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BRASIL: A CONSPIRAÇÃO QUE GEROU O CANDIDATO FAKE

O juiz Moro, que mandou prender Lula sem provas (à esquerda) conversando com Jair Bolsonaro, que já prometeu recompensá-lo, se for eleito

2018-10-18

Atílio Borón*, O Lado Oculto/Portal Vermelho

A surpreendente performance eleitoral de Jair Bolsonaro na primeira volta das eleições presidenciais do Brasil levanta numerosas interrogações. É surpreendentemente meteórica evolução das intenções de voto até chegar a arranhar a maioria absoluta. E não foi o atentado que lhe deu a possibilidade de ganhar na primeira volta. Vejamos: nos últimos dois anos as suas intenções de voto flutuaram em torno de 15%. Poderia ser considerado um “outsider”, não fossem os seus mais de 25 anos como deputado federal (nos quais só aprovou dois projectos). Trata-se apenas de um impostor astuto, nada mais.

No começo de Julho deste ano as intenções de voto em Bolsonaro eram de 17%; em 22 de Agosto, a Datafolha apresentou uma sondagem em que este número subia para 22%. Em 6 de Setembro sofreu o atentado e poucos dias depois as preferências de voto cresceram rapidamente até alcançar cerca de 24%; e apenas algumas semanas depois subiram para 26%. Em resumo: um módico aumento de 9 pontos percentuais entre o começo de Julho e meados de Setembro. Mas faltando poucos dias para as eleições as intenções de voto subiram para 41% e nas eleições ele obteve 46% dos votos válidos. Ou seja, praticamente duplicou o seu caudal eleitoral. Como explicar este irreversível crescimento de um personagem que durante quase 30 anos jamais havia saído do sótão da política brasileira?
Bolsonaro teve êxito em aparecer como o homem que pode restaurar a ordem num país que, segundo afirmam os porta-vozes do establishment, foi destruído pela corrupção e a demagogia instaurada pelos governos do PT (Partido dos Trabalhadores) e cujas sequelas são a insegurança pública, a criminalidade, o narcotráfico, os subornos, a revolta das minorias sexuais, a tolerância diante da homossexualidade e a degradação do papel da mulher, extraída dos seus papéis tradicionais.
O escândalo da Lava Jato e o desastroso governo de Michel Temer acentuaram os pontos mais negativos desta situação, que na percepção dos sectores mais conservadores da sociedade brasileira chegou a extremos inimagináveis.

“Incandescente mescla de pânico e ódio”

Num um país onde a ordem é um valor supremo – vale lembrar que a frase estampada na bandeira do Brasil é “Ordem e Progresso” – e que foi o último a abolir a escravatura no mundo, a “desordem” produzida pela corrupção de massas plebeias desata nas classes dominantes e nas classes médias subordinadas à sua hegemonia uma incandescente mescla de pânico e ódio, suficiente para fazê-las explodir em apoio de quem quer que seja percebido com as credenciais necessárias para restaurar a ordem subvertida. No deserto lunar da direita brasileira, que concorreu com seis candidatos à eleição presidencial e nenhum superou 5% dos votos, nada melhor que o inescrupuloso e transgressor Bolsonaro, capaz de infringir todas as normas políticas para executar esta tarefa de limpeza e remoção de legados políticos contestatórios.
O ex-capitão do Exército escolheu como companheiro de candidatura António Hamilton Mourão, um general afastado muito reaccionário, que apesar das suas origens indígenas acha necessário “branquear a raça” e não teve papas na língua para afirmar que “o Brasil está tomado por uma herança fruto da indolência dos indígenas e do espírito desonesto dos africanos”. Ambos são, de forma resumida, a reencarnação da ditadura militar de 1964, mas catapultada ao governo não pela prepotência das armas mas pela vontade de uma população envenenada pelos grandes meios de comunicação e que, até agora, faltando uma semana para a segunda volta, parece decidida a votar nos seus verdugos.
Ora bem, porque razão a burguesia brasileira se inclinou a favor de Bolsonaro? Algumas pistas para entender esta deriva são apresentadas por Marx numa brilhante passagem do livro “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte: “no meio desta confusão indizível e barulhenta de fusão, revisão, extensão dos poderes, constituição, conspiração, coligação, emigração, usurpação e revolução, o burguês, ofegante, grita como um louco por sua república parlamentar: ‘Antes um fim terrível do que terror sem fim’”.
Poucas analogias históricas podem ser mais esclarecedoras que esta para entender o súbito apoio das classes dominantes brasileiras – enfurecidas e espantadas pelo enfraquecimento de uma secular hierarquia social ancorada nos legados da escravatura e da Colónia – a um psicopata imprevisível como Bolsonaro. Ou, para entender o aumento da Bolsa de São Paulo logo após a sua vitória na primeira volta, e o júbilo da média canalha, encabeçada pela cadeia da Globo. Todo este bloqueio dominante suplicou, ofegante e como louco, que alguém viesse a dar fim a tanto descalabro. E aí está Bolsonaro.
E é como observa Antonio Gramsci numa uma célebre passagem dos seus Cadernos, em situações de “crises orgânicas”, quando se produz uma ruptura na articulação que existe entre as classes dominantes e seus representantes políticos e intelectuais (os já mencionados acima, nenhum dos quais obteve sequer 5% dos votos) a burguesia e as suas classes aliadas rapidamente abrem mão dos seus porta-vozes e operadores tradicionais e correm em busca de uma figura providencial que lhe permita sortear os desafios do momento.
“O caminho das tropas de muitos partidos sob a bandeira de um partido único que melhor representa e retoma os interesses e as necessidades da classe em seu conjunto” – observa o italiano – “é um fenómeno orgânico e normal, mesmo quando seu ritmo é rapidíssimo e quase fulminante por comparação aos tempos tranquilos do passado: isso representa a fusão de todo um grupo social (as classes dominantes) sob uma única direcção concebida como a única capaz de resolver um problema dominante existencial e barrar um perigo mortal”.

