GIGANTES DA ENERGIA “ACONSELHAM” POLÍTICA EXTERNA DA UE
2020-12-04
Pilar Camacho, Bruxelas; exclusivo O Lado Oculto
Um alto quadro do Conselho de Administração do gigante energético italiano ENI e membro altamente remunerado de duas comissões da mesma empresa é conselheiro especial do chefe da política externa da União Europeia, Josep Borrel, cujo gabinete se “esqueceu” de informar a Comissão Europeia sobre a sua nomeação.
A Comissão Europeia, porém, considera que não há conflito de interesses, apesar de o sector energético ser um dos mais influentes na política externa da União Europeia e de a ENI ser o maior produtor estrangeiro de petróleo em África, continente onde está envolvida em acusações de corrupção na ordem dos milhares de milhões de euros, designadamente na Nigéria e na República do Congo.
Além disso, só em 2019 a ENI pagou cerca de milhão e meio de euros em actividades de lobby junto da União Europeia, através do seu escritório em Bruxelas
O escândalo foi tornado público pelo website EUObserver, que considera a situação “provavelmente como um embaraço para a Comissão Europeia”.
A conselheira em causa é Nathalie Tocci, designada em Abril por Borrell apesar de ser membro do Conselho de Administração da ENI e membro de duas comissões da empresa, a uma das quais preside, posições a que podem corresponder remunerações de cem mil euros anuais. Os escândalos de corrupção em que a ENI está alegadamente envolvida continuam na mira do Ministério Público italiano, que tenta conseguir a prisão de Claudio Descalzi, presidente da empresa; o qual, apesar disso, foi reconduzido no cargo pelo governo italiano.
Borrell escondeu nomeação
O gabinete de Josep Borrell não informou a Comissão da nomeação de Nathalie Tocci como sua conselheira especial, em Abril deste ano, travando, desde logo, qualquer processo de avaliação de eventuais conflitos de interesses.
O processo foi conhecido apenas depois de defensores da transparência de actuação na UE terem divulgado a situação, forçando assim a Comissão a pedir a Tocci uma declaração que confirmasse as suas funções. Ao mesmo tempo, solicitou ao gabinete de Borrell que emitisse uma “declaração de fiabilidade” que permitisse seguir pistas dos eventuais conflitos de interesses.
A resposta foi dada pelo chefe de gabinete de Borrell, Pedro Serrano, no fim-de-semana de 10 de Agosto, cinco meses depois da nomeação e só depois de organizações não-governamentais terem dado o alerta para o caso.
Myriam Douo, porta-voz da organização Friends of the Earth Europe, afirmou que “a nomeação de Nathalie Tocci, membro do Conselho da ENI, como consultora para assuntos externos da União Europeia é mais um exemplo da infiltração dos interesses petrolíferos no processo democrático”. Acrescentou que as regras de supervisão na União Europeia “são fracas” e que as condições contidas na “declaração de fiabilidade” apresentada pelo gabinete de Borrell não se aplicam ao caso. Limitam-se garantir que Tocci não exerce pressões da ENI sobre instituições da União, o que é inverificável.
Em mensagens enviadas ao EUObserver, Nathalie Tocci, politóloga e professora italiana, alega que é directora independente e não executiva da ENI e que nunca aconselhou o chefe da política externa da União sobre a Nigéria ou o Congo.
No entanto, foi nomeada por Borrel pouco tempo depois de ter provocado um escândalo ao emitir uma opinião sobre as disputas pelas jazidas de gás natural entre a Grécia e a Turquia no Mediterrâneo Oriental, região onde a ENI tem enormes interesses. A iniciativa provocou a indignação de Atenas e forçou a Comissão Europeia a distanciar-se da posição assumida por Tocci.
Não consta, porém, que a denúncia de situações como esta levem a Comissão Europeia a alterar a sua habitual atitude complacente perante a selva de lobbies em que vive a União Europeia e que permite até o acesso de directores de grandes empresas a cargos de “conselheiros” nos gabinetes de comissários. A questão energética é essencial na chamada “política externa” da União Europeia e, apesar disso, a integração de Nathalie Tocci na equipa de conselheiros especiais de Josep Borrell mereceu apenas um e-mail de um funcionário da Comissão dirigido a Pedro Serrano, o chefe de gabinete, no qual assinala que “a Comissão está sob escrutínio público muito próximo a este respeito”. Isto é, o problema não são as irregularidades e a corrupção, mas o facto de poderem ser descobertas.