LÍBANO: CHAVES DA CRISE E OS SUSPEITOS DO COSTUME
2019-10-27
Há mais de uma semana que o Líbano é cenário de gigantescas manifestações de protesto e de motins provocados por grupos isolados que agem sob comando directo. É quase impossível circular, todas as estradas estão cortadas. O movimento estendeu-se rapidamente de Beirute ao resto do país. Presente na capital libanesa, o jornalista Thierry Meyssan apurou que não se trata de movimentações desencadeadas de forma espontânea. Considera que o grupo iniciador dos motins não aceita, de maneira nenhuma, a mudança do paradigma existente – tutelado por potências coloniais ocidentais, Israel e a Arábia Saudita. Quanto aos cidadãos libaneses propriamente ditos, tentam revoltar-se contra um sistema constitucional confessional que degradou a sociedade, alimenta crises sucessivas e de que estão prisioneiros.
Thierry Meyssan, Beirute; Réseau Voltaire/O Lado Oculto
Há alguns meses que os Estados Unidos forçam os bancos libaneses a cortar os laços entre o Hezbollah (Partido de Deus) e a diáspora xiita, designadamente em África. Os financiamentos da organização são provenientes, em muito mais de metade, de donativos da diáspora e, numa pequena percentagem, do Irão. Agindo desta maneira, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos pretende obrigar o Hezbollah a colocar-se sob as rédeas iranianas e a rebelar-se depois contra elas. Trata-se de criar uma situação comparável à que prevaleceu durante a guerra da Bósnia-Herzegovina, altura em que o Pentágono financiou o Hezbollah e o considerou como um simples pau-mandado. O partido libanês procurou então outras fontes de financiamento e rompeu definitivamente com Washington.
A mão do Tesouro norte-americano
Esta política em relação ao financiamento da diáspora xiita, contudo, teve o efeito de desequilibrar os bancos libaneses. O produto interno bruto do Líbano (agricultura e turismo) é extremamente baixo. A dívida pública está avaliada em 86 mil milhões de dólares, isto é, mais de 150% do PIB. Os fundos consideráveis depositados nos bancos libaneses têm origem, sobretudo, no branqueamento dos capitais resultantes do tráfico de drogas latino-americanas. A associação dos bancos libaneses reparte entre os seus membros, incluindo os agentes do Hezbollah, as receitas dos cartéis autorizados por Washington que estruturam a vida política em numerosos Estados latino-americanos. Para impedir o Hezbollah de tirar proveito deste maná, o Departamento do Tesouro dos Estados Unidos cortou as entregas em dólares ao conjunto dos bancos libaneses.
Ora a economia libanesa está fortemente dolarizada. Todo o comércio aceita indistintamente dólares ou libras libanesas. Em menos de um mês, porém, os dólares tornaram-se um bem escasso. Numerosos bancos fecharam os balcões. Os levantamentos de dinheiro, incluindo em libras libanesas, foram limitados.
Regime confessional que asfixia o país
Por consequência, para evitar uma desvalorização que o país não conhece desde 1997, o governo e o Parlamento votaram novos impostos, que a rua imediatamente rejeitou. Desde a colonização francesa, o país está constitucionalmente dividido em 17 comunidades étnico-religiosas as quais, desde o fim da guerra civil, partilham as funções públicas segundo um sistema de quotas. Este mecanismo favorece a corrupção e trava qualquer movimento social. Durante 12 anos, entre 2005 e 2017, o Líbano foi o único Estado do mundo a não ter orçamento. É materialmente impossível saber em que se transformou o dinheiro do país.
Em 2016 explodiu uma revolta transcomunitária perante a falta de serviços públicos, especialmente o facto de não existirem armazenamento e abastecimento de hortaliça. As coisas evoluíram positivamente no terreno mas foram enterradas politicamente. Hoje, o país tem apenas 12 horas de electricidade por dia e está sem abastecimento de água corrente. Tornou-se evidente a todos que enquanto o Líbano for governado pelas comunidades será incapaz de resolver os seus problemas; a reforma da lei eleitoral, assente em quotas comunitárias, foi apenas superficial e não alterou profundamente os dados. As mudanças foram bloqueadas pelas potências ocidentais, e também por Israel, que receiam, com toda a lógica, uma votação massiva favorável ao Hezbollah. O paradigma da tutela ocidental sobre o país, contudo, não é assunto que esteja na ordem do dia de qualquer debate.