À procura de um messias

Isso foi precisamente o que ocorreu no Brasil, uma vez que suas classes dominantes comprovam a obsolescência das suas forças políticas e lideranças tradicionais, a bancarrota de Fernando Henrique Cardoso, Michel Temer, Aécio Neves, José Serra, José Sarney, Geraldo Alckmin e companhia, o que as levou à busca desesperada do providencial messias exigido para restaurar a ordem desequilibrada pela demagogia petista e a insubmissão das massas e que, por sua vez, vai lhes permitir ganhar tempo para se reorganizar politicamente e criar uma liderança política mais ao tom de suas necessidades sem o risco de imprevisibilidade inerente a Bolsonaro.
Mas toda essa movimentação, a segunda etapa do golpe institucional, cuja primeira fase foi a destituição de Dilma Rousseff, deveria culminar na detenção e condenação ilegal de Lula e sua proibição de ser candidato, única forma de frustrar seu retorno garantido ao Palácio do Planalto. O efeito combinado de uma justiça corrupta e os meios de comunicação cuja missão não é outra além de manipular e “formatar” a consciência do grande público garantiu este resultado e, sobretudo, o silêncio nas próprias filas de simpatizantes e militantes petistas, que só em escasso número se mobilizaram e tomaram as ruas para impedir a consumação desta manobra.

Justiça corrupta ao lado dos verdugos

A cumplicidade da justiça eleitoral num processo que tem grandes possibilidades de desembocar no destruição da democracia brasileira e na instauração de um novo tipo de ditadura militar é tão imensa como inocultável. Juízes e promotores, com a ajuda dos meios de comunicação, arrasaram os direitos políticos do ex-presidente, encerraram-no  física e mediaticamente no seu cárcere em Curitiba ao proibir que ele gravasse áudios e vídeos para a apoiar a candidatura Haddad-Manuela D’Ávila e inclusive vetaram a realização de uma entrevista que seria ancorada pela Folha de São Paulo. Em termos práticos, a justiça foi um braço a mais de Bolsonaro e os pedidos ou reclamações de seu comité de campanha em questão de horas eram convertidos em aberrantes decisões judiciais. Por isso a justiça, os meios e os legisladores corruptos que deram aval a todo este fraudulento processo são os verdugos que estão a ponto de destruir a frágil democracia brasileira, que em trinta e três anos não conseguiu emancipar-se da permanente chantagem da direita e seu instrumento militar.

O papel de Washington

Nem é preciso dizer que este perverso tripé reaccionário e bastião antidemocrático é convenientemente treinado e promovido pelos Estados Unidos através de numerosos programas de “boas práticas” onde se ensina aos juízes, promotores, legisladores e jornalistas da região a desempenhar as suas funções de maneira “apropriada”. No caso da Justiça, um de seus mais dedicados alunos é o juiz Sérgio Moro, que perpetrou um colossal retrocesso do direito moderno ao condenar Lula à prisão não por provas – que não tinha, como ele mesmo admitiu – mas por sua convicção de que o ex-presidente era culpado e tinha recebido um apartamento como parte de um suborno.
Condenação sem provas, fundamentada na convicção do juiz! A legião de jornalistas que mentem e difamam diariamente em todo o continente latino-americano também é treinada nos Estados Unidos para fazê-lo “profissionalmente”, o que é uma versão civil da tristemente célebre Escola das Américas. Se antes, durante décadas, se treinaram os militares latino-americanos para torturar, matar e fazer desaparecer cidadãos e cidadãs suspeitos de ser um perigo para a manutenção da ordem social vigente, hoje treinam-se juízes, promotores e “parajornalistas” (tão letais para as democracias como os “paramilitares”) para mentir, ocultar, difamar e destruir quem não se curve às ordens do império. O mesmo acontece com os legisladores, e em certa medida com os académicos.
Tudo isto revela a trama de uma gigantesca conspiração elaborada pela burguesia local, o imperialismo e seus personagens nos meios de comunicação e na politica, que vai desde a destituição ilegal de Dilma, passando pela não menos ilegal condenação de Lula até à emissão, há poucos dias, dos falsos certificados médicos que permitem ao medíocre Bolsonaro renunciar aos debates que, com certeza, o fariam perder muitos votos.

*Doutor em Ciências Políticas pela Universidade de Harvard (Estados Unidos); professor de Filosofia Política da Universidade de Buenos Aires

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