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O YUAN DIGITAL DA CHINA AMEAÇA O REINADO DO DÓLAR

2020-05-08

O YUAN DIGITAL DA CHINA AMEAÇA O REINADO DO DÓLAR

Algumas coisas continuam a mudar num mundo estagnado em tempos de pandemia. Podem estar até a ser aceleradas pelas circunstâncias porque, indubitavelmente, haverá um antes e um depois do COVID-19 por muitas que sejam as incertezas avolumando-se em relação ao futuro, mesmo o mais próximo. Coisas que estão em mudança são o dinheiro e as formas de pagamento. A China iniciou há poucas semanas os testes de pagamento com uma nova moeda sem existência física: o yuan digital. Trata-se de uma etapa para o lançamento do chamado Pagamento Electrónico em Moeda Digital. São fortes os indícios de que o yuan digital soberano em preparação poderá ser garantido por ouro – ao contrário do que acontece com o dólar norte-americano, a moeda de reserva mundial. Tudo isto significa que a partir daí nada ficará como dantes em termos de pagamentos internacionais. Será esta uma das razões sub-reptícias para a incontida ira de Washington contra Pequim?

Pepe Escobar, Strategic Culture/O Lado Oculto 

Uma nova e radical mudança de paradigma está em curso. A economia dos Estados Unidos pode encolher até 40% no primeiro semestre de 2020. A China, já a maior economia mundial em paridade do poder de compra (PPP) há alguns anos, pode em breve tornar-se a maior economia do mundo, mesmo em termos cambiais.

O mundo pós-Lockdown planetário - ainda uma miragem nebulosa - pode muito bem precisar de uma moeda pós-Lockdown planetário. E é aí que um candidato sério entra em campo: o yuan digital fiduciário.

No mês passado, o Banco Popular da China (PBOC) confirmou que um grupo formado pelos principais bancos do país iniciou testes de pagamento electrónico em quatro diferentes regiões chinesas utilizando o novo yuan digital. Ainda não há calendário para o lançamento oficial do que é chamado o Pagamento Electrónico em Moeda Digital (DCEP).

O homem do plano é o governador do Banco Popular da China, Yi Gang. Confirmou que além dos ensaios em Suzhou, Xiong'an, Chengdu e Shenzhen o PBOC também está a testar cenários hipotéticos para os Jogos Olímpicos de Inverno de 2022.

Embora o DCEP, segundo Yi, "tenha feito muito bons progressos", ele insiste em que o Banco Popular da China será "cauteloso em termos de controlo de risco, especialmente para estudar o combate à lavagem de dinheiro e em 'conhecer os requisitos do seu cliente' para incorporar no projecto e no sistema do DCEP".

O DCEP deve ser interpretado como o roteiro para levar a China a uma eventual e ainda mais inovadora substituição do dólar norte-americano como moeda de reserva mundial. A China já está à frente nas “apostas” sobre a moeda digital: quanto mais cedo o DCEP for lançado, melhor será para convencer o mundo, especialmente o Sul Global, a acompanhar o processo.

O PBOC está a desenvolver o sistema com quatro grandes bancos estatais e com os gigantes do pagamento Tencent e Ant Financial.

Uma aplicação para telemóveis desenvolvida pelo Banco Agrícola da China (ABC) já está a circular no WeChat. Esta é, na verdade, um interface ligado ao DCEP. Além disso, 19 restaurantes e estabelecimentos retalhistas, incluindo Starbucks, McDonald's e Subway fazem parte dos testes piloto.

A China está a avançar rapidamente em todo o espectro digital. A Blockchain Service Network (BSN) foi lançada não apenas para fins de comércio doméstico mas também com perspectivas de comércio global. Uma grande comissão supervisiona a BSN, incluindo executivos do PBOC, Baidu e Tencent, segundo o Ministério da Indústria e Tecnologia da Informação (MIIT).

Garantido em ouro

Mas o que significa tudo isto?

Fontes bancárias bem relacionadas em Hong Kong disseram-me que Pequim não tem interesse em que o yuan substitua o dólar norte-americano – por muito interesse que o Sul Global tenha em contorná-lo, especialmente agora que o petrodólar está em coma.

A posição oficial de Pequim é que o dólar dos Estados Unidos deve ser substituído por uma cesta de moedas com Direitos Especiais de Saque (SDR) aprovadas pelo FMI (dólar, euro, yuan, iene). Isso eliminaria o pesado fardo do yuan como a única moeda de reserva.

Esta posição, porém, pode ser apenas uma manobra de diversão num ambiente generalizado de guerra de informação. Uma cesta de moedas sob o controle do FMI ainda implica o controlo dos Estados Unidos - não é exactamente o que a China quer.

O cerne da questão é que um yuan digital e soberano pode ser lastrado em ouro. Isto não está confirmado - ainda. O ouro pode servir como um suporte directo; para apoiar títulos ou, simplesmente, funcionar como garantia. O certo é que quando Pequim anunciar uma moeda digital lastrada em ouro o efeito será como o de um raio atingindo o dólar norte-americano.

Sob essa nova estrutura, os países não precisarão de exportar mais para a China do que importam para disporem de yuan suficiente para negociar. E Pequim não necessitará de continuar a imprimir o yuan eletronicamente - e artificialmente, como no caso do dólar norte-americano - para responder às exigências comerciais.

O yuan digital será efectivamente apoiado pela enorme quantidade de bens e serviços Made in China - e não por um império transoceânico de 800 bases militares. E o valor do yuan digital será decidido pelo mercado - como acontece com o bitcoin.

Este processo já está em desenvolvimento há anos; as discussões mais substanciais foram iniciadas no final da primeira década deste século no quadro das cimeiras dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), sobretudo pela Rússia e a China – núcleo estratégico do grupo.

A partir da consideração de múltiplas estratégias para contornar progressivamente o dólar norte-americano, a começar pelo comércio bilateral nas suas próprias moedas, a Rússia e a China, por exemplo, criaram há três anos um Fundo de Cooperação Sino-russo RMB.

A estratégia de Pequim é cuidadosamente calibrada, como num jogo a longo prazo. Além de armazenar metodicamente ouro em grandes quantidades (tal como a Rússia) há sete anos, Pequim vem fazendo campanha para um uso mais amplo da cesta de moedas com Direitos Especiais de Saque ao mesmo tempo que foge a colocar o yuan como um concorrente estratégico. 

O efeito da nova situação

Mas agora o ambiente pós-Lockdown planetário parece moldado de maneira ideal para que Pequim faça um movimento. Mesmo antes do início da crise do COVID-19, o sentimento predominante entre os dirigentes era de que a China está sob um ataque de espectro total do governo dos Estados Unidos. A guerra híbrida, que já atinge o auge, implica que as relações bilaterais só irão piorar, não melhorar.

Deste modo, temos a China como a maior economia do mundo, tanto em PPP como em taxa de câmbio; como a maior economia em crescimento, excepto no primeiro semestre de 2020; uma economia produtiva, inovadora, eficiente e a caminho de alcançar um nível tecnológico superior com o programa Made in China 2025; e como uma economia capaz de vencer a "guerra popular" contra o COVID-19 em tempo recorde. Todos os elementos necessários parecem estar nos seus devidos lugares.

Mas depois há o soft power, o suave poder. Pequim precisa de ter o Sul Global do seu lado. O governo dos Estados Unidos sabe-o muito bem e não surpreende, portanto, que histeria seja para diabolizar a China como a "culpada" em todas as acusações - não comprovadas - de fomentar e mentir sobre o COVID-19.

Uma "chegada iminente"

Uma vantagem fundamental de um yuan digital soberano é que Pequim não precisa de fazer flutuar um yuan de papel - que, por sinal, está a ser posto de lado em toda a própria China, já que praticamente há uma mudança geral para o pagamento electrónico.

O yuan digital, usando a tecnologia blockchain, flutuará automaticamente - contornando assim o casino financeiro global controlado pelos Estados Unidos.

A quantidade de moeda digital soberana é fixa. Isso por si só elimina uma praga: a flexibilização quantitativa (QE), como no dinheiro “lançado de helicóptero” pelos Estados Unidos. O que transforma a moeda digital soberana no meio preferido para o comércio, com as transferências de moeda sem estarem submetidas à geografia e, a cereja no topo do bolo, sem que os bancos cobrem taxas ultrajantes como intermediários.

É claro que haverá fortes reacções contrárias. Como no caso da diabolização contínua de uma China neo-Orwelliana por se afastar de todo o processo de bitcoin e criptomoedas – que é ter a liberdade de uma estrutura centralizada através da propriedade descentralizada. Haverá uivos de horror contra o PBOC, acusado de ser potencialmente capaz de apreender os fundos digitais de alguém ou de desactivar uma carteira se o proprietário desagradar ao Partido Comunista da China.

A China está consciente disso. Mas os Estados Unidos, o Reino Unido, a Rússia e a Índia também estão a caminho de lançar as suas próprias criptomoedas. Por razões óbvias, o Banco de Compensações Internacionais (BIS), o banco central dos bancos centrais, está muito ciente de que o futuro é agora. As suas consultas em conjunto com mais de 50 bancos centrais são inequívocas: estamos perante uma "chegada iminente". Mas quem vencerá o grande prémio?


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