CHILE, OU A ARTE DE ENGANAR O POVO

2019-11-19
O tão aclamado acordo entre o governo e quase toda a oposição no Chile - com excepção de comunistas e humanistas - não garante a elaboração democrática de uma Constituição que rompa com o modelo neoliberal imposto pela férrea ditadura de Pinochet. O acordo não garante mesmo a elaboração da Constituição por uma assembleia constituinte totalmente eleita por voto directo. E reserva a exigência de aprovação da Carta por dois terços dos constituintes, entregando as decisões essenciais do país ao veto dos mesmos de sempre. Assim se engana um poderoso e genuíno levantamento popular.
Manuel Cabieses Donoso, America Latina en Movimiento/O Lado Oculto
“… e um cão, um periquito e um gato comeram todos do mesmo prato”
Ricardo Palma (“Tradiciones Peruanas”)
O senador “opositor” chileno Jaime Quintana é um criador de palavras que produzem estremeções políticos. Em 2014, na sua qualidade de porta-voz da Nova Maioria, assegurou que o governo da presidente Michelle Bachelet (Partido Socialista do Chile) utilizaria uma retroescavadora “porque é preciso destruir o cimento anquilosado do modelo neoliberal da ditadura”. A direita entrou em pânico e desenvolveu uma contraofensiva que não conteve até se convencer que a presidente Bachelet não se propunha fazer qualquer coisa de diferente do que vinham fazendo os governos desde 1990: cuidar do modelo neoliberal instaurado pela ditadura.
Quintana, que entretanto ascendeu a presidente do Senado, criou agora outro míssil político: “Chegou o momento de ceder, ceder não é perder”, foi a palavra de ordem que em 48 horas realinhou as forças políticas em defesa do sistema. O presidente Piñera tinha “cedido” na noite anterior. Pediu paz social e admitiu abrir caminho a uma nova Constituição através de um Congresso Constituinte. A partir daí tudo foi por-água-abaixo. A casta política apropriou-se do protesto social carente de orientação e produziu um pacto que dá início a um processo constituinte tutelado pelos mesmos de sempre.
“Há que ceder”
A velocidade do jogo político a partir do pontapé de saída em La Moneda (palácio presidencial) reflectiu-se no desventurado comportamento da oposição. No dia seguinte à mensagem presidencial, os 13 partidos opositores – da Democracia Cristã à Frente Ampla, passando pelo PPD do senador Quintana – responderam com uma solene declaração que rejeitava “a proposta de um Congresso Constituinte feita pelo governo, porque se afasta das reivindicações populares”. E acrescentaram: “Neste momento o caminho para construir o futuro é Plebiscito, Assembleia Constituinte e Nova Constituição”.
Mas ainda não tinha secado a tinta da declaração da oposição quando Quintana proferiu a frase chave: “há que ceder”, e em 48 horas consumou-se a audaz jogada política.
O ferrolho do veto
O que obrigou a oposição a baixar a cabeça? A chave poderá estar na advertência que o presidente da Renovação Nacional, Mario Desbordes, fez no dia 13. Assegurou urbi et orbe: “só restam um ou dois dias” para um acordo que ponha termo ao levantamento popular. A peremptória notificação foi acolhida imediatamente pela Democracia Cristã e, pouco depois, por quase todo o resto da oposição. No dia seguinte, 14 de Novembro, dirigentes e parlamentares do governo e da oposição – com excepção de comunistas e humanistas – aquartelaram-se nas instalações do Senado em Santiago. Em permanente coordenação com La Moneda, que destacou o chef da cozinha política, a árdua e republicana tarefa culminou com um vagido às duas da manhã de sexta-feira 15. Nascia um acordo transversal que promete um plebiscito para Abril de 2020, que dará início a um processo constituinte. Não está assegurado que seja uma “Convenção” eleita pelo povo ou outra fórmula de 50% dos constituintes designados pelo Congresso. Mas o mais grave é o facto de o articulado da nova Carta ter de ser aprovado por dois terços dos constituintes. No mais puro estilo da Constituição de 1980 instala-se um ferrolho que permitirá à minoria conservadora vetar uma mudança efectiva. Assegura a vigência da economia de mercado, a desnacionalização do cobre e do lítio, a privatização da água, etc., etc. Em suma, estamos perante uma burla colossal que ilude o grande esforço desenvolvido pelo povo para fazer ouvir as suas reivindicações.
Sugestão de golpe?
O que precipitou o relâmpago das manobras políticas desencadeadas pelo senador Quintana? Uma hipótese é a de ter entrado em cena o convidado de pedra: as Forças Armadas. A escalada de roubos e incêndios – uma violência gratuita promovida por bandos organizados – fez supor que Piñera anunciaria o estado de excepção, ou mesmo de sítio, na noite de dia 12. Conjecturou-se que as Forças Armadas teriam pedido garantias para assumir a responsabilidade de um provável massacre. Piñera – paradoxos de um presidente direitista – não é santo da devoção das Forças Armadas. Não pertence à “família militar”. No seu primeiro governo fechou o estabelecimento penal de Cordillera, cárcere-hotel que a Concertação reservou para oficiais acusados de graves violações dos direitos humanos. No seu segundo governo, Piñera decapitou os altos comandos do Exército e dos Carabineiros. Dezenas de generais – entre eles três ex-comandantes em chefe – estão processados por corrupção e outros delitos.
Os rumores de perigo golpista – real ou suposto – surgiram quando o presidente da Renovação Nacional sentenciou que apenas restavam um dia ou dois para pacificar o país. Calcula-se que este ex-tenente dos Carabineiros e ex-Funcionário do Comando de Polícia mantenha relações privilegiadas com as instituições armadas.
Manobra de gatos pardos
De qualquer maneira, a manobra permitiu aos desprestigiados partidos recuperar protagonismo. Fizeram-no suplantando as próprias identidades. As massas populares e as organizações sociais – que tiveram uma fugaz aparição com a Mesa de Unidade Social – foram suplantadas por partidos situados no nível mais baixo da estima cidadã. Horas depois do anúncio do pacto governo-oposição, o povo voltou a sair às ruas reiterando as suas reivindicações democráticas e foi reprimido com extrema dureza. A ausência de condução política – que o movimento não foi capaz de criar – e a actividade provocatória de grupos cujas acções estão afastando o apoio de amplos sectores sociais, poderão coroar com êxito a burla do gatopardismo político, condenando o povo a uma nova frustração… até à próxima explosão social.