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VIOLÊNCIA DA NOVA CASTA DOMINANTE NO BRASIL

O activo clã Bolsonaro, cujas eventuais ligações com o crime organizado começam a ser mais que suspeitas

2019-01-25

Alexandre Weffort, especial para O Lado Oculto

Os primeiros dias de governo Bolsonaro no Brasil apresentam-se recheados de momentos pitorescos, onde o drama e a comédia andam de mãos dadas. A cada passo, os novos governantes deparam-se com a diferença radical que se manifesta entre a mensagem populista, lançada na campanha eleitoral, e a capacidade real de a transformar em projecto político. As contradições pululam e, através delas, segue seu caminho a política institucional brasileira.

O caso que é comentado neste texto, do envolvimento de Flávio Bolsonaro (deputado federal, senador eleito e filho do presidente brasileiro), num complexo caso policial que indicia a ligação da corrupção com o crime organizado (e aos responsáveis pelo assassinato da deputada Marielle Franco), terá conduzido já ao cancelamento de uma conferência de imprensa de Jair Bolsonaro e seus ministros em Davos, facto sem precedentes e revelador da extrema gravidade da situação interna brasileira.
A chegada ao poder de Jair Bolsonaro dá-se por via de um processo de manipulação da consciência social, onde as redes de comunicação virtual desempenharam papel fundamental ('Facebook' e 'WhatsApp' entraram no léxico político associados a 'fake news', violência e alienação, como oportunamente denunciou a Folha de São Paulo).

A linhagem política hoje dominante no Brasil vai beber nas águas da ultra-direita norte-americana.
Tendo Steve Bannon como modelo estratégico e Donal Trump como ícone, procurará a figura de um 'guru', o filósofo autodidata Olavo de Carvalho.
A imagem (1), difundida nos media internacionais, de um dos filhos de Bolsonaro, é elucidativa o bastante.
E, com este ramalhete de referências ideológicas, inicia-se a montagem de uma 'nova casta dominante'.

O conceito de 'casta' aplica-se, porque estes novos protagonistas irão estruturar-se em torno de um patamar de relacionamentos de ordem pessoal (onde desponta o clã Bolsonaro), e 'nova', atendendo à chegada à ribalta de políticos debutantes, como Kataguire (jovem de 23 anos) e Frota (ex-actor porno), entre tantos outros, que se iniciaram no MBL (Movimento Brasil Livre), nas movimentações de rua que antecederam o impeachment de Dilma Rousseff. Aparecem também protagonistas com algum percurso já trilhado na política brasileira, em áreas secundárias do poder, por vezes chamados "baixo clero" (termo aplicado pelos media, por exemplo, aos filhos de Bolsonaro).

Dificuldades no seio do bolsonarismo

Mas o caminho que percorre esta nova 'casta' não é linear, nem liso. Muitos são os percalços que os media noticiam. Um dos filhos de Bolsonaro protagoniza o primeiro tropeção por via de ex-assessor, através de uma investigação por movimentos financeiros inusitados. Questões do foro jurídico que, no passado recente, deram fama ao actual ministro da justiça, Sérgio Moro, por meio das investigações designadas por 'Lava Jato', iluminam o clã Bolsonaro.

Embora a parte do processo que é de conhecimento público apenas tenha como alvo o seu ex-assessor, tal não inibirá o senador recém eleito Flávio Bolsonaro de solicitar ao STF (Supremo Tribunal Federal) as prerrogativas de foro privilegiado. E, deixando pasmados juristas e políticos de variados posicionamentos, verá o seu pedido atendido, sendo ordenada pelo STF a suspensão das investigações, num momento em que, conforme noticiam os media, ao ex-assessor de Flávio Bolsonaro são apontadas movimentações suspeitas de sete milhões de reais nos últimos três anos e, também, um pagamento de um título de um milhão de reais pelo filho de Bolsonaro (2).

Uma segunda investigação que acaba por apontar a Flávio Bolsonaro relaciona-se com as milícias do Rio de Janeiro. Dois dos cabecilhas de uma das milícias mais antigas e perigosas do Estado, com a designação de 'Escritório do Crime', presos nestes dias em no âmbito da 'Operação Intocáveis' que investiga o assassinato de Marielle Franco (um major e um ex-capitão da polícia militar), foram homenageados por Flávio Bolsonaro, que recomendou a atribuição da medalha 'Tiradentes', mesmo quando um deles havia sido acusado de participação em chacina de cinco jovens (3).

Cai, assim, por terra a imagem de luta contra a corrupção, apoiada no processo 'Lava Jato' e  alardeada pela direita brasileira como bandeira do novo regime. E cai com tal estrondo que tanto o jovem senador recém eleito Kim Kataguiri, como o politicamente muito activo coordenador da operação 'Lava Jato', procurador Deltan Dallagnol, manifestarão o seu estranhamento: "não há como concordar" diz Dallagnol; "é, no mínimo, suspeito..." dirá Kataguiri (4).

