O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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GUERRA GLOBAL CONTRA A AGRICULTURA E A ALIMENTAÇÃO

2020-02-20

Os poderes globalizados do agronegócio e os impérios informáticos seus aliados estão a lançar novo assalto na guerra pelo controlo global da agricultura e a alimentação, de modo a impor as suas capacidades de decisão e marginalizar o sistema das Nações Unidas. Para isso contam com a colaboração do próprio secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, em conivência com o Fórum Económico de Davos, uma expressão institucional do neoliberalismo, e entidades que se têm distinguido igualmente à cabeça da “Agenda Verde” para o clima e a geoengenharia, designadamente filantrocapitalistas como Bill Gates.

Sílvia Ribeiro*, Grupo ETC/O Lado Oculto

As mais poderosas transnacionais do agronegócio e grandes empresas do sector informático estão a preparar um ataque em várias frentes para tomar conta das decisões globais sobre políticas agrícolas e alimentares. O objectivo é o de reconfigurar o sistema de gestão internacional – actualmente baseado em agências públicas e das Nações Unidas, como a FAO – e de investigação agrícola para criar instituições globais manipuladas pelas transnacionais e delas dependentes a partir das quais se definam as políticas públicas de todos os países. Isto é, as políticas que nos afectam a todos, que definem a qualidade, a quantidade e as condições de acesso à alimentação, em prejuízo das redes camponesas que produzem a maioria dos alimentos consumidos por cerca de 70% da população mundial e da possibilidade de podermos definir a nossa própria alimentação.

Trata-se de três iniciativas internacionais que interligam os temas de gestão, novas tecnologias e investigação agrícola: uma Cimeira Mundial dos Sistemas Alimentares, a realizar em 2021; uma proposta para estabelecer um Conselho Digital Internacional de Agricultura e Alimentação; e uma proposta de “unificação” dos centros de investigação agrícola pública internacionais (sistema CGIAR) sob uma direcção global e em função de interesses corporativos. Estas iniciativas são dirigidas por transnacionais e filantrocapitalistas como a Fundação Bill e Melinda Gates. O novo relatório “The Next Agrobusiness Takeover” do grupo ETC analisa as propostas e o seu contexto.

O poder do dinheiro

Paradoxalmente, estas acções são apresentadas como iniciativas “públicas”, devido ao envolvimento de actores das Nações Unidas ou governos; o que lhes está subjacente, porém, são estratégias para sabotar o multilateralismo, evitar a supervisão pública e, sobretudo, evitar que organizações camponesas, indígenas, do direito à alimentação e outras possam dar opiniões e actuar sobre estes processos.

A próxima Cimeira Mundial dos Sistemas Alimentares, por exemplo, foi anunciada em 2019 por António Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, na sede de Nova York; o anúncio foi acompanhado pela informação de que se realizará em colaboração com o Fórum Económico Mundial ou Fórum de Davos, onde se juntam anualmente as transnacionais e os mais ricos do mundo. A FAO e outras agências multilaterais só foram consultadas posteriormente.

Poderia supor-se que uma cimeira convocada pelo secretário-geral se realizaria no quadro das Nações Unidas. Mas não é assim, como tão pouco serão as cimeiras do Clima e dos Oceanos a realizar antes em Nova York. São anunciadas por um dirigente público e usando as instalações das Nações Unidas mas terão actores privados. As entidades e organizações interessadas em participar deverão ter meios próprios para corresponder às exigências económicas associadas à presença ou então ficam a depender da boa vontade de financiadores filantrocapitalistas ou grandes empresas para cobrirem as despesas. A dinâmica, decisões e declarações serão decididas por estes organizadores.

Nos trabalhos das agências da ONU, como a FAO no caso da agricultura e alimentação, podem participar, pelo contrário, todos os países membros, cada um com seu voto; para tal as Nações Unidas são responsáveis por garantir a presença dos países pobres. Dentro dos organismos actuantes há mecanismos para que os grupos directamente envolvidos participem nas negociações. No caso do Comité Mundial para a Segurança Alimentar, que reúne todas as agências das Nações Unidas relacionadas com o tema, formou-se um Mecanismo da Sociedade Civil que se auto-organiza para discutir os temas em negociação e garantir que se expressem as variadas posições, especialmente das organizações camponesas e indígenas. 

Guterres favorece os transgénicos

Seria ingénuo pensar que, mesmo neste formato, tudo se processa de modo a existir uma participação igualitária dos países: as empresas sempre interferiram, influenciaram e pressionaram de todas as formas no interior das Nações Unidas. Mas agora a proposta vem directamente dos centros de poder das transnacionais, neste caso através da Iniciativa de Sistemas Alimentares do Fórum de Davos, e faz parte de uma estratégia global para garantir que sejam as próprias empresas a definir as políticas públicas.

O objectivo é assegurar as melhores condições em todo o mundo para fazer funcionar a “agricultura 4.0”, isto é, a agricultura industrial dependente da alta tecnologia, desde culturas transgénicas e sementes corporativas a sistemas digitalizados na produção e comércio, tudo controlado pelas transnacionais do agronegócio e as plataformas digitais suas aliadas.

De maneira a assegurar que assim seja, Guterres nomeou como enviada especial à Cimeira de Sistemas Alimentares uma figura como Agnes Kalibata, presidente da AGRA (Aliança para a Revolução Verde em África), uma iniciativa para devastar o continente com agricultura industrial e transgénica promovida pela Fundação Gates.

O Comité Internacional de Planificação para a Soberania Alimentar, que associa milhares de organizações camponesas e da sociedade civil que participam nas Cimeiras da Alimentação desde 1996, lançou uma carta aberta de protesto exigindo ao secretário-geral da ONU que retire a nomeação de Kalibata e pondo em causa a organização desta nova cimeira.

*Investigadora do Grupo ETC, que estuda o impacto das tecnologias emergentes e das estratégias corporativas sobre a biodiversidade, a agricultura e os direitos humanos.


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