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CATALUNHA NAS RUAS, ESPANHA À DERIVA

Uma Barcelona que Madrid teima em desconhecer

2019-10-19

A revolta catalã contra a prisão de importantes dirigentes independentistas decidida por um tribunal central de Madrid não se detém. A informação mainstream tenta esconder a questão central – a recusa em escutar a opinião dos cidadãos da Catalunha livremente expressa – empolando os actos de violência que contrariam a vontade dos detidos e servem os interesses de Madrid. Enquanto estes actos são protagonizados por reduzidos grupos organizados e pelos brutais serviços de repressão, foram 700 mil os catalães que sexta-feira convergiram em Barcelona reclamando o direito democrático de terem opinião sobre a independência ou não do seu país. Em Madrid, os principais dirigentes políticos multiplicam acusações e ameaças, mas não apresentam propostas.

Alexis Romero, Público.es; adaptação de O Lado Oculto

As ruas movem-se, as instituições, não. O balanço que deixa a semana de reacções à sentença do “procés” – que enclausurou por um total de 100 anos nove dirigentes do independentismo na Catalunha – ficou marcado por fortes protestos cidadãos e pelo endurecimento dos discursos da maioria dos dirigentes políticos de Espanha, mas não por movimentações dos principais partidos políticos no sentido de trabalhar por uma solução do conflito.

As manifestações destes dias abriram caminho a tensões e a cargas policiais durante as noites, mas a esse aumento de conflitualidade não correspondeu uma proposta clara de qualquer partido político para atacar a crise. Produziram-se, é certo, algumas movimentações entre as forças políticas, mas quase sempre de carácter verbal e simbólico.

Há boas provas disso tanto em Barcelona como em Madrid. O presidente do Generalitat (governo autonómico catalão), Quim Torra (direita nacionalista), convocou um plenário extraordinário do Parlament (parlamento autonómico) para apreciar os protestos que estão nas ruas. Protestos pacíficos interpretados por centenas de milhares de pessoas, correspondendo aos apelos à não-violência dos dirigentes detidos; e actos violentos protagonizados por umas dezenas de díscolos que acabam por dar oportunidades de acção às forças repressivas.

No Parlament, os protagonistas proporcionaram um debate tenso no qual toda a oposição pediu a Torra que abandone o cargo, devido à sua inacção.

A proposta do presidente do governo autonómico para responder à crise política foi o anúncio de que na próxima Primavera voltará “a recorrer às urnas para a autodeterminação” da Catalunha. A decisão revelou importantes divisões dentro do governo e do movimento independentista já que, de acordo com a Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), Torra não comunicou aos seus parceiros de governo que ia propor uma nova consulta, apesar de ter tomado a iniciativa como presidente do executivo autonómico.

Em Madrid, apelos à repressão

Em Madrid, a movimentação mais importante do governo foi a reunião do chefe do governo em funções, Pedro Sánchez (PSOE), com os dirigentes das principais forças políticas. Casado (PP, direita neofranquista), Rivera (Ciudadanos, direita neoliberal) e Iglésias (Unidos Podemos, coligação maioritariamente social-democrata) deslocaram-se ao palácio de La Moncloa com propostas e reivindicações; mas a verdade é que estas reuniões não foram acompanhadas pela aposta numa proposta clara para dar resposta ao conflito na Catalunha.

Casado pediu a Sánchez que faça intervir ainda mais os Mossos (polícia autonómica catalã); Rivera pediu mais polícia; e Iglésias pediu “diálogo” para avançar no sentido de uma “desinflamação” do conflito.

Portanto, da direita pressiona-se o governo a aplicar o artigo 155* da Constituição, a enviar mais efectivos de polícia para a Catalunha (Albert Rivera) e a aplicar a lei de segurança nacional** (Pablo Casado); da esquerda, Pablo Iglésias ofereceu apoio ao governo nas medidas que possam ir no sentido de “desinflamar” o conflito.

Ignorar o descontentamento

Depois das reuniões, no entanto, o presidente do governo em funções não anunciou qualquer acção concreta, além das intervenções já feitas nos últimos dias. Na segunda-feira, 14, depois da publicação da sentença pelo Supremo Tribunal, o dirigente socialista fez uma declaração institucional, primeiro em castelhano e depois em inglês, assegurando que a resolução judicial pôs um “ponto final num processo que decorreu com todas as garantias e a máxima transparência”, comprometendo-se, por isso, “a garantir a convivência e a segurança”.

Sánchez previu que nos dias seguintes iriam registar-se “estertores de uma fase ultrapassada”. No entanto, esses “estertores” tomaram a forma de manifestações e protestos em toda a Catalunha, pelo que o governo em funções se viu forçado a emitir um comunicado assegurando que os incidentes ocorridos foram coordenados “por grupos que utilizam a violência nas ruas”. O chefe do governo centrou assim as suas palavras nas actividades de díscolos manipuláveis, evitando tecer considerações sobre os grandes desfiles populares que, partindo de várias cidades da Catalunha convergiram para Barcelona, onde se juntaram entre meio milhão (segundo a polícia) a 700 mil pessoas (segundo os organizadores da greve geral).

Na quinta-feira, 17, depois de se reunir com os dirigentes do PP, Ciudadanos e Unidos Podemos, o chefe do governo exigiu a Quim Torra que condene a violência, afirmando que se trata de “um dever político e moral”. Segundo Sánchez, Torra “não pode esconder o seu fracasso com cortinas de fumo e fogo”.

Já na sexta-feira, e perante a persistência das manifestações e dos protestos nas ruas catalãs, Sánchez acrescentou que “não haverá qualquer espaço para a impunidade dos actos de vandalismo”, acusou Torra de ser “frívolo” com a violência e evitou, mais uma vez, encarar o significado das enormes concentrações de massas solidárias com os presos políticos.

Neste cenário, a troca de declarações foi constante na semana de publicação da sentença do “procés”, uma semana que terminou com uma marcha massiva em Barcelona mas sem qualquer proposta política.

*O artigo 155 da Constituição espanhola estabelece o controlo do governo central sobre os governos autonómicos, contendo mecanismos excepcionais ou extremos e com alcance coercivo, de “cumprimento obrigatório”. Prevê-se a sua utilização nos casos que “atentem gravemente contra os interesses do Estado espanhol”. O artigo nunca foi aplicado.

** A Lei de Segurança Nacional “garante a defesa do Estado, seus princípios e valores constitucionais”. Prevê a declaração de “Situações de Interesse” pelo governo, contendo medidas excepcionais que, no entanto e em caso algum, admitem “a suspensão dos direitos fundamentais e liberdades públicas”.


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