Os novos actores da direita na política brasileira dão passos desastrados. Um certo deslumbramento e a ânsia de aparecer (que motiva o apego às redes sociais tipo 'Twitter', tão ao gosto de Trump, Bolsonaro e quejandos), conduz a fricções no núcleo duro do bolsonarismo.

Um grupo de parlamentares do PSL (Partido Social Liberal – partido que foi literalmente 'alugado' para a candidatura de Bolsonaro e que, na cola da vitória deste, viu crescer de 8 para 56 o número de eleitos a nível federal), foi à China (5). E, da China, trouxeram na bagagem a proposta de aplicar nos aeroportos brasileiros uma tecnologia de vigilância por reconhecimento facial desenvolvida pela Huawei.
Perante a notícia, reage o 'guru' de Bolsonaro, Olavo de Carvalho, que apelidou os integrantes da viagem de "semianalfabetos" e "idiotas", acrescentando: "E eu sou guru dessa porcaria? Eu não sou guru de merda nenhuma!" (6).

O nível de linguagem sintoniza com o da reflexão produzida pela nova 'casta' bolsonarista. Mas, o protesto dirigido pelo 'guru' aos seus acólitos não é apenas grosseiro na forma. Traduz as relações de poder dentro da nova casta dominante. A violência, que esteve presente como imagem de marca do bolsonarismo nas redes sociais, é assimilada como modus operandi também nas questões triviais.

O desacerto de passos entre Bolsonaro e seus apoiantes revela a complexidade do jogo político brasileiro – algo que tem de ser lido de acordo com a dimensão objectiva do Brasil, a sua estrutura federativa e o seu papel geopolítico. Averba-se a Olavo de Carvalho a indicação de alguns dos nomes do governo de Bolsonaro, entre eles, o de Ernesto Araújo, chanceler que lidera o Itamaraty (o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Brasil), quem «afirma acreditar que a divina providência uniu as ideias de Olavo de Carvalho à determinação e ao patriotismo de Jair Bolsonaro" para pôr fim ao regime "corrupto e ateu" que, segundo ele, emergiu no Brasil com a Nova República ...» (7).

Olavo de Carvalho desempenha o papel de formador dos intelectuais orgânicos da 'nova casta dominante', tendo por missão preencher o vazio que se manifesta quando indivíduos da craveira de Frota (ex-actor porno) se vêm guindados à categoria de político profissional.

Ao longo da última década, esse processo tem seguido a forma de cursos à distância de filosofia, dados pelo escritor e filósofo autodidata. Relacionando-se de forma mais próxima com o clã Bolsonaro por meio dos filhos (que, em 2012, lhe levam pessoalmente a medalha 'Tiradentes', atribuída pelo Governo do Estado do Rio de Janeiro) e, depois, por meio de um seu discípulo, que se irá dedicar à área internacional do PSL, para o surgir da iniciativa 'Cúpula Conservadora das Américas', movimento de direita que se pretende em contraponto ideológico ao 'Foro de São Paulo', criado em 1990 por iniciativa do PT (Partido dos Trabalhadores). Na imagem, Olavo de Carvalho recebe o mesmo galardão que, por iniciativa de Flávio Bolsonaro, foi dado aos dois militares agora presos no âmbito das investigações ao assassinato de Marielle Franco, deputada do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade).

Contradições dominantes

O protagonismo institucional surge como foco de tensão também para a esquerda brasileira, não conseguindo manter, nesta fase pós-eleitoral, a dinâmica de unidade produzida pela candidatura de Fernando Haddad e Manuela de Ávila.

Com o PT isolado no plano parlamentar, desenha-se uma aliança conjuntural de centro-direita em torno do actual presidente do Congresso, Rodrigo Maia, do DEM (Democratas).
A essa aliança conjuntural aproximou-se também o PCdoB (Partido Comunista do Brasil), gerando alguma perplexidade a nível interno e obrigando a um esforço desgastante de enquadramento dessa opção tática a nível externo.

O momento de rearranjo institucional das forças políticas com representatividade parlamentar reflecte a ascensão súbita da ultra-direita ao poder e também uma certa inércia institucional da política brasileira produzida a nível federal. Manifestam-se realidades conflituantes, quando observados os protagonistas a nível estadual ou federal. O processo parlamentar brasileiro revela-se marcado pelo fisiologismo, termo que designa as relações políticas e decisões tomadas em trocas de favores, emerge como traço mais visível, secundarizando nos media a dinâmica de massas que, em última análise, legitima e sustenta o exercício do poder nas instâncias representativas do poder.

