O QUE ESTÁ EM JOGO NO MAR DO SUL DA CHINA
2020-08-04
Pepe Escobar, Asia Times/O Lado Oculto
Quando os porta-aviões norte-americanos Ronald Reagan e Nimitz recentemente se envolveram em "operações" no Mar do Sul da China não deixou de notar-se que a Frota do Pacífico dos Estados Unidos estava a fazer os possíveis para transformar a teoria infantil da armadilha de Tucídides, uma provocação de guerra, numa profecia auto-realizável.
A posição oficial, divulgada através do contra-almirante Jim Kirk, comandante do Nimitz, é que as operações foram conduzidas para "reforçar o nosso compromisso com um Indo-Pacífico livre e aberto, com uma ordem internacional baseada em regras e com nossos aliados e parceiros".
Já ninguém presta atenção a estes lugares comuns porque a verdadeira mensagem foi transmitida por um operacional da CIA fazendo-se passar por um diplomata, o secretário de Estado Mike "Nós Mentimos, Trapaceamos, Roubamos" Pompeo: "A República Popular da China não tem fundamentos legais para impor unilateralmente sua vontade à região", numa referência à Linha das Nove Raias. Para o Departamento de Estado, Pequim não emprega nada além de "tácticas de gangsters" no Mar do Sul da China.
Mais uma vez, ninguém prestou atenção, porque os factos reais sobre a região são muito mais sérios e complexos. Qualquer coisa que se mova no Mar da China do Sul - a crucial artéria de comércio marítimo da China - está à mercê do Exército de Libertação Popular, que decide se e quando implantar os seus mísseis "carrier killer" DF-21D e DF-26. É absolutamente impossível que a frota do Pacífico dos Estados Unidos possa vencer uma guerra de troca de tiros no Mar do Sul da China.
Bloqueado electronicamente
Um relatório chinês crucial, não disponível e não referido pelos media ocidentais e traduzido pelo analista Thomas Wing Polin, sediado em Hong Kong, é essencial para entender o contexto.
O relatório diz respeito aos aviões de guerra eletrónicos US Growler, postos totalmente fora de controlo (Abril de 2018) por dispositivos electrónicos de interferência posicionados em ilhas e recifes no Mar do Sul da China.
De acordo com o relatório, "após o incidente, os Estados Unidos negociaram com a China exigindo que a China desmantelasse imediatamente o equipamento electrónico, o que foi rejeitado. Estes dispositivos electrónicos são uma parte importante da defesa marítima da China e não são armas ofensivas. Portanto, o pedido de desmantelamento dos militares americanos não é razoável".
Ainda há mais, segundo o mesmo relatório: "No mesmo dia, o ex-comandante Scott Swift da Frota do Pacífico dos Estados Unidos finalmente reconheceu que os militares norte-americanos tinham perdido o melhor momento para controlar o Mar do Sul da China. Acredita que a China implantou um grande número de mísseis de defesa aérea Hongqi 9, bombardeiros H-6K e sistemas electrónicos de interferência em ilhas e recifes. Pode-se dizer que a defesa é sólida. Se os caças norte-americanos se precipitarem para o Mar da China Meridional é provável que encontrem aí o seu 'Waterloo'".
O resultado final revela que os sistemas - incluindo o bloqueio electrónico - implantados pelo Exército de Libertação Popular em ilhas e recifes no Mar do Sul da China, cobrindo mais da metade da superfície total, são considerados por Pequim como parte do sistema de defesa nacional.
Já pormenorizei anteriormente o que o Almirante Philip Davidson, quando foi designado para chefiar o Comando do Pacífico dos EUA (PACOM), disse no Senado de Washington. Eis as suas três principais conclusões:
1) "A China procura capacidades avançadas (por exemplo, mísseis hipersónicos) contra as quais os Estados Unidos não têm nenhuma defesa actual. À medida que a China procurar estes sistemas avançados de armamento as forças norte-americanas em todo o Indo-Pacífico serão colocadas cada vez mais em risco".
2) "A China está a minar a ordem internacional baseada em regras".
3) "A China é agora capaz de controlar o Mar do Sul da China em todos os cenários, sem guerra com os Estados Unidos".
