EMIRADOS ÁRABES E ISRAEL: UM ACORDO INDECOROSO
2020-08-22
Os Emirados Árabes Unidos (EAU) e Israel assinaram um acordo dito histórico para normalizar as suas relações. É uma viragem importante na região. Embora um número cada vez maior de países árabes, alinhados com o Ocidente, tenham por hábito negociar com Israel, oficialmente os Estados da região continuam comprometidos com o acordo de Beirute de 2002, avalisado pela Liga Árabe. Este acordo promete a paz com Israel em troca da retirada dos territórios ocupados – Cisjordânia, Jerusalém Leste, Gaza e Montes Golã – a criação de um Estado palestiniano com capital em Jerusalém Leste e uma solução para os refugiados palestinianos. Uma vez que Israel sempre recusou este plano de paz árabe, os Emirados Árabes Unidos quebraram um tabu muito sério. Pior ainda, como realça Basem Naim, antigo ministro palestiniano, os EAU acrescentam o insulto à injúria fazendo crer que aprovaram este acordo com Israel para defender a Palestina, a qual, evidentemente, nem foi consultada.
Basem Naim*, Gaza; Chronique de Palestine/O Lado Oculto
O anúncio de um acordo para normalizar as relações entre os Emirados Árabes Unidos e o Estado de ocupação israelita não é propriamente uma surpresa, mas a sua forma e timing são indecorosos.
Todos os que têm seguido as normalizações de relações dos últimos anos notaram que no Golfo, em especial os Emirados, teimaram em destruir regularmente todos os tabus que os árabes respeitam há décadas em relação à causa palestiniana. O mais importante desses tabus é o de que não se devem normalizar as relações com o Estado de ocupação sem que seja encontrada uma solução equitativa da questão palestiniana. Essa é a essência da iniciativa árabe adoptada pela Liga Árabe em 2002, com base numa proposta saudita.
Ainda que o Estado de ocupação tenha rejeitado a iniciativa na época e que Ariel Sharon, antigo primeiro-ministro israelita, tenha dito que “ela não vale sequer o papel em que está escrita”, os árabes juntaram-se em torno do acordo e repetiram muitas vezes ao inimigo que “22 países árabes estão prontos para uma normalização completa com ele desde que seja obtida uma solução justa e global para a causa palestiniana”.
Os Emirados Árabes Unidos, sobretudo nos últimos anos, renunciaram a todos os valores nacionais, religiosos e históricos da região para conquistar um lugar na cena internacional em detrimento dos povos da região e do seu futuro. Aliaram-se a todas as forças reacionárias e ditatoriais da região para reprimir as aspirações dos povos à liberdade e à dignidade. Desempenharam um papel relevante em todas as contra revoluções, até mesmo quando o preço a pagar foi o massacre de povos e um desastre humanitário, como no Iémen, por exemplo.
Os dirigentes dos Emirados deram o seu melhor para integrar o Estado de ocupação na região e abrir-lhe os mercados, em prejuízo da segurança da região e dos direitos inalienáveis do povo palestiniano, sob pretextos tão pouco convincentes como o de fazer frente ao “inimigo principal” dos árabes, o Irão; ainda que os EAU mantenham relações fortes e enraizadas com o Irão, especialmente ao nível económico.
Apesar do embargo internacional imposto ao Irão, os EAU nunca fizeram esforços reais para recuperar três ilhas ocupadas pelo Irão.
Traições em cadeia
O pior, porém, é talvez a participação dos Emirados, em Washington, no anúncio oficial do plano de Donald Trump para a paz e a prosperidade na região, o chamado “Acordo do Século”; e a propósito do qual toda a gente sabe, a todos os níveis – árabe, islâmico e internacional – que significa a liquidação da questão palestiniana e o fim de qualquer possibilidade real de criar um Estado palestiniano independente com Jerusalém como capital.
Curioso neste acordo de normalização é o facto de os dirigentes dos Emirados Árabes Unidos justificarem o seu acto odioso pela preocupação com os palestinianos e os seus interesses. Eles pretendem fazer crer que este acordo foi concluído em troca do adiamento por período indefinido da anexação de terras na Cisjordânia pelo Estado de ocupação. Mas foi precisamente isso que o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, negou durante a conferência de imprensa de 13 de Agosto quando declarou: “Não renunciámos à anexação, simplesmente ela foi temporariamente suspensa”.
Além disso, toda a gente sabe que o governo de ocupação decidiu, por várias razões, adiar a passagem à prática do plano de anexação no início do mês de Julho. Os motivos mais importantes foram a rejeição do plano pela resistência palestiniana unificada e pela comunidade internacional, designadamente a Europa. Sem falar da turbulência que agita actualmente os Estados Unidos e do desacordo interno israelita quanto à forma e a amplitude da anexação.
