Kong é uma questão de segurança nacional extremamente sensível.

Este é um resultado directo das conclusões da missão de observação chinesa baseada em Shenzhen e que faz a análise das acções de vários “quinta colunistas” e dos “blocos negros” armados que quase conseguiram destruir Hong Kong no Verão passado.

Não é de se admirar que a frente anglo-americana “ combatente da liberdade” esteja inflamada. As coisas vão mudar. Acabaram-se os almoços grátis, acabaram-se os protestos pagos. Sem “blocos negros”. Sem mais guerra híbrida. Pai Pequim vai adoptar uma nova maneira de fazer as coisas.

As três ameaças

É absolutamente essencial posicionar as duas sessões no contexto geopolítico e geoeconómico mais abrangente e incandescente da nova guerra fria de facto - incluindo a guerra híbrida - entre os Estados Unidos e a China.

Concentremo-nos num insider norte-americano: o ex-conselheiro de segurança nacional da Casa Branca, tenente-general HR McMaster, autor da perspectiva Battlegrounds: The Fight to Defend the Free World (A Luta para Defender o Mundo Livre).

Esta é a abordagem mais clara em termos de como o "mundo livre", em pentagonês, encara a ascensão da China. Chame-se-lhe a visão do complexo industrial-militar de vigilância-e-media. 

Pequim, segundo McMaster, está a seguir uma política de "cooptação, coerção e ocultação" centrada em três eixos: o Made in China 2025; Novas Rotas da Seda, ou Iniciativa Cintura e Estrada (ICE); e uma "fusão civil-militar" - indiscutivelmente o vector mais "totalitário", centrado na criação de uma rede global de inteligência em espionagem e ataques cibernéticos. 

Chamemos-lhes as três ameaças 

Independentemente das atitudes adoptadas pelas elites de Washington, o Made in China 2025 permanece vivo e de boa saúde.

A meta a ser atingida através de investimentos de 1,4 biliões de yuans é a maneira de tirar proveito do conhecimento acumulado por Huawei, Alibaba, SenseTime Group e outros para projectar um ambiente de IA (inteligência artificial) perfeito. Neste processo, a China está a reinventar toda a sua base tecnológica e a reestruturar toda a cadeia de suprimentos de semicondutores de modo a que torne de base nacional. Estes pontos não são negociáveis.

Cintura e Estrada, em pentagonês, é sinônimo de "clientelismo económico" e de uma "impiedosa armadilha de dívidas". Mas McMaster acaba por abrir o jogo quando considera que o pecado capital da iniciativa é "o objectivo de deslocar a influência dos Estados Unidos e dos seus principais parceiros".

Quanto à "fusão civil-militar", em pentagonês trata-se de "tecnologias roubadas ao sector militar em áreas como espaço, ciberespaço, biologia, inteligência artificial e energia". Isto equivale a "espionagem e roubo cibernético".

Em suma: é essencial um “empurrão” contra os “comunas da China”, que se tornam "ainda mais agressivos na promoção da sua economia estatal e do seu modelo político autoritário".

A diáspora chinesa com a palavra

Além desta avaliação maniqueísta e bastante quadrada, McMaster destaca um ponto interessante: 

"Os Estados Unidos e outras nações livres deveriam encarar as comunidades expatriadas como uma força. Os chineses no exterior – se forem protegidos da intromissão e espionagem do seu governo - podem tornar-se um contraponto significativo à propaganda e desinformação de Pequim".

Vamos comparar esta abordagem com as reflexões de um verdadeiro mestre da diáspora chinesa: o professor Wang Gungwu, nascido em Surabaya, na Indonésia, que completará 90 anos em Outubro próximo e é autor de um delicioso e pungente livro de memórias, Home is Not Here (A Minha Casa Não é Aqui).

Para quem está do lado de fora não há melhor explicação para o estado de espírito predominante em toda a China:

"Pelo menos duas gerações de chineses aprenderam a apreciar que o Ocidente moderno tem ideias e instituições valiosas para oferecer, mas a agitação de grande parte do século XX também as fez sentir que as versões da democracia da Europa Ocidental podem não ser tão importantes para o desenvolvimento nacional da China. A maioria dos chineses parece aprovar políticas que colocam ordem e estabilidade acima da liberdade e da participação política. Eles acreditam que é disso que o país precisa nesta etapa e não gostam de ser regularmente criticados como politicamente não liberalizados e retrógrados".