A revolta que se iniciou em 17 de Outubro último retoma os temas da crise da hortaliça de 2016. Contrariamente às versões comuns que circulam na imprensa ocidental, ela foi planeada: o exército, que foi informado previamente, mobilizou-se na véspera em todo o território; os amotinados que montaram barricadas com caixotes do lixo estavam, e continuam a estar, conectados a um computador central. Em numerosas barricadas, os díscolos são contidos pela polícia; noutras, pelo contrário, são ajudados por agentes policiais favoráveis à Arábia Saudita. De momento, só o exército permanece neutro.
O povo subverteu a manobra arruaceira
De uma maneira muito rápida, os motins de alguns deram lugar a uma revolta generalizada de todas as comunidades e de todas as classes sociais, como se os libaneses apenas estivessem à espera desta ocasião para se exprimir.
Os manifestantes reclamam a demissão dos três presidentes: o da República (cristão maronita), general Michel Aoun; o do governo (muçulmano sunita), Saad Hariri; e o do Parlamento (muçulmano xiita), Nabih Berri. Exigem novas eleições gerais, que nada irão mudar se não for modificada a lei eleitoral. Desde a partida da força síria de paz, em 2005, o país está submetido a um ciclo vicioso.
Os dados políticos, no entanto, foram alterados, o que explica esta revolta. O chefe do governo, Saad Hariri, era até agora o homem de Riade. Mas em Novembro de 2017 foi detido à chegada à Arábia Saudita e espancado em público ainda na pista do aeroporto. Submetido às mesmas condições de detenção que os outros membros da família real (Saad Hariri é filho ilegítimo de um príncipe do clã Faad) foi mantido prisioneiro até que o Hezbollah protestou e o presidente Michel Aoun ameaçou levar o assunto ao Conselho de Segurança. Uma vez libertado, distanciou-se rapidamente da Arábia Saudita para se aproximar do Hezbollah e do presidente Aoun. No entanto, durante uma década acusara o Hezbollah e os seus aliados de terem estado implicados no assassínio do pai, Rafiq Hariri.
As Forças Libanesas de Samir Geagea (cristão maronita) retiraram os seus quatro ministros do governo, pediram a demissão do primeiro-ministro e, o que é contraditório, reclamaram a constituição de um governo de tecnocratas. É possível que o Partido Socialista Progressista de Walid Jumblatt (druso) reaja da mesma maneira. Estes dois partidos estão intimamente ligados aos Estados Unidos e à Arábia Saudita.
Acontece que o Médio Oriente está em plena mutação. Os Estados Unidos retiram as suas tropas da Síria e, em breve, do Qatar. A Rússia surge, por sua vez, como construtora da paz e técnica de exploração petrolífera. Os clãs libaneses ligados a Washington não aceitam esta evolução e, através das manifestações contra a corrupção generalizada, ameaçam os seus rivais para não agirem sozinhos.
Regime afundado em contradições
O Hezbollah foi o primeiro a acudir em socorro dos seus aliados. O seu secretário-geral, Hassan Nasrallah, opôs-se imediatamente à realização de eleições gerais sem mudança da lei eleitoral. Saad Hariri anunciou um ambicioso programa de reformas económicas em relação ao qual toda a gente parece de acordo mas que, até ao momento, ninguém quer implementar. Os quatro partidos da coligação governamental deveriam aceitá-lo. Inclui a redução para metade dos salários mirabolantes dos antigos ministros e deputados, o levantamento do segredo das suas contas bancárias e acções judiciais contra aqueles que enriqueceram à custa do Estado.
Mas deve duvidar-se que este programa venha a ser aplicado por Saad Hariri, uma vez que o pai foi um dos primeiros beneficiários deste sistema. O que não representou, porém, grande coisa quando comparada com as somas desviadas pelo antigo primeiro-ministro, Fouad Siniora, que se pôs em fuga há questão de dias. Além da luta contra a corrupção, as medidas anunciadas pelo primeiro-ministro tocam em todos os sectores da sociedade, do crédito à habitação e à supressão do Ministério da Informação.
De qualquer maneira, o problema ficará intacto enquanto não for alterada a lei eleitoral. Há vários anos que se ouvem sugestões de regresso do exército ao poder, único sector considerado capaz de destruir o sistema confessional de origem francesa. Trata-se de um corpo constituído por soldados principalmente xiitas e de oficiais principalmente cristãos.