INDÚSTRIA AUTOMÓVEL É QUESTÃO DE SEGURANÇA PARA OS EUA

2019-03-24
Jorge Fonseca de Almeida*, especial para O Lado Oculto
A indústria automóvel é uma das mais importantes do mundo, movimentando directa e indirectamente somas colossais.
Mercado Norte-americano
O mercado automóvel norte-americano mantém-se como um dos maiores do mundo, embora já ultrapassado pelo mercado interno chinês. No ano de 2016 foram vendidos nos EUA 6,9 milhões de carros de passageiros, dos quais apenas 4 milhões foram produzidos nesse país, e mesmo esses com muitos componentes fabricados no estrangeiro.
Os Estados Unidos são, de longe, o maior importador de veículos automóveis (ver Quadro 1) do mundo, gastando cerca de 180 mil milhões de dólares todos os anos com estas compras.
Quadro 1
Maiores Importadores mundiais de carros (2017)
Fonte: WTex- World Top Exporters
Em termos de peças para a indústria automóvel são também os maiores importadores (ver Quadro 2).
Mas, apesar de grandes importadores, a indústria automóvel representa cerca de 20% do PIB norte-americano e quase 8 milhões de empregos (Saberi, 2018). Um tal peso confere-lhe, sem dúvida, um estatuto de importância estratégica para a economia do país.
Quadro 2
Maiores Importadores mundiais de peças para automóveis (2017)
Fonte: WTex- World Top Exporters
Compreende-se, assim, o documento de 17 de Fevereiro último do Departamento do Comércio norte-americano entregue ao Presidente Trump propondo que se considere a importação de automóveis e de peças para a indústria automóvel como um perigo para a segurança nacional. Trump tem agora 90 dias para decidir se impõe ou não barreiras tarifárias a estas importações.
Mas quem são os países que exportam carros para os Estados Unidos? Serão os seus inimigos figadais, a China e a Rússia? Na verdade não. São os seus amigos e aliados (que na terminologia norte-americana significa, em geral, os países ocupados pelas suas bases militares ou derrotados em sucessivas guerras).
Quadro 3
Maiores Exportadores de carros para os EUA (2017)
Fonte: WTex- World Top Exporters
Quadro 4
Maiores Exportadores de peças para automóveis para os EUA (2017)
Fonte: WTex- World Top Exporters
Mas sabendo-se que todos os grandes fabricantes segmentaram a sua produção, dispersando-a pelo mundo, estes números podem ser muito enganadores. Boa parte das importações são de empresas norte-americanas a produzir no México, no Canadá ou em qualquer parte do mundo e a produção em solo norte-americano pode ser feita por empresas estrangeiras.
Vejamos então quem vende carros aos norte-americanos. A Ford (14%) lidera as vendas, seguida da Toyota (12%) e da Chevrolet (12%). Depois surgem a Honda e a Nissan. Só muito abaixo aparecem a Mercedes (2%), a Wolkswagem (1,9%), a BMW (1,9%) e a Audi (1,3%). Ao todo, os alemães têm cerca de 7% do mercado norte-americano. Valores para o ano de 2017. (Matthews, 2018).
A chanceler Angela Merkel reagiu fortemente ao documento do Departamento do Comércio, uma vez que as marcas alemãs são as grandes exportadoras de carros e partes para os Estados Unidos. É que o peso da indústria automóvel no PIB alemão é ainda maior, cifrando-se em 32,5% (Saberi, 2018). A perda dos mercados externos será um golpe tremendo na economia alemã e, por arrasto, europeia.
Está aberta mais uma frente da guerra comercial que os EUA estão a travar com o resto do planeta, procurando impor as suas regras, passando por cima das convenções internacionais que ajudaram a moldar no passado mas que agora já não servem para manter a sua supremacia. Neste caso, contudo, têm uma arma terrível com que vergar a economia alemã.
A emergência da China no mercado automóvel
O sedan A60 da JAC Motors
Apesar de pouco conhecidos em Portugal, a China tem já um conjunto de fabricantes de automóveis de que se destacam a JAC Motors, a Dongfeng Motors e a Chery.