Implicado em tudo isto está o "segredo" da estratégia Indo-Pacífico norte-americana: na melhor das hipóteses um exercício de contenção, já que a China continua a solidificar a Rota Marítima da Seda que liga o seu Mar do Sul ao Oceano Índico.
Algumas memórias
O Mar do Sul da China é e continuará a ser um dos principais pontos de fulgor geopolítico do jovem século XXI, onde grande parte do equilíbrio de poder Oriente-Ocidente será jogado.
Já falei disso com algum pormenor noutros momentos do passado, mas são essenciais algumas referências históricas para entender a actual conjuntura, à medida que o Mar da China Meridional se parece e se comporta cada vez mais como um lago chinês.
Comecemos por1890, quando Alfred Mahan, então presidente da Escola Naval dos EUA, escreveu o seminal “A Influência do Poder do Mar sobre a História, 1660-1783”. A tese central de Mahan é a de que os Estados Unidos devem tornar-se globais em busca de novos mercados e proteger essas novas rotas comerciais através de uma rede de bases navais.
Este é o embrião do império de bases dos EUA - que continua em vigor.
Foi o colonialismo ocidental – norte-americano e europeu - que traçou a maioria das fronteiras terrestres e marítimas dos Estados limítrofes do Mar do Sul da China: Filipinas, Indonésia, Malásia, Vietname.
Falamos de fronteiras entre diferentes possessões coloniais – o que implicou problemas intratáveis desde o início, posteriormente herdados pelas nações pós-coloniais.
Historicamente sempre existira um processo completamente diferente. Os melhores estudos antropológicos (de Bill Solheim, por exemplo) definem as comunidades seminómadas que realmente viajaram e comerciaram através do Mar do Sul da China desde tempos imemoriais como o Nusantao - uma palavra austronésia composta de "ilha do sul" e "povo".
Os Nusantao não eram um grupo étnico definido. Eram uma rede marítima. Ao longo dos séculos foram criando muitos pontos-chave, desde a linha costeira entre o centro do Vietname e Hong Kong até ao Delta do Mekong. Não estavam ligados a qualquer “Estado". A noção ocidental de "fronteiras" nem sequer existia. Em meados dos anos noventa tive o privilégio de encontrar alguns dos seus descendentes na Indonésia e no Vietname.
Por isso, foi somente no final do século XIX que o sistema colonial vestefaliano conseguiu congelar o Mar do Sul da China dentro de uma estrutura inamovível.
O que nos conduz ao ponto crucial para perceber por que a China é tão sensível quanto às suas fronteiras; porque elas estão diretamente ligadas ao "século da humilhação" - quando a corrupção e a fragilidade interna chinesa permitiram que os "bárbaros" ocidentais tomassem posse das suas terras.
Um lago japonês
A Linha das Nove Raias é um problema extremamente complexo. Foi inventada em 1936 pelo eminente geógrafo chinês Bai Meichu, um feroz nacionalista, inicialmente como parte de um "Mapa de Humilhação Nacional Chinesa" na forma de uma "linha em forma de U" devorando o Mar do Sul da China até James Shoal, que fica 1500 quilómetros ao sul da China mas apenas a pouco mais de 100 quilómetros do Bornéu.
A Linha das Nove Raias, desde o início, foi impulsionada pelo governo chinês - lembre-se, na época ainda não comunista - como letra da lei em termos de reivindicações "históricas" chinesas sobre ilhas no Mar do Sul.
Um ano depois, o Japão invadiu a China. Os japoneses já tinham ocupado Taiwan em 1895. O Japão ocupou as Filipinas em 1942. Isto significou que praticamente toda a costa do Mar do Sul da China ficou a ser controlada por um único império, o que aconteceu pela primeira vez na história. O Mar da China Meridional tornara-se um lago japonês.
A situação prolongou-se até 1945. Os japoneses ocuparam a Ilha Woody nas Ilhas Paracelso e Itu Aba (hoje Taiping) nas Ilhas Spratley. Depois do fim da Segunda Guerra Mundial e do bombardeamento nuclear norte-americano no Japão, as Filipinas tornaram-se independentes em 1946 e as Spratley foram imediatamente declaradas território filipino.
