O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

O Lado Oculto é uma publicação livre e independente. As opiniões manifestadas pelos colaboradores não vinculam os membros do Colectivo Redactorial, entidade que define a linha informativa.

Assinar

É HORA DE A ONU SAIR DOS ESTADOS UNIDOS

O Palácio das Nações em Genebra, Suíça

2019-10-03

Wayne Madsen, Strategic Culture; adaptação de O Lado Oculto

Com uma perigosa administração de direita, de cariz fascista, no governo em Washington, rejeitando o direito internacional e a prática de consensos, chegou a hora de as Nações Unidas e as missões permanentes dos Estados membros mudarem para um local mais neutro.

Pode entender-se a razão pela qual a ONU ficou originalmente localizada em Nova York. A família Rockefeller doou o terreno em Turtle Bay, na margem oriental do rio Hudson, para construção da sede das Nações Unidas. A seguir à Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos estavam numa posição privilegiada para servir de suporte à organização, e adoptaram um comportamento diferente do assumido depois da Primeira Guerra Mundial, quando se recusaram a integrar a Sociedade das Nações.

A sede da Liga das Nações em Genebra gera memórias dolorosas para alguns Estados membros da ONU, que sentiram como a primeira organização mundial dedicada à causa da paz fracassou em conter a Alemanha nazi, a Itália fascista e o Japão imperial. Embora, em alguns aspectos, a ONU tenha sido a sucessora da Sociedade das Nações, é duro recordar que foi na sede desta, em Genebra, que o imperador etíope Hailé Selassié pediu aos delegados para conterem a brutal invasão e ocupação italiana do seu país.

Os membros fundadores da ONU não querem recordar-se da desprestigiada antecessora da organização. As Nações Unidas adoptaram o modelo de um Conselho de Segurança com cinco membros permanentes autorizado a responder com a força a uma agressão. Infelizmente, a nação anfitriã, particularmente com Donald Trump e também sob Ronald Reagan, George H.W. Bush, Bill Clinton, Gorge W. Bush e Barack Obama, manifestaram tendência para não ter em consideração as decisões da ONU e para violar o tratado Estados Unidos-Nações Unidas que rege os direitos dos delegados de entrarem e saírem livremente de Nova Iorque quando se deslocam em tarefas relacionadas com o funcionamento da organização.

O Tratado EUA-ONU foi assinado em Lake Success, Nova Iorque, em 1947. Os signatários foram o secretário-geral da ONU, Trygye Lie, e o secretário de Estado norte-americano, George Marshall. O documento garantiu a natureza extraterritorial da sede da ONU em Manhattan e a não interferência dos Estados Unidos na concessão rápida de vistos norte-americanos a diplomatas estrangeiros e pessoal da ONU que transite pelo território do país anfitrião; assegurou igualmente as responsabilidades dos EUA para com a ONU e os governos dos Estados membros.

Violação total com Trump

As políticas xenófobas e de extrema-direita de Trump dirigidas contra palestinianos, muçulmanos em geral e países como Cuba, Nicarágua, Irão e Venezuela têm vindo a traduzir-se em violações consecutivas do tratado entre os Estados Unidos e a ONU através de autoridades da imigração norte-americana demasiado zelosas. As recentes ameaças da administração Trump de negar vistos à delegação do Irão para participar na sessão plenária da Assembleia Geral da ONU de 2019 em Nova Iorque é um exemplo, mas não o único. Restrições semelhantes foram impostas pelo governo de Washington contra delegados de países membros da ONU como a Líbia, Cuba, Rússia, Venezuela e Nicarágua. Observadores oficiais da Palestina também foram vítimas de pressões por parte das autoridades do país sede da organização; e delegados do governo do Iémen dirigido pelos Houthi e da Abkasia, que não são membros da ONU, foram impedidos de obter vistos norte-americanos para apresentarem os seus casos à Assembleia Geral.

O Tratado EUA-ONU estipula que o governo dos Estados Unidos facilitará a entrada no país e o uso de meios de transporte disponíveis a “pessoas vindas do exterior que desejem visitar a sede”. Esta norma abrange membros de países terceiros pretendendo entrar em contacto ou interagir oficialmente com a ONU e respectivas agências. Os Estados Unidos violaram, de facto, essa disposição em 1975 quando o secretário de Estado, Henry Kissinger, fez com que fossem negados vistos norte-americanos a representantes do Reino de Sikkim, do Sahara Ocidental e de Timor Leste que desejavam apresentar os casos das suas nações relacionados com as invasões e ocupações cometidas pela Índia, Marrocos e Indonésia, respectivamente. Timor Leste acabou por ser admitido como Estado membro na ONU muito mais tarde e só depois de uma prolongada resistência perante as sangrentas forças de ocupação indonésias e de um conluio norte-americano com a ditadura militar da Indonésia.

Duplos critérios

A atitude norte-americana perante a necessária liberalização de vistos para membros, funcionários, observadores e convidados da ONU tem sido irregular desde a fundação da organização. Em 1968, o governo Lyndon Johnson concedeu um visto ao comissário para as Relações Externas da república secessionista do Biafra, Matthew Mbu, para visitar a ONU e defender o caso do território nigeriano perante representantes das Nações Unidas. Em 1948, o governo Harry Truman negou vistos a dois representantes de regiões indianas, muçulmana e sikh, para apelar à ONU contra a integração na nação indiana. Ainda nesse mesmo ano, as autoridades norte-americanas não permitiram a concessão de vistos a representantes da Confederação Kalat, no Baluchistão, para apresentarem à ONU a sua contestação contra a integração no Paquistão.

