GUERRAS DO LÍTIO MOVEM A GEOPOLÍTICA
2019-11-26
Golpe de Estado na Bolívia, manobras políticas no Chile que contrariam os objectivos das manifestações populares, intriga política imperial na Austrália, guerras comerciais. Trata-se de acontecimentos que, normalmente, são lidos de forma autónoma com base em incidências locais ou regionais. Porém, não podem ser convenientemente interpretados se não forem observados à luz de manobras geopolíticas de carácter global relacionadas com um novo combustível estratégico, capaz de rivalizar em importância com o petróleo: o lítio. Sem ele não se fabricam as baterias para a indústria de veículos eléctricos, em explosão, e dos mais correntes gadets, a começar pelos telemóveis
F. William Engdahl, New Eastern Outlook/O Lado Oculto
Desde que, há alguns anos, o impulso global para desenvolver veículos eléctricos assumiu grande dimensão o elemento lítio passou a ser encarado como um metal estratégico. Actualmente a procura é enorme por parte da China, dos Estados Unidos e da União Europeia; a garantia do acesso ao lítio já criou a sua própria geopolítica, não muito diferente da que caracteriza o controlo do petróleo.
A China estabeleceu metas importantes para se transformar no maior produtor mundial de veículos eléctricos. O desenvolvimento de materiais para baterias de lítio tornou-se uma prioridade do 13º Plano Quinquenal (2016-2020). Embora o país tenha as suas próprias reservas de lítio, a produção é limitada e a China passou a garantir direitos de exploração mineira do lítio no exterior.
Na Austrália, a empresa chinesa Talison Lithium, controlada pelo grupo Tianqi, explora as maiores reservas mundiais de espomudena – mineral rico em lítio – em Greenbushes, na Austrália Ocidental, perto de Perth.
A Talison Lithium Inc. é a maior produtora de lítio primário do mundo. A exploração das minas de Greenbushes garante 75% das necessidades de lítio da China e cerca de 40% da procura mundial. O lítio e outras matérias-primas vitais existentes na Austrália, um país aliado dos Estados Unidos, tornou as relações com o parceiro australiano estratégicas para a China. Pequim transformou-se, deste modo, no maior parceiro comercial da Austrália.
No entanto, a crescente influência económica chinesa no Pacífico, em plena envolvente australiana, levou o primeiro-ministro de Camberra, Scott Morrison, a enviar uma mensagem a Pequim para não desafiar a região estratégica do “quintal da Austrália”. No final de 2017, devido a uma crescente preocupação com a expansão da influência chinesa na região, a Austrália reactivou a cooperação informal conhecida como “Quad”, envolvendo os Estados Unidos, a Índia e o Japão, retomando acções anteriores também relacionadas com o papel chinês no Pacífico Sul. A Austrália também intensificou recentemente os empréstimos a países estratégicos das ilhas do Pacífico Sul com o objectivo de combater a política chinesa de crédito. Estes desenvolvimentos tornaram essencial para Pequim a procura de outros locais no mundo para garantir o seu abastecimento de lítio, sempre com o objectivo de se tornar, na próxima década, um actor-chave da economia emergente dos veículos eléctricos.
A alternativa do Chile
À medida que o desenvolvimento de veículos eléctricos se tornou prioritário no planeamento económico chinês, Pequim voltou-se também para o Chile, outra importante fonte mundial de lítio. Neste país, a Tianqi da China está presente na Sociedad Quimica Y Minera (SQM), um das maiores produtoras à escala mundial. Se a Tianqi conseguir reforçar o controlo da SQM esse facto alterará a geopolítica do domínio mundial de lítio, de acordo com relatórios da indústria mineira.
O abastecimento global de minérios de lítio, elemento estratégico das baterias de iões de lítio usadas para alimentar veículos eléctricos, está concentrado em muito poucos países.
Para se ter ideia da procura potencial de lítio sublinha-se que as baterias do modelo S da Tesla requerem 63 quilos de carbonato de lítio, volume suficiente para alimentar aproximadamente dez mil baterias de telefones móveis. Num relatório recente, o banco Goldman Sachs qualificou o carbonato de lítio como a nova gasolina. Um simples aumento de 1% na produção de veículos eléctricos pode fazer crescer a procura de lítio em mais de 40% da produção global actual, ainda de acordo com o Goldman Sachs. Tendo em conta que cada vez mais governos exigem menores emissões de dióxido de carbono, a indústria automobilística global está a expandir massivamente os projectos de veículos eléctricos para a próxima década, o que tornará o lítio potencialmente tão estratégico como é hoje o petróleo.
A Arábia Saudita do lítio?
A Bolívia, onde o lítio tem uma exploração mais complexa, tornou-se, nos últimos anos, um alvo do interesse de vários países, entre eles também a China. Algumas estimativas geológicas consideram as reservas de lítio