Em 1947, todas as ilhas do Mar do Sul da China receberam nomes chineses.
E em Dezembro de 1947 todas as ilhas foram colocadas sob o controlo da região chinesa de Hainan (ela própria uma ilha no sul da China.) Novos mapas surgiram então, mas agora com nomes chineses para as ilhas (ou recifes, ou ilhéus). Mas nasceu um enorme problema: ninguém explicou o significado desses traços indicadores (que eram originalmente onze).
Em Junho de 1947, a República da China reivindicara tudo dentro da Linha das Nove Raias - enquanto se proclamava aberta para negociar, mais tarde, fronteiras marítimas definitivas com outras nações. Entretanto, não haveria fronteiras.
A situação criou o cenário da imensamente complicada "ambiguidade estratégica" do Mar do Sul da China que ainda persiste - e permite ao Departamento de Estado acusar Pequim das "tácticas de gangsters". O auge de uma transição da milenar da "rede marítima" de povos seminómadas para o sistema vestefaliano de possessões coloniais não significara nada além de problemas.
Hora do Código de Conduta (COC)
E quanto à noção norte-americana de "liberdade de navegação"?
Em termos imperiais, a "liberdade de navegação" da Costa Oeste dos EUA à Ásia - através do Pacífico, do Mar do Sul da China, do Estreito de Malaca e do Oceano Índico - é estritamente uma questão de estratégia militar.
A Marinha dos Estados Unidos simplesmente não consegue imaginar o ter de lidar com zonas de exclusão marítima - ou ter de exigir uma "autorização" sempre que precisar de atravessá-las. Neste caso, o império das bases perderia o "acesso" às suas próprias bases.
Isto é agravado pela paranóia do Pentágono ao admitir uma situação em que uma "potência hostil" - a China - decidiria bloquear o comércio global. A premissa em si é ridícula, pois o Mar do Sul da China é a principal e vital artéria marítima para a economia globalizada dos chineses.
Portanto, não existe justificação racional para um programa de Liberdade de Navegação (FON). Para todos os fins práticos, estes porta-aviões como o Ronald Reagan e o Nimitz, que se exibem dentro e fora do Mar do Sul da China, equivalem à diplomacia da canhoneira do século XXI. O que não chega para impressionar Pequim.
No que diz respeito à Associação das Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), com 10 membros, o que parece mais importante é a elaboração de um Código de Conduta (COC) para resolver todos os conflitos marítimos entre Filipinas, Vietname, Malásia, Brunei e China.
No próximo ano a ASEAN e a China celebrarão 30 anos de fortes relações bilaterais. Existe uma importante possibilidade de essas relações serem elevadas para o estatuto de "parceria estratégica abrangente".
Devido à COVID-19, todos os participantes tiveram de adiar as negociações para a segunda leitura do projecto único do COC. Pequim queria que os contactos decorressem frente a frente - porque o documento é ultra sensível e, por enquanto, secreto. No entanto estabeleceu-se um acordo para a negociação on-line - através de textos pormenorizados.
Será uma tarefa difícil porque, como a ASEAN deixou claro numa cimeira virtual realizada no final de Junho, tudo tem de ficar de acordo com o direito internacional, incluindo a Convenção das Nações Unidas sobre o Direito Marítimo (UNCLOS).
Se todos puderem chegar a um entendimento sobre um COC até ao final de 2020, um acordo definitivo poderá ser aprovado pela ASEAN em meados de 2021. Não será necessário salientar a importância histórica desta eventualidade - porque esta negociação está em curso há pelo menos duas décadas.
Sem mencionar que a aprovação de um COC invalida qualquer pretensão dos Estados Unidos para assegurar “a liberdade de navegação” - numa área onde a navegação já é livre.
A “liberdade”, contudo, nunca foi a questão. Em terminologia imperial, "liberdade" significa que a China deve obedecer e manter o Mar do Sul da China aberto à Marinha dos EUA. Isso é possível, mas seria necessário que se processasse segundo comportamentos adequados. Caso contrário chegará o dia em que a Marinha dos Estados Unidos será "rejeitada" no Mar do Sul da China. Não é preciso ser-se um Alfred Mahan para perceber que isso significará o fim do governo imperial dos sete mares.