Pontos de esteio

Algumas organizações mantêm, todavia, a sua estabilidade de caminho. Do lado do regime nascente, de mentalidade conservadora e traço fascizante (pouco relevante a discussão académica sobre a categoria ideológica fascista do movimento bolsonariano), o esteio encontra-se na instituição castrense. Do lado oposto, tanto a igreja católica (nomeadamente a CNBB, Conferência Nacional dos Bispos Brasileiros), como movimentos sociais mais estruturados, como o MST (Movimento dos Trabalhados Rurais Sem Terra), mantêm um trabalho de base continuado, embora nesta fase com menor visibilidade.

Com Bolsonaro, os militares entraram em força na política brasileira (havendo já 41 nomeados em altos cargos políticos do governo federal). Perante as 'mancadas' várias que se vão produzindo, apresentam até uma imagem mais serena (9). Afinal, a eleição de Bolsonaro insere-se num processo em que os militares foram desempenhando, na sombra ou com algum protagonismo assumido, um papel determinante. Com o ex-capitão Jair Bolsonaro, regressaram ao poder, desta feita pela via eleitoral.

Contradições e pontos de ruptura

Será, na partilha de protagonismo e partilha de lugares entre militares e evangélicos, que veremos surgir a primeira fricção interna, com a inviabilização do nome de Magno Malta para um qualquer cargo ministerial. Com a viagem dos deputados do PSL à China, manifesta-se a fractura entre a estrutura partidária 'alugada' por Bolsonaro (o PSL) e os activistas de ultra-direita que garantiram a sua eleição (o movimento bolsonariano). A pressa do filho de Bolsonaro em garantir a rectaguarda em relação ao processo que corre sobre o seu ex-assessor, pressionando o STF, fracturou a relação do seu clã com o MBL e a própria liderança da 'Lava Jato'.

Enquanto, à direita, a questão manifesta-se na extrema personalização das acções e reacções, sendo essa personalização um jogo frequente e natural a esse quadrante ideológico, à esquerda, essa personalização (imposta pela ideologia dominante) contraria frontalmente a identidade e os princípios que seguem os movimentos progressistas, que procuram basear a sua acção nos movimentos sociais e de classe, acompanhando as suas reivindicações mais urgentes, como a Reforma Agrária (10, imagem de 2014, manifestação promovida pelo MST em Brasília, movimento popular que surge neste momento como principal alvo da ultra-direita).

Os ataques da ultra-direita ao MST recrudescem, associados à campanha de dominação conservadora a nível do sistema educativo (com a chamada 'escola sem partido'), com a agressão às escolas criadas pelo movimento camponês nos espaços rurais. Por outro lado, os violentos ataques em localidades rurais e aos líderes populares continuam, num incremento de violência notório e relacionado com a campanha eleitoral de Bolsonaro, com uso sistemático de simbologia associada a armas e, neste últimos dias, com a publicação do decreto que liberaliza a posse de armas.

A mobilização em defesa do MST torna-se assim premente, pelo que aquele movimento representa enquanto experiência concreta de efectivação de ideais socialistas num Brasil que mergulha numa fase de retrocesso já sentido a todos os níveis. Fase onde a busca, em cada momento, da unidade das forças políticas progressistas não se deve confundir com alianças de circunstância no plano institucional.

Referências

(1) https://jornalggn.com.br/noticia/the-guardian-eduardo-bolsonaro-age-como-chanceler-paralelo-atacando-maduro
(2) https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2019/01/22/flavio-bolsonaro-contratou-mae-de-foragido-de-operacao-contra-milicia-ex-assessora-e-citada-pelo-coaf.ghtml
(3) https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/20/politica/1547990991_636993.amp.html
(4) https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/01/decisao-que-beneficia-flavio-bolsonaro-gera-onda-de-criticas-de-apoiadores.shtml
(5) https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/01/olavo-de-carvalho-critica-ida-de-parlamentares-do-psl-a-china-e-nega-ser-guru-do-governo.shtml
(6) Imagem retirada de https://exame.abril.com.br/brasil/houve-erro-de-comunicacao-afirma-deputada-do-psl-sobre-visita-a-china/
(7) https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2019/01/olavo-de-carvalho-critica-ida-de-parlamentares-do-psl-a-china-e-nega-ser-guru-do-governo.shtml
(8) https://oglobo.globo.com/mundo/providencia-divina-uniu-olavo-de-carvalho-bolsonaro-diz-novo-chanceler-23331714
(9) Imagem retirada de https://istoe.com.br/a-nova-era-militar/
(10) http://www2.camara.leg.br/camaranoticias/noticias/AGROPECUARIA/461913-MARCHA-DO-MST-NA-PRACA-DOS-TRES-PODERES-TEM-CONFRONTO-ENTRE-PMS-E-MILITANTES.html

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