Os fundadores da ONU chegaram a imaginar a construção de um aeroporto controlado pela ONU e situado perto da sede da organização que deixaria de estar controlado pelas autoridades de imigração dos Estados Unidos, portanto não abrangido pela questão dos vistos. Seria uma infraestrutura dotada com estatuto extraterritorial e corredores viários próprios para a ONU.

De Arafat a Maduro

Em 2006, quando regressava a Caracas depois da reunião da Assembleia Geral da ONU, o então ministro dos Negócios Estrangeiros da Venezuela, Nicolás Maduro, foi detido durante 90 minutos no aeroporto JFK de Nova York, enquanto a sua bagagem era submetida a uma busca invasiva. Tudo indica que a operação foi montada pela CIA porque, apesar de terem passado anos sobre o acontecimento, Maduro foi sujeito a um interrogatório relacionado com o atentado fracassado contra o presidente Hugo Chavez.

Este facto demonstra como os Estados Unidos se têm desviado dos acordos estabelecidos como anfitrião da ONU, independentemente dos presidentes no poder.

Em Dezembro de 1988, a Assembleia Geral da ONU foi mesmo forçada a transferir-se temporariamente para Genebra, de modo a poder ouvir o presidente palestiniano, Yasser Arafat, impedido de entrar em Nova York pela administração Reagan. Esta foi mais uma violação grosseira do acordo EUA-ONU.

Genebra fora, de facto, a sede da Sociedade das Nações. Embora esta entidade não tivesse qualquer autoridade para poder fazer cumprir as suas resoluções, a Suíça – de maneira antagónica em relação ao que acontece com os Estados Unidos – sempre se comportou de maneira a facilitar a entrada de delegações oficiais e convidados.

A ONU poderia, portanto, mudar a sua sede para Genebra, onde já funcionam diversos órgãos e agências da organização, incluindo o Conselho de Direitos Humanos, a Organização Mundial de Saúde, a Organização Internacional do Trabalho, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD), a Organização Meteorológica Mundial e a União Internacional de Telecomunicações.

Além disso, a Suíça tem uma política externa tradicional de neutralidade, pelo que Genebra seria uma escolha muito melhor do que Nova York para hospedar a ONU.

Cumprir vontades de Washington

Muito recentemente, o demitido conselheiro de Segurança Nacional dos Estados Unidos, John Bolton, que também foi embaixador do seu país na ONU, declarou que se fossem demolidos dez andares do palácio de vidro onde funcionam as Nações Unidas, em Nova York, ninguém daria por nada.

O ex-mayor de Nova York e agora advogado pessoal de Donald Trump, Rudolph Giuliani, usou rotineiramente o Departamento de Polícia da cidade para incomodar delegados de países da ONU dos quais não gosta. Delegados e funcionários da Rússia, Bielorrússia, Coreia do Norte, Laos, Iraque, Costa do Marfim, Indonésia, México, Egipto, Casaquistão, China, Cuba, Chipre, Zaire e outros receberam regularmente multas de estacionamento e os seus veículos foram rebocados. O diplomata russo Alexander Zmeevski afirmou que “a sua delegação recebeu notificações de multas mesmo em lugares de estacionamento reservados a veículos diplomáticos”. Emilia de Castro de Barish, delegada da Costa Rica na ONU, queixou-se de “ter recebido duas notificações injustas e discriminatórias de estacionamento”.

De novo Arafat. Em 1995, na administração Clinton, Giuliani ordenou que o presidente palestiniano – na altura já da Autoridade Palestiniana – fosse expulso da cidade, onde iria assistir ao concerto especial da Filarmónica de Nova York para os dirigentes mundiais, dedicado ao 50º aniversário da ONU. Giuliani afirmou que se a ONU não gosta do modo como a Câmara Municipal trata os seus funcionários e diplomatas pode sempre “mudar de cidade”.

Não foi a primeira vez que um republicano de extrema-direita e um apoiante extremista de Israel sugeriu que a ONU deixasse Nova York. Em 1983, um delegado norte-americano na ONU representante da administração Reagan, Charles Lichtenstein, teve atitude semelhante. Em pleno período de tensas relações entre os Estados Unidos e a União Soviética, o avião do ministro soviético dos Negócios Estrangeiros, Andrei Gromyko, foi impedido de aterrar nos aeroportos JFK de Nova York e de Newark, em New Jersey. Foi oferecida, como alternativa, a base de McGuire, da Força Aérea, em New Jersey, mas o governo soviético rejeitou porque estava em causa uma violação das normas do tratado Estados Unidos-Nações Unidas. Lichtenstein respondeu que se os Estados membros da ONU acham que “não estão a ser tratados com a consideração que lhes é devida, devem pensar em remover-se a si mesmos e à organização do solo dos Estados Unidos”. Acrescentou: “não lhes colocaremos entraves no seu caminho e os membros da missão dos Estados Unidos nas Nações Unidas estarão no cais acenando-lhes adeus enquanto navegarem sob o por-do-sol”. 

É hora de acatar os pedidos de Giuliani e Lichtenstein e mudar a ONU de Nova York para Genebra ou outro lugar não sujeito aos caprichos de fanáticos de direita como Trump, Giuliani, Bolton ou o falecido Lichtenstein.



fechar
goto top