RÚSSIA E TURQUIA ENTENDEM-SE SOBRE A SÍRIA
2019-11-08
José Goulão
O memorando de entendimento russo-turco assinado em 22 de Outubro pelos presidentes Vladimir Putin e Recep Tayyip Erdogan é um documento essencial para compreender a fase actual da guerra internacional contra a Síria e as perspectivas de evolução que o problema regista. Esclarecedor, tanto pelo que afirma como pelo que omite, o texto contém em si mesmo alguns importantes mecanismos de travagem dos objectivos pretendidos pela NATO, pelos Estados Unidos e outras potências suas aliadas.
O elemento essencial do documento é o compromisso de Ancara e Moscovo para actuarem de maneira a “preservar a unidade política e a integridade territorial da Síria”, “combaterem todas as formas de terrorismo e contrariarem projectos separatistas”.
Tais formulações revelam um programa contra as ambições da NATO, Estados Unidos e União Europeia manifestadas desde o início da guerra, em 2011, recorrendo a grupos terroristas criados, treinados e financiados expressamente para o efeito. Sendo um texto em que uma das partes é um peso pesado da Aliança Atlântica, traduz importantes divergências estratégicas dentro da organização ao nível regional e deixa clara, por outro lado, a intenção turca de assumir um novo papel no Médio Oriente. Um papel expansionista? Implicitamente sim mas, para já, com efeitos limitados na Síria – é o que se apura na generalidade do documento.
A Rússia e a Turquia – com o apoio tácito do governo da Síria, como se percebe – estipulam as condições em que efectivos militares ao serviço de Ancara ficam a controlar uma faixa com 32 quilómetros de profundidade ao longo da fronteira norte síria, até ao Iraque, com excepção do posto avançado de Qamichli, já em poder das tropas de Damasco.
A presença turca neste território tem a sua base no Tratado de Adana, assinado em 1998 pelos presidentes da Síria, Bachar Assad, e da Turquia, Suleiman Demirel – que agora é reafirmado através do memorando russo-turco. Nos termos do entendimento, a Turquia tem autorização de Damasco para perseguir milícias curdas do Partido dos Trabalhadores do Curdistão (PKK) dentro dessa faixa de território: a profundidade de 32 quilómetros foi definida em função do alcance máximo da artilharia de que a guerrilha curda dispunha em 1998.
Uma das omissões relevantes do documento de 22 de Outubro é o facto de não estabelecer um horizonte temporal fixo para a Turquia estar presente neste território sírio, levantando assim legítimas interrogações sobre a eventualidade de estarmos perante uma situação análoga à que se passa no norte de Chipre e que a NATO e a União Europeia têm sido incapazes de resolver.
A questão curda
Outro dos aspectos essenciais do memorando russo-turco é a forma como aborda a questão dos curdos da Síria.
Os pontos que estabelecem o acordo de Moscovo e Ancara para “contrariar os projectos separatistas” e manter a unidade política e a integridade territorial da Síria são muito claros quanto ao destino do Rojava, uma entidade pretensamente curda instituída pelos Estados Unidos, França e Israel em cerca de um terço do território sírio e que é fulcral para os objectivos ocidentais de desmantelar o país – a exemplo da Líbia. Potências ocidentais recorrem cinicamente a uma causa justa e a direitos legítimos de populações curdas (um povo muito heterogéneo em termos de comunidades e polos de influência) para concretizarem os seus objectivos próprios de índole colonialista. O território entregue ao Rojava integra as principais reservas de petróleo da Síria e não é por acaso que o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, disse que pretende deixar tropas norte-americanas “a proteger” os campos petrolíferos de Deir ez-Ezzor, apesar de ter anunciado a retirada militar. Trump recorreu a algumas das suas habituais pérolas de oratória, como por exemplo: “talvez mais alguém queira este petróleo e, nesse caso, terá de submeter-se a um combate infernal, porque está em jogo uma enorme quantidade de petróleo”; ou ainda: “queremos manter esse petróleo, lembrem-se disso. Eu sempre disse que iríamos ficar com o petróleo e queremos guardá-lo porque representa 45 milhões de dólares por mês”; e também: “o que pretendo fazer é talvez um grande acordo com a Exxon Mobil ou uma das nossas grandes empresas para tomar conta dos recursos da região, fazê-lo correctamente e … distribuir a riqueza”.
O memorando russo-turco define mecanismos militares para proceder à recolocação das milícias curdas das chamadas “Forças Democráticas Sírias”, constituídas essencialmente pela organização curda YPG (Forças de Protecção do Povo): forças conjuntas da Polícia Militar russa e da Guarda de Fronteiras Síria; e patrulhas conjuntas russo-turcas. Todos os elementos do YPG deverão retirar-se também, levando as suas armas, das regiões de Manjib e Tell Rifaat. O documento prevê ainda o regresso dos refugiados que o desejarem.
