GUERRA DO AFEGANISTÃO: A VERDADE DAS MENTIRAS
2019-12-20
Há poucos dias vieram a lume os chamados “Afghanistan Papers”, documentos resultantes de investigações internas conduzidas pelo governo dos Estados Unidos e que provam como sucessivas administrações de Washington – de ambos os partidos/Estado – mentiram e mentem aos cidadãos dos Estados Unidos e dos países membros da NATO ao longo dos já 18 anos de uma guerra que, desde o início, sabem não conseguir ganhar. Tal como aconteceu no Vietname, no Iraque, na Líbia, na Síria. Milhões de seres humanos com as suas vidas destruídas depois, os crimes continuam impunes e novas guerras se perfilam. Chama-se isto “defender o nosso civilizado modo de vida” e “implantar a democracia”.
Vijay Prashad, Globetrotter/Independent Media Institute/O Lado Oculto
Noam Chomsky comemorou recentemente o 91º aniversário. Como homenagem, passei o dia com um dos seus livros menos conhecidos – The Backroom Boys (1973). O livro é constituído por dois espectaculares ensaios, sendo o primeiro uma leitura atenta de documentos do Pentágono sobre a guerra do Vietname. Ler este livro em simultâneo com os documentos agora divulgados como parte de uma investigação interna do governo dos Estados Unidos sobre a actual guerra contra o Afeganistão é um exercício revelador. Tanto os documentos do Pentágono sobre o Vietname como as recentes revelações do jornal Washington Post sobre o Afeganistão mostram que o governo dos Estados Unidos mentiu aos seus cidadãos sobre guerras que não poderiam ser vencidas. Substituindo a palavra “Afeganistão” pela palavra “Vietname” os ensaios de Noam Chomsky de 1973 poderiam ter sido escritos hoje.
Números martelados
Em 2015, um funcionário do Conselho de Segurança dos Estados Unidos que pediu anonimato disse a propósito do conflito imposto ao Afeganistão: “É impossível criar métricas de aferição confiáveis. Tentamos usar o número de soldados envolvidos, os níveis de violência, o controlo de território mas nada disso nos dá uma imagem precisa” de como a guerra está a evoluir.
Na guerra do Vietname, o Comando de Assistência Militar (MACV) inflacionava a contagem dos corpos dos combatentes inimigos abatidos e usava esses números como padrões de uma vitória iminente. Isso fica claro nos documentos do Pentágono.
Um soldado destacado no MACV acompanhava os generais para observar os campos de batalha. Vale a pena ler as suas palavras, recolhidas por Toshio Whelchel: “Uma ocasião sobrevoámos uma área depois de um ataque com B-52 e a devastação era terrível. No exterior havia uma grande quantidade de sacos de plástico e os nossos homens faziam supostamente a contagem de corpos de inimigos mortos. Acontece que eles recolhiam apenas fragmentos de cadáveres – qualquer coisa para colocar nos sacos – e consideravam cada um como uma morte”. Eram esses números que agradavam a Washington para serem tornados públicos e com eles avaliava-se o andamento da guerra.
O ensaio de Noam Chomsky sobre os documentos do Pentágono começa com as palavras de um piloto da Força Aérea dos Estados Unidos que explica “os melhores pontos para usar” o napalm. Há uma geração que sabe exactamente o que é “napalm”, mas os leitores mais jovens podem não estar assim tão cientes dessa realidade. O napalm é uma das armas mais hediondas já produzidas: à base de petróleo e com matéria gelatinosa que cola o combustível à pele humana. Foi usado pelos Estados Unidos com grande entusiasmo contra os povos coreano e vietnamita.
O piloto que lança napalm sobre os civis diz:
“É claro que estamos satisfeitos com os rapazes da Dow Chemical. O produto original não era tão quente – e se os gooks fossem suficientemente rápidos poderiam safar-se. Então os tipos começaram a adicionar poliestireno – agora o produto cola-se como merda a um cobertor; agora queima até na água”.
Estas frases requerem paciência para algumas explicações. O piloto está a falar dos vietnamitas. O termo “gooks”, que parece ter tido origem na invasão das Filipinas pelos Estados Unidos, em 1898, foi depois usado a propósito dos povos do Haiti, Nicarágua, Costa Rica e de países árabes – isto é, aplicado a quaisquer pessoas que as forças militares dos Estados Unidos estivessem a matar na ocasião. A palavra foi usada para descrever os “nativos”, pessoas cujos corpos mal valem o trabalho a ser executado pelos “senhores”. O vocabulário não desapareceu: veio a reaparecer no Afeganistão.
O piloto explica, finalmente, como o napalm se foi tornando ainda mais letal, anulando as possibilidades de os civis atingidos se salvarem.
Guerras de libertação
Nos bastidores, os cientistas fabricam as armas e os analistas debatem a guerra. Mas o mais impressionante nos Documentos do Pentágono é o facto de todo o establishment norte-americano saber que os Estados Unidos não seriam capazes de derrotar o povo vietnamita e que, mesmo com armas bárbaras como o napalm e o agente laranja, os vietnamitas não perderiam o moral e a paciência.
Em 1967, oito anos antes de os Estados Unidos deixarem o Vietname, o director de Análise de Sistemas do Pentágono escreveu:
“Acho que enfrentamos um inimigo que parece ter encontrado uma estratégia perigosamente inteligente capaz de deter os Estados Unidos. A menos que a reconheçamos e combatamos agora, tal estratégia poderá vir a tornar-se muito popular no futuro”.