Wang Gungwu destaca que os chineses pensam de forma bem diferente da trajetória "universalista" do Ocidente, e assim chega ao cerne da questão: 

"Se a República Popular da China (RPC) conseguisse criar uma rota alternativa para a prosperidade e para a independência, os Estados Unidos (e outros lugares do Ocidente) veriam isso como uma ameaça fundamental ao seu domínio (e da Europa Ocidental) no mundo. Aqueles que se sentissem ameaçados fariam então tudo o que estivesse ao seu alcance para conter a China. Eu acho que é isso que a maioria dos chineses acreditam que os dirigentes norte-americanos estão preparados para fazer".

Nenhuma análise do Deep State (Estado Profundo) dos Estados Unidos pode ficar de pé quando ignora a riqueza da história chinesa: 

"A natureza da política chinesa, seja sob imperadores, senhores da guerra, nacionalistas ou comunistas, estava tão enraizada na história chinesa que nenhum indivíduo ou grupo de intelectuais poderia oferecer uma nova visão que pudesse apelar para a maioria do povo chinês. No final, essa maioria parece ter aceitado a legitimidade da vitória da RPC no campo de batalha, associada à capacidade de trazer ordem e objectivos renovados a uma China rejuvenescida". 

 O longo telegrama em nova versão

O promotor federal Francis Sempa, autor do livro America's Global Role (O Papel Global da América, em tradução livre) e professor adjunto de ciência política na Wilkes University, comparou a avaliação de McMaster sobre a "ameaça" da China com o lendário "longo telegrama" escrito por George Kennan em 1947, sob o pseudônimo X.

O "longo telegrama" delineou a estratégia subsequente de conter a União Soviética, completada com a construção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (NATO). Foi o principal plano da guerra fria.

O atual remix rasteiro do “longo telegrama” também pode ter pernas longas. Sempa, a seu favor, ao menos admite que "as tímidas recomendações políticas de McMaster não levarão à dissolução gradual ou ao abrandamento do poder comunista chinês".

Ele sugere - além disso – que a "contenção" deve ser "firme e vigilante". E reconhece, a seu favor, que deve ser "baseada no entendimento da história chinesa e na geografia indo-pacífica". Mas então, mais uma vez, acaba por abrir o jogo - à moda de Zbigniew Brzezinski: o que mais importa é "a necessidade de impedir que uma potência hostil controle os principais centros de poder da massa terrestre euroasiática".

Não é de se admirar que o Estado Profundo dos Estados Unidos identifique a Iniciativa Cintura e Estrada e suas derivações, como a Rota da Seda Digital e a Rota da Seda da Saúde através da Eurásia, como manifestações de uma "potência hostil".

Todo o fulcro da política externa norte-americana desde a Segunda Guerra Mundial tem sido impedir a integração da Eurásia - agora activamente desenvolvida através da parceria estratégica Rússia-China. As Novas Rotas da Seda através da Rússia - parte da Grande Parceria Euroasiática de Putin - estão destinadas a fundir-se com a Cintura e Estrada. Putin e Xi voltarão a encontrar-se pessoalmente em meados de Julho, em São Petersburgo, para as cimeiras gémeas dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e da Organização de Cooperação de Xangai; discutirão então mais pormenorizadamente o assunto.

Presidir em silêncio às duas sessões foi a atitude tomada pela direcção chinesa para expressar a estratégia segundo a qual retomar rapidamente os negócios domésticos é essencial para um novo impulso no grande tabuleiro de xadrez. Porque sabe que o complexo industrial-militar de vigilância-e-media não vai perder qualquer ocasião para tentar implantar estratégias geopolíticas e geoeconómicas que proporcionem a sabotagem da integração da Eurásia.

O Made in China 2025; a Iniciativa Cintura e Estrada - o equivalente pós-moderno da Antiga Rota da Seda; a Huawei; a predominância industrial da China; avanços na luta contra a Covid-19: tudo isto é um alvo. Mas nada - desde um longo telegrama em nova versão até ruminações obsoletas em torno da Armadilha de Tucídides - vai fazer descarrilar uma China rejuvenescida da via para atingir os seus próprios objetivos. 

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