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“MODO DE VIDA EUROPEU”: O SUPLÍCIO DOS REFUGIADOS

Refugiados chegam à Grécia oriundos da Turquia

2019-09-24

Lourdes Hubermann, Berlim

A União Europeia está cada vez mais confrontada com o fracasso da sua estratégia de terceirizar a política de refugiados em troca de avultadas somas de dinheiro para que outros países travem as entradas no continente e não permitam assim que seja perturbado o “modo de vida europeu”, segundo a terminologia estabelecida pela nova presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen. A recente mudança de posição da Turquia agravou a situação nessa matéria.

Refém da falta de princípios humanistas na sua maneira de lidar com os refugiados e do desentendimento total entre os 28, a União Europeia continua a ser cruel para com os refugiados, que trata erradamente como “migrantes”, saltando de medida avulsa em medida avulsa para impedir a sua entrada no espaço comunitário. Trata-se, segundo von der Leyen, de defender o “European way of life”.

O quadro agravou-se com os indícios fortes de que a Turquia já não está vinculada ao acordo para servir de tampão ao acesso de refugiados aos países da União.

Em 5 de Setembro, o chefe do regime turco, Recep Tayyip Erdogan, acusou a União Europeia de não cumprir com o seu acordo sobre os refugiados ao não entregar a Ancara uma parte da verba prometida. Bruxelas comprometeu-se, num acordo patrocinado pela Alemanha, a pagar anualmente três mil milhões de euros à Turquia para que este país feche as fronteiras de modo a estancar a entrada de refugiados oriundos principalmente das guerras da Síria, do Iraque e do Afeganistão. Segundo afirmações feitas por Erdogan num encontro regional do seu partido AKP, em Ancara, a União Europeia está em falta com uma das entregas semestrais, correspondente a uma verba avaliada em 1500 milhões de euros.

As autoridades europeias desmentem esse facto, mas não é possível apurar quem tem razão no diferendo uma vez que as verbas gastas por Bruxelas na sua inconsequente política de refugiados não são inscritas no orçamento da União.

Já anteriormente, em 22 de Julho, o ministro turco dos Negócios Estrangeiros, Mevlut Çavusoglu, anunciara na estação de rádio TGRT que a Turquia suspendera o acordo com a União Europeia relacionado com os refugiados.

Turquia abriu as portas

Nenhuma das partes, no entanto, assumiu oficialmente a quebra do acordo, mas a verdade é que a polícia de fronteiras da União, o Frontex, detectou a partir de Agosto um significativo aumento do número de refugiados passando da Turquia para a Grécia. O centro de acolhimento de Moria, calculado para 7500 pessoas, recebeu o dobro da lotação, situação semelhante à que afecta o centro de recepção da ilha de Lesbos desde o início de Setembro.

Apesar das inclusões já concretizadas – números irrisórios – e da tentativa para definir quotas de acolhimento por país, a política central da União Europeia na questão dos refugiados é a de evitar a sua entrada.

Para isso Bruxelas paga muito dinheiro, designadamente ao regime turco e a instâncias líbias para que recebam e não deixem passar para a Europa os milhares de seres humanos que fogem de situações pelas quais a União Europeia é corresponsável, por exemplo as guerras do Iraque, da Síria, do Afeganistão, da Líbia e a instável situação no Sahel.

Duplo financiamento da tragédia

Na Líbia, tendo em conta a destruição administrativa do país, a sua entrega a entidades sem legitimidade e a milícias terroristas, a União Europeia paga verbas não explicitadas às várias guardas fronteiriças existentes para impedirem o embarque de refugiados em direcção à Europa, quase sempre em precárias embarcações. A União sustenta também os chamados “campos de acolhimento” líbios, na realidade campos de concentração onde grupos que alimentam o tráfico de seres humanos retêm dezenas de milhares de pessoas em condições ultrajantes.

Quaisquer das entidades financiadas pela União Europeia para impedir o ingresso de refugiados, sejam públicas ou privadas, extraem duplos proveitos dessa actividade.

No caso da Turquia, o regime tem recebido milhões de euros anuais a título de indemnizações pelas despesas em que incorre para que o território seja ponto de acolhimento e não de passagem. Ao mesmo tempo, porém, a Turquia obtém elevadas receitas extraordinárias pelo trabalho escravo que impõe às massas de refugiados, privadas dos mais elementares direitos sociais e laborais. A União Europeia assegura assim, por duas vias, a subsistência do regime autocrático de Erdogan.

No caso líbio, os grupos financiados directamente pela União Europeia tiram igualmente enormes proveitos das redes de tráfico de seres humanos montadas no país desde que a NATO o desagregou. Habitualmente essas redes conseguem extorquir todos os bens pessoais aos refugiados para que possam viajar para a Europa e, posteriormente, sequestram as embarcações para forçarem o regresso das vítimas ao porto de partida. A União Europeia assegura assim, por duas vias, a subsistência e o reforço de grupos de terroristas e traficantes, muitos dos quais já tinham colaborado com a NATO no processo de desmembramento da Líbia.

Assim funciona a “política de refugiados” da União Europeia, agora qualificada pela nova Comissão Europeia como uma via para preservar a “European way of life”, o “modo de vida europeu” – seja lá o que isso for.


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