Por exemplo, a JAC está presente em 130 países e possui 19 fábricas fora da China. A Chery na Europa encontra-se estabelecida em 11 países incluindo na Roménia, na Itália, na Sérvia, na Arménia, na Bielorrússia, na Ucrânia, na Rússia, etc..
Estes construtores, apesar de inicialmente vocacionados para o mercado interno chinês, estão a começar a expandir-se quer exportando veículos quer implantando fábricas no exterior. Note-se, contudo, que as exportações chinesas de carros e peças incluem uma fatia relevante de carros e peças produzidos na China por empresas estrangeiras, nomeadamente europeias, norte-americanas e sul-coreanas.
Desde 2009 que o mercado interno chinês é o maior do mundo em termos de vendas de carros e a China tornou-se o maior produtor do mundo. Em 2011 atingiu 25% de quota da produção mundial.
Só em 2017 a China exportou 640 mil automóveis de passageiros e 252 mil comerciais ligeiros, quase um milhão de carros. Mas apenas uma fração das exportações foram carros de fabricantes chineses.
Com a abertura dos mercados europeus é natural que a China venha a ter uma quota do mercado mundial cada vez maior. Este crescimento natural é visto pelos EUA como uma ameaça que os leva a renunciar aos anteriores princípios do comércio livre.
Importância estratégica do sector automóvel
A indústria automóvel é um sector estratégico na economia mundial por diversas razões: pelo volume de negócios gerados, pelo peso no emprego, pela incorporação que faz de múltiplas matérias-primas (metais, plásticos, borrachas), pelas tecnologias de ponta que emprega quer na produção quer nos veículos. É uma indústria de capital e conhecimento intensivos (Saberi, 2018).
A sua importância revela-se ainda pela procura que gera noutras indústrias – por exemplo a rádio é hoje em grande parte escutada por pessoas em viagem automóvel; sem o carro, as rádios não teriam tantos ouvintes, pelo que gerariam muito menos receitas publicitárias. Outro exemplo é o da venda de combustíveis, que exige uma longa cadeia produtiva desde a prospecção, a exploração de hidrocarbonetos e depois a sua conversão em gasolina, gasóleo e outros. Outro ainda, e mais importante, é o desenho e fabrico das máquinas, muitas delas robots, que são usados para a construção dos carros,
Mas a indústria automóvel enfrenta hoje desafios de modernização importantes que podem vir a transformá-la radicalmente e lançar ondas de choque nas outras indústrias relacionadas. Os construtores que ultrapassem com sucesso esses desafios serão os vendedores; os que não o consigam terão de enfrentar um declínio prolongado.
Os principais desafios são:
1. Electrificação – introdução de carros elétricos eficientes e a montagem de infraestruturas que permitam abastecê-los. Significa a criação de toda uma nova fileira industrial (de baterias), assente em tecnologias diferentes e a alteração radical da forma de abastecimento com impacto nas refinadoras (poderão deixar de existir) e nos postos de abastecimento.
2. Automáticos – sem necessidade de condução humana. Forte impacto em certos tipos de trabalho (motoristas, taxistas, etc.) e na forma de utilização do tempo de viagem. Provavelmente implicará a reformulação do espaço no interior dos automóveis. Com os automóveis automáticos as licenças de condução deixam de ser necessárias e todo um negócio desaparece ou será reconfigurado.
3. Formas de utilização – Hoje a maioria dos carros são de propriedade particular, mas no futuro serão cada vez mais partilhados. Como hoje temos trotinetes elétricas ou bicicletas que podemos usar para deslocações quando queremos, cada vez mais teremos automóveis na mesma situação. Sempre que quisermos deslocar-nos alugaremos um carro que virá ter connosco e nos levará ao destino pretendido. Esta fórmula permitirá partilhar o custo do automóvel por centenas de pessoas, diminuindo o custo para cada uma. Hoje o custo/hora de utilização de um automóvel é elevado, atendendo a que a maioria dos carros estão estacionados a maior parte do tempo. Poderá levar a uma diminuição global dos automóveis necessários.
