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WASHINGTON INSTAURA JUNTA DITATORIAL EM PORTO RICO

2020-06-05

Jesús Dávila, América Latina en Movimiento/edição O Lado Oculto

A decisão do Supremo Tribunal dos Estados Unidos de validar a ditadura da Junta de Controlo imposta a Porto Rico, emitida horas antes de o presidente norte-americano ter anunciado a repressão militar dos protestos em curso, deixa esta colónia das Caraíbas em situação muito delicada e contribui para despertar uma história esquecida por muitos.

A validação judicial da experiência de ditadura nesta colónia serviu de significativo preâmbulo do anúncio presidencial que iniciou formalmente o caminho para a substituição do regime democrático pela lei marcial para reger todo o território nacional dos Estados Unidos.

Em 1 de Junho, o Supremo Tribunal dos Estados Unidos aceitou como válida a lei para criação de uma “Junta de Supervisão e Administração Financeira para Porto Rico” encarregada de supervisionar, gerir e garantir a estabilidade económica”. Trata-se de uma estrutura bipartidária (republicanos e democráticos) que “integra o governo” da colónia e que vai dedicar-se a renegociar “a dívida insustentável”, estabelecer um sistema de planeamento fiscal e proporcionar orçamentos equilibrados a longo prazo”. A sua acção repercute-se, portanto, em todo o leque de actividades governamentais

A Junta será constituída por sete elementos com direito de voto, designados pelo presidente dos Estados Unidos sem necessitar de parecer e autorização do Senado de Washington. Um processo de cariz ditatorial

O império nu e cru

Esta circunstância põe também em evidência o esquecimento da história como arma política.

Na sua decisão, o mais importante tribunal norte-americano considerou que a Junta foi imposta a Porto Rico em virtude dos poderes plenipotenciários sobre os chamados territórios – eufemismo usado em vez de colónias – pelo que os membros designados pela Casa Branca não têm sequer que passar, como já se sublinhou, pela avaliação do Senado dos próprios Estados Unidos.

Na decisão, o Supremo Tribunal optou mais uma vez por encarar de maneira abrangente as decisões imperiais do início do século XX determinando que Porto Rico “pertence a, mas não é parte dos Estados Unidos”. Essa maneira de abordar o assunto foi assumida apesar de os requerentes contra a constituição da Junta – em especial o Sindicato dos Trabalhadores da Indústria Eléctrica – terem argumentado que essa jurisprudência imperial é precisamente a base do problema.

Em Abril passado, quando já era evidente que a tensão resultante da violência institucional da população negra estava em ponto de ebulição, o Supremo Tribunal invalidou as leis dos Estados de Louisiana e Oregon que negavam aos acusados o direito a um veredicto unânime dos jurados antes de serem condenados. O Supremo reconheceu que esses estatutos tinham uma base de discriminação racial.

Esta decisão deveria ser extensiva igualmente a Porto Rico, onde também se retirou o direito de veredicto unânime ao povo em meados do século XX, não por motivos raciais mas com a intenção de reprimir os independentistas e com pleno conhecimento de que, ao fazê-lo, esta nação insular ficava fora dos princípios jurídicos dos Estados Unidos. “Pertence” aos Estados Unidos mas é descriminada em termos legislativos.

Apear disso, o Supremo não tornou a decisão sobre Louisiana e Oregon aplicável a Porto Rico; nem teceu considerações sobre o motivo pelo qual aquela restrição de direitos civis se processou bem à vista das instituições dos Estados Unidos sem que se tenham considerado informadas, mas celebrando-a. A consequência disso foi negar o direito a um veredicto unânime aos acusados de Porto Rico por um período que já ultrapassa os 70 anos.

O direito ao veredicto unânime foi estabelecido em Porto Rico em 1899 quando o recém-criado império instituiu o “tribunal provisório”. Estendeu-se aos tribunais porto-riquenhos entre 1901 e 1902 e esteve em vigor até 1948.

Segundo confessou muito depois o ex-procurador geral e ex-juiz presidente do Supremo Tribunal de Porto Rico, José Trías Monge, a eliminação desse direito de veredicto unânime foi decidida devido ao receio de tornar mais difícil o envio de nacionalistas porto-riquenhos para a prisão, então encorajados pelo regresso do seu dirigente máximo, Pedro Albizu Campos. Além disso, na convenção constituinte de 1951, o presidente da comissão sobre a carta de direitos, Jaime Benítez, expressou que devia estabelecer-se de modo claro que o veredicto dos jurados seria maioritário, para deixar evidente que não se aplicaria “o direito anglo-saxónico”, isto é, dos Estados Unidos.

Colónia esquecida pelo mundo

Em tempos recentes, o advogado Luis F. Abreu Elías revelou que a decisão foi tomada por ordem directa do então chefe máximo do “autonomismo”, a ligação aos Estados Unidos, Luiz Muñoz Marin. Abreu Elías, primo do ex-procurador geral Vicente Géigel Polanco e do ex-comissário residente Santiago Polanco Abreu, disse especificamente que “em conversações separadas com o meu pai José Abreu Géigel e com os seus primos Vicente Géigel Polanco e Santiago Polanco foi-nos confirmado que tanto a lei 53 (lei da mordaça) como a norma de zero jurados para os nacionalistas, portanto a condenação por maioria de jurados, foram decididas por ordem directa de Luis Muñoz Marín”, o homem dos norte-americanos.

Quando em 1951 um grupo de peritos em direito dos Estados Unidos chegou a Porto Rico para assessorar a reforma do sistema judicial, os visitantes elogiaram as medidas discriminatórias já tomadas sobre os jurados e manifestaram a opinião de que graças a elas o seu trabalho “foi muito mais fácil”, como fizeram constar num relatório publicado pela Escola de Direito da Universidade de Yale.

Os peritos dos Estados Unidos não encontraram nada de estranho na eliminação da garantia de que a culpa só pode ser provada além de toda a dúvida razoável quando todos e cada um dos jurados foram convencidos pela prova apresentada pela acusação. Este princípio, que data da Magna Carta da Inglaterra medieval, é considerado actualmente um dos pilares fundamentais dos direitos do povo perante as decisões do Estado.

Estes esquecimentos históricos atingem também os Estados Unidos, onde as restrições sistemáticas dos direitos civis, especialmente a vigilância, a liberdade de expressão e os relacionados com os direitos dos acusados aumentaram sistematicamente desde os ataques de 11 de Setembro de 2001 em Nova York.

Sem mencionar que já em 1999 a Academia da Força Aérea, no Colorado, publicou um estudo em que antecipou uma “segunda guerra” no Golfo que seria um fracasso e contribuiria para conduzir os Estados Unidos a uma ditadura militar durante as primeiras décadas do século XXI.

O estudo, elaborado por um perito da Força Aérea, era uma advertência mas o desenvolvimento dos acontecimentos como o desastre das guerras de agressão e a crescente intervenção militar a nível interno norte-americano pode acabar por convertê-lo num vaticínio.


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