O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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VENTOS DE GOLPE SOPRAM NO VATICANO

2020-08-25

São dois livros, têm o mesmo título – “O Próximo Papa” – foram publicados por instituições da direita católica mais reacionária e traçam cenários onde se põe a carroça à frente dos bois: o afastamento do Papa Francisco, que goza de excelente saúde, que seria transformado em Papa emérito, tal como aconteceu com Bento XVI mas por razões bem diferentes. Editados na Europa, não se trata de livros inocentes nem desinteressados: traçam cenários para um próximo conclave e propõem listas de “papáveis” onde pontificam algumas figuras ultramontanas europeias e norte-americanas que se têm distinguido na conspiração permanente contra Francisco. Nos meandros vaticanos correm rumores de que por detrás destas listas estão a CIA e o FBI, além de políticos e governos europeus e norte-americanos, sem esquecer os grandes conglomerados económico-financeiros, que pretendem um Pontífice talhado à sua medida.

Bernardo Barranco V., La Jornada/O Lado Oculto

A direita conservadora, em particular a anglo-saxónica, pretende que o pontificado de Jorge Bergoglio, o Papa Francisco, chegue ao fim. Dois livros com o mesmo título – The Next Pope (O Próximo Papa) – publicados por esta corrente ambicionam criar uma atmosfera de fim de pontificado e buscar desde já o sucessor de Francisco. É compreensível o alarme mediático da direita com a saúde frágil do Papa emérito Joseph Ratzinger, Bento XVI, considerado pela direita o verdadeiro Papa, em contraposição a Francisco, o Papa terceiro mundista, o pontífice de um surpreendente progressismo católico. Esta direita, com tendências para o cisma, luta por uma hermenêutica de continuidade dos reaccionários João Paulo II e Bento XVI. Não tolera as rupturas de um pontificado latino-americano plebeu, ainda que este se apoie no Concílio Vaticano II. Para esses sectores, ao cabo de sete anos Francisco deve ser substituído ou eliminado. Por isso, a direita norte-americana, talvez imbuída da atmosfera eleitoral dos Estados Unidos, monta um clima antecipado de conclave sucessório.

Conspiração

O primeiro livro foi escrito pelo conhecido historiador George Weigel; o segundo, pelo jornalista Edward Pentin, correspondente em Roma do National Catholic Register e colaborador habitual da rede de TV conservadora EWTN. Este último teve a audácia de propor candidatos para um hipotético conclave que afaste do cargo um pontífice de 83 anos que goza de óptima saúde e pleno domínio do seu poder pontifício. O texto é uma provocação – pois o Papa está vivo – e, portanto, uma proposta editorial desleal. Trata-se de um ataque político disfarçado à liderança de Francisco, cujo fim do pontificado pretende antecipar. O precedente da renúncia de Bento XVI sugeriria que não é preciso esperar necessariamente a morte de um Papa para eleger um sucessor. Francisco poderia decidir, também, converter-se em emérito. Como no filme da Netflix, Dois Papas, Bergoglio poderia tornar-se o grande eleitor do próximo Papa. Numa entrevista, o autor do livro afirmou: “é possível que possa renunciar e há muitas teorias a este respeito”. Uma assegura, sempre segundo Pentin, que Francisco esperaria primeiro que Bento XVI morra. Bergoglio tentaria indicar o cardeal filipino Luis Antonio Tagle. Outros crêem muito pouco provável que Bergoglio renuncie, em especial porque tem planos para reformar a Igreja.

O livro de Pentin, que tem por subtítulo “Os principais cardeais candidatos”, foi editado pela Sophia Institute Press, uma instituição conservadora. Em mais de 700 páginas, traça os perfis de 19 supostos candidatos a Papa. O objectivo do trabalho é explícito: trata-se de chegar ao conclave com a maior informação possível sobre os candidatos. A obra é uma detalhada compilação de informações sobre cada um dos cardeais que se apresentariam para uma nova era pós-franciscana. O texto reflecte uma visão bastante obcecada sobre o estado da Igreja. Em Roma circula o rumor de que a lista dos 19 papáveis propostos foi fruto de minuciosas investigações do FBI e dos registos da CIA. Mostraria o interesse e impaciência do governo de Donald Trump para retirar legitimidade a um dirigente internacional antagónico aos interesses actuais da Casa Branca.

À direita das direitas

Pentin aponta diversos candidatos, mas predominam os conservadores. E é claro que há na lista vários ultraconservadores, como o cardeal norte-americano Raymond Burke e o guineense Robert Sarah, que se distinguem pela oposição aberta às posições de Francisco. Poucos são progressistas – como o mencionado Tagle, cardeal emérito de Manila e actual Prefeito da Congregação para a Evangelização dos Povos e presidente da Caritas Internacional. 

Também figuram personagens ao centro, como o secretário de Estado do Vaticano, Pietro Parolin, que teria o suposto inconveniente de uma ligação estreita com Francisco. Parolin mantém perfil baixo, é italiano e condescendente com a beligerante ala conservadora. Tem 65 anos e seria capaz de produzir um consenso entre as alas em disputa. Homem do aparelho vaticano e diplomático, jamais foi, porém, bispo de diocese – ou seja, não tem “perfil pastoral”. Pentin excluiu da sua lista quatro dos seis cardeais de peso que assessoram actualmente Francisco. São eles Reinhard Marx, arcebispo de Munique e ex-presidente da Conferência Episcopal Alemã; Oswald Gracias, arcebispo de Mumbai; Giuseppe Bertello, presidente da Pontifícia Comissão para o Estado da Cidade do Vaticano e Óscar Maradiaga, arcebispo de Tegucigalpa, Honduras.

O actual colégio de cardeais que elegeria o novo Papa parece equilibrado. Nele, 66 dos eleitores (54%) foram nomeados por Francisco, 40 por Bento XVI e 16 por João Paulo II. O Papa argentino designou 88 cardeais, muitos não elegíveis por idade. Francisco privilegiou o Terceiro Mundo: 17 países têm pela primeira vez um cardeal. O Colégio Cardinalício também é menos europeu – 41% dos eleitores têm esta origem – e, no seu conjunto, os prelados têm menos experiência burocrática do funcionamento do Vaticano.

Francisco é alvo de severas atitudes de contestação na Europa e Estados Unidos, onde se pretende minar a sua autoridade e abrandar o ritmo das reformas que promove. Nos ataques estão envolvidos também políticos, governos e empresas, especialmente grandes grupos económicos que anseiam por um Papa a seu gosto, sobretudo que não critique a ordem neoliberal estabelecida à escala praticamente global.


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