Como ousaram os EAU fazer prevalecer as suas preocupações sobre os interesses dos palestinianos? Fizeram-no sem mesmo terem consultado os principais interessados, os próprios palestinianos, sobre o conteúdo do acordo e a oportunidade do anúncio! Os dirigentes palestinianos do governo oficial e das facções foram apanhados de surpresa por este anúncio e proclamaram a rejeição absoluta do acordo. Na sua declaração, a presidência palestiniana disse que se trata de “uma traição a Jerusalém, a Al-Aqsa e à causa palestiniana”.
Temos sido testemunhas de numerosos acontecimentos ao longo dos últimos anos que têm revelado à luz do dia as políticas secretas dos dirigentes dos Emirados Árabes Unidos na sua relação estratégica com o Estado de ocupação. Estes diversos acontecimentos cobrem todos os domínios da vida religiosa, política, económica, desportiva, artística e outros.
De um modo bizarro, alguns destes acontecimentos foram justificados pela preocupação humanista de promover a paz e a coexistência entre os povos, como a reunião de uma família judaica iemenita separada durante mais de 15 anos. Ou ainda a abertura da primeira sinagoga e do primeiro templo hindu no país enquanto são perseguidos os activistas que revelaram os piores níveis de violação dos direitos humanos.
Quanto às famílias iemenitas, elas são massacradas no seu país, as suas riquezas roubadas, a sua pátria dividida. Os Emirados Árabes Unidos estão envolvidos na secessão do Sul do Iémen, uma manobra na qual é conhecida a intervenção de Israel. Os EAU são também um obstáculo a qualquer solução política na Líbia, apoiando o comandante renegado Khalifa Haftar em prejuízo da vida, da unidade e do futuro dos líbios.
Do lado errado da história
A normalização com o inimigo não é apenas um negócio político, é uma forma de traição de todas as suas obrigações nacionais e humanitárias para com a causa mais justa da história moderna: a causa palestiniana. Normalizar as suas relações com o inimigo significa dar-lhe toda a latitude para destruir a segurança e as capacidades dos nossos países e dos nossos povos para servir o seu projecto de colonização, o “Grande Israel”, que actualmente tem toda a possibilidade de avançar com o apoio aberto norte-americano, além das suas próprias forças.
Os árabes em geral e os palestinianos em particular que sabem, por tê-lo combatido durante décadas, que o seu inimigo não respeita nenhum dos seus compromissos e que não tem qualquer desejo de paz e de coexistência pacífica, esperam novos desastres nacionais. Sabem que ele é capaz de tudo para estabelecer o seu reino sobre a região depois de expulsar a população e destruir as suas estruturas em conflitos internos fúteis.
Os dirigentes dos Emirados Árabes Unidos não se dão conta de que estão do lado errado da história e de que os seus esforços miseráveis para prolongar a vida do Estado de ocupação vão fracassar. Nem a história nem os nossos povos lhes perdoarão.
No dia 13 de Agosto, imediatamente a seguir ao anúncio do “acordo da vergonha”, milhares de cidadãos do Golfo, das forças políticas e de representantes da sociedade civil da região, bem como milhões de árabes e muçulmanos, manifestaram a sua rejeição categórica de um entendimento que não representa os povos dos Emirados Árabes Unidos. Algumas fontes próximas dos dirigentes dos Emirados afirmaram que não houve sequer consultas a nível federal sobre o acordo e que o Abu Dhabi e o Dubai tomaram a decisão por si sós.
Os dirigentes dos Emirados Árabes Unidos devem reler a história que ensinamos às nossas crianças, em especial na Palestina. Nós ensinamos que numerosos colonizadores passaram pela Palestina mas nenhum conseguiu implantar-se – enquanto os seus habitantes originais se mantêm lá.
A Palestina não é apenas um lugar geográfico. Está estreitamente ligada ao desejo da nação de obter a liberdade, a dignidade e a independência. A Palestina, com os seus lugares santos islâmicos e cristãos, está no coração do nacionalismo palestiniano e, por consequência, quaisquer que sejam os esforços e o dinheiro que aí invistam, os que normalizam as relações com o inimigo não conseguirão jamais fazer com que a bússola da região indique o seu principal inimigo: o “Estado de ocupação” sionista; e, mais tarde ou mais cedo, esse inimigo desaparecerá.
*Antigo ministro palestiniano da Saúde e conselheiro do primeiro-ministro palestiniano para as relações internacionais. Residente em Gaza.