4. Conectados – Os carros estarão cada vez mais conectados com o exterior, recebendo informação que lhes permite decidir qual o melhor trajecto, mas também permitindo aos seus ocupantes conectar-se com o trabalho, a família, etc. O automóvel poderá interagir, por exemplo, com rede de semáforos permitindo-lhe, numa emergência, ter sempre luz verde durante o percurso. Estas conexões exigem infraestruturas rodoviárias diferentes das de hoje.
Todas estas alterações vão moldar a indústria automóvel durante as próximas décadas. Por isso, quem as controlar terá uma vantagem estratégica fortíssima. Todas as mudanças identificadas acima implicam novas tecnologias (informáticas, industriais, comerciais), novas cadeias industriais e de serviços, novas empresas para as fornecer, novos empregos a criar e, simultaneamente, cadeias industriais a desaparecer e empregos a extinguir-se.
Esta é uma competição pela hegemonia numa indústria de futuro.
Percebe-se por isso que os Estados Unidos, cujos construtores não lideram estas mudanças, considerem de interesse da segurança nacional a indústria automóvel.
Utilização Militar
Muitas das inovações e desafios do sector automóvel podem ser transpostos para a produção de veículos militares. As tecnologias para a sua construção são basicamente as mesmas dos automóveis para uso civil, em termos da maior parte dos componentes.
Assim, um país privado da construção automóvel terá muita dificuldade de produzir veículos militares eficientes.
Conclusões
A indústria automóvel é um sector económico estratégico para um conjunto de países, não só pelo peso no PIB e no emprego, como pelo domínio de tecnologias importantes.
No momento em que a indústria automóvel está em processo de reconfiguração em resposta a múltiplos desafios simultâneos e em que os principais mercados estão a mudar de geografia (dos Estados Unidos para a China, do Ocidente para os países em desenvolvimento), percebe-se que cada país procure defender, consolidar e expandir a sua posição.
Os Estados Unidos, em perda num mercado aberto, estão a procurar impor restrições às indústrias de países concorrentes, de forma a garantirem a manutenção das sua indústria automóvel, que representa 20% do PIB.
A ameaça de tarifas que hoje paira sobre as importações de carros e de peças é suficientemente forte para obrigar a Alemanha a ceder em acordos comerciais, uma vez que este país depende muito da indústria automóvel, que representa mais de 30% do seu PIB. Veremos se a Alemanha não fará recair o custo dessas cedências sobre os restantes países europeus, nomeadamente sobre Portugal.
Um tema a seguir.
*Economista, MBA
Referências
Mayeda, Andrew e Jenny Leonard (2019), Trump Receives Report on U.S. Security Threat of Car Imports, Bloomberg, [online] https://www.bloomberg.com/news/articles/2019-02-18/trump-receives-report-on-u-s-security-threat-of-auto-imports, acedido a 12 de Março de 2019
Matthews, Jack (2018), United States Automotive Market: Brand and Corporation Sales Rankings for December YTD 2017, Goodcarsbadcars – auto sales and data and statistics, [online] http://www.goodcarbadcar.net/2018/01/u-s-auto-sales-brand-rankings-december-2017-ytd/, acedido a 15 de Março de 2019
Mckinsey and Co, The road to 2020 and beyond: what’s driving the global automotive industry, [online] https://www.mckinsey.com/~/media/mckinsey/dotcom/client_service/Automotive%20and%20Assembly/PDFs/McK_The_road_to_2020_and_beyond.ashx, acedido a 14 de Março de 2019
Pwc, Five Trends transforming the Automotive Industry, [online] https://www.pwc.at/de/publikationen/branchen-und-wirtschaftsstudien/eascy-five-trends-transforming-the-automotive-industry_2018.pdf, acedido a 12 de Março de 2019
Saberi, Behzad (2018), The Role of Automobile Industry in the economy of developed countries, International Robotics and Automation Journal, Volume 4, Número 3, pp 179-180