O alcance desta última medida visa também reestabelecer direitos das populações, na sua maioria árabes e assírias, que foram desalojadas de suas casas e terras para que o Rojava fosse constituído num território que não tinha uma maioria demográfica curda. A entidade manipulada pelos Estados Unidos, França e Israel foi criada com base numa cruel limpeza étnica que a comunicação social dominante continua a omitir embora agora seja solícita – e bem – a denunciar as atrocidades cometidas pelas milícias turcomanas que agem sob a tutela das forças armadas turcas.
A solução da questão curda, que na Síria não existia e foi levantada artificial e oportunisticamente pelas forças que promoveram a guerra pela destruição do país, pode solucionar-se dando continuidade ao diálogo estabelecido entre sectores do YPG e o governo de Damasco.
Quando se iniciou a infiltração de grupos terroristas na Síria que conduziu à falsamente designada “guerra civil”, a comunidade curda e o YPG ficaram do lado do governo de Damasco. A divisão do YPG e a colocação de uma facção dissidente sob controlo dos Estados Unidos e aliados – e posterior utilização na pretensa guerra contra o Isis ou Estado Islâmico – aconteceu numa fase avançada da guerra, no quadro da tentativa de transformação da Síria num conglomerado de entidades homogeneizadas étnica e religiosamente,
O memorando russo-turco orienta-se no sentido inverso, no do restabelecimento de uma Síria una e íntegra. O documento sublinha o compromisso de Moscovo e Ancara no respeito pelos acordos de Adana e no apoio à Comissão Constitucional criada recentemente, a qual, integrando representantes governamentais e da oposição, irá redefinir o Estado sírio.
Questões em aberto
Além da reconfiguração da relação de forças à luz do memorando russo-turco, estão ainda em aberto outras questões de fundo na Síria, designadamente a situação na província de Idleb, que continua, em grande parte, em poder de grupos terroristas sob tutela da al-Qaida e Estado Islâmico; e também as reacções dos derrotados ocidentais, de que são exemplo a insistência dos Estados Unidos em manter ilegalmente a sua presença militar no terreno.
O memorando russo-turco tem um potencial que permitirá perspectivar o fim da guerra, desde que o compromisso assumido por Ancara seja levado às últimas consequências.
Pontos do documento, como o estabelecimento de mecanismos conjuntos de vigilância e verificação, a criação de medidas para impedir a infiltração de terroristas e o regresso “voluntário e nas melhores condições” dos refugiados, são determinantes. A Turquia, recorda-se, foi durante grande parte da guerra um dos santuários fundamentais do terrorismo que criou a tragédia síria, tanto em termos de mobilização e treino como de infiltração transfronteiriça. Tropas turcas também têm estado envolvidas nas circunstâncias que impedem a libertação de Idleb pelas forças regulares sírias. A aplicação estrita do memorando contribuirá para deixar os grupos terroristas remanescentes sem rectaguarda e permitirá a libertação gradual de Idleb – o último bastião terrorista activo.
A solução e os problemas
O memorando russo-turco está do lado da solução dos problemas criados à Síria; e revela que a Rússia ganhou margem de manobra internacional ao agir a tempo de impedir que se repetisse o caos que hoje existe na Líbia – o caminho que a guerra efectivamente tomava.
Do lado dos problemas continuam a NATO, os Estados Unidos e os seus mais fortes aliados: França, Reino Unido, Israel e também a Alemanha, que tem vindo a mostrar-se em evidência nos últimos meses. Para a Aliança Atlântica e para estes países, a questão curda e a manipulação de outras comunidades étnicas não são assuntos encerrados, tentando evitar o mais possível a reconstituição e a reconstrução do Estado sírio.
O recurso ao terrorismo continua a ser uma opção: ainda não se percebeu todo o alcance da mal contada história que teve como desfecho oficial a execução do chefe do Isis, Abu Bakr al-Baghdadi. E os acontecimentos no Iraque visando o governo de Bagdade também não podem ser desligados da situação na Síria e no Irão.
Além disso, a manutenção militar dos Estados Unidos, de “guarda ao petróleo”, tem implicações desestabilizadoras muito perigosas, no limite susceptíveis de provocar confrontos directos entre tropas russas e norte-americanas. A multiplicação de focos de conflito, mesmo que sejam avulsos, orienta-se pela urgência em impedir a estabilização e a gradual pacificação. Trump declarou-se disposto a um “combate infernal”, recorda-se
A destruição da Síria, não pode esquecer-se, era parte de um plano bastante mais vasto que incluía a consequente mudança de regime no Irão, o que não deixou de estar na ordem do dia. A instauração em Teerão de um regime fiel a Washington significaria um passo mais no progressivo alargamento do cerco da NATO à Rússia, passando a incluir o Mar Cáspio.
Moscovo está ciente disso e reagiu a tempo na Síria, bloqueando parte do projecto.
Quando actualmente a comunicação social dominante se angustia com as atrocidades das milícias turcomanas, ignorando a verdade sobre grande parte das carnificinas terroristas, incluindo limpezas étnicas, que martirizaram a Síria, expõe todo o cinismo da atitude ocidental perante a situação. Os direitos humanos são a última das suas inquietações.