Falava das guerras de libertação nacional, da táctica de guerrilha e da necessidade de encontrar antídotos para as derrotar. Mas o reconhecimento do conceito de libertação nacional estava fora de questão em Washington. Esta foi a razão básica pela qual o governo dos Estados Unidos mentiu ao povo norte-americano: estava empenhado numa guerra que não poderia vencer porque o adversário – o povo vietnamita – acreditava na razão da sua luta e não deixaria de combater enquanto não triunfasse.
O Afeganistão não tem, nem de longe, um exército de libertação nacional do calibre do Viet Minh. Tem os Talibã, cuja brutalidade nasceu dos senhores da guerra a partir da década de noventa. Para a população, porém, e por mais brutais que tenham sido, os Talibã surgem, pelo menos, como uma força contra o invasor estrangeiro cuja presença e a sua guerra desigual nada fizeram para elevar a confiança da população. Os Talibã não prometem a reforma agrária ou a libertação social, mas vivem e morrem no meio da restante população civil. É isso que os torna mais populares que os drones e as forças especiais – e até do que o Exército Nacional afegão. A “estratégia perigosamente inteligente” dos Talibã é que têm raízes entre os seus irmãos. Nenhum bombardeamento consegue quebrar essa ligação.
“A verdade não é bem-vinda”
Desde que o governo dos Estados Unidos criou o Gabinete do Inspector Geral para a Reconstrução do Afeganistão (SIGAR), em 2008, li todos os relatórios publicados e contactei muitos dos seus funcionários. Estava claro para eles – em geral pessoas muito decentes – que a guerra no Afeganistão era abominável. Para aqueles de nós que cobriram essa guerra não ficaram dúvidas de que os Estados Unidos iriam devastar ainda mais esse país pobre, para o qual partiram mesmo sabendo que não poderiam atingir os ambíguos e mal definidos objectivos.
Nada me surpreendeu, ou a muitos dos meus colegas, nos documentos do SIGAR que agora foram divulgados. Já conhecíamos aspectos dos seus conteúdos através de informações transmitidas por oficiais afegãos, de inteligência ocidental e militares ao longo dos anos; esses comentários reproduziram, afinal, o que agora surge nos relatórios sobre o Afeganistão. Tais documentos, porém, são muito bem-vindos porque, do mesmo modo que as revelações feitas pelo website WikiLeaks, comprovam as mentiras propagadas pelos governos dos Estados Unidos a propósito de guerras como as do Afeganistão e do Iraque.
O coronel Bob Crowley, um consultor sénior de contra-insurgência dos comandantes militares dos Estados Unidos em 2013-2014, disse aos investigadores do SIGAR:
“Cada ficheiro de dados foi alterado para apresentar a melhor imagem possível. As sondagens, por exemplo, não mereciam qualquer confiança, mas reforçavam a ideia de que tudo o que estávamos a fazer era correcto; e foi como se nos transformássemos num gelado que se lambe a si mesmo”.
Segundo Crowley, “a verdade raramente é bem-vinda” no Quartel-General militar dos Estados Unidos em Cabul. Por isso, a verdade raramente foi recebida em Washington DC. O governo dos Estados Unidos mente para justificar a guerra no Afeganistão. Os dados não são de confiança; as palavras dos funcionários não devem ser levadas a sério.
Logo em 2003, pouco mais de um ano depois do início da invasão, um analista da CIA disse-me que não existiam avanços territoriais no Afeganistão; depois dos bombardeamentos e da acção das tropas para “capturar e limpar”, os militares regressavam às bases deixando tudo devastado e observando o retorno dos Talibã às posições. Não houve conquista de território pelas tropas norte-americanas nesta guerra que dura há 18 anos.
E os afegãos?
Os trabalhos em torno dos documentos tornados públicos não tem quaisquer informações oriundas do lado afegão. A indignação resume-se a isto: os cidadãos dos Estados Unidos – e dos países membros da NATO – foram enganados por uma guerra que não passou de um desperdício desde o primeiro momento. O New York Times, recorrendo a estimativas do projecto Cost of War da Universidade de Brown, publicou uma página inteira de gráficos desmontando as métricas de aferição utilizadas e demonstrando o desperdício desta guerra. Estes factos são todos eles inegáveis.
Mas então o que dizer dos afegãos, cujas vidas ficaram ainda mais destruídas, cujas aspirações foram reduzidas a cinzas?
A imprensa dos Estados Unidos sublinha que as administrações de Bush, Obama e Trump mentiram aos cidadãos norte-americanos. Mas isto não é tudo. E os crimes de guerra cometidos contra o povo do Afeganistão? E o facto de esta operação de guerra – sem qualquer objectivo claro – ser um crime desastroso contra o povo do Afeganistão?
O governo dos Estados Unidos continua a pressionar o Tribunal Penal Internacional para o impedir de desenvolver a investigação sobre os crimes de guerra no Afeganistão. No mínimo, em nome dos milhões de afegãos que ficaram com as vidas destruídas, alguém teria de se sentar no banco dos réus; seria fundamental que fossem assumidas responsabilidades. Isso já não aconteceu em relação às guerras do Vietname e do Camboja; tudo indica que tal não irá acontecer com esta guerra do Afeganistão. E porque os criminosos estão seguros da sua impunidade farão outras guerras.
O livro escrito por Chomsky em 1973 foi uma advertência. Relatou criteriosamente a guerra dos Estados Unidos contra o Vietname e as mentiras usadas para justificar o conflito e garantir que não se tratava de uma “louca aberração”. A advertência não foi levada a sério; e continua a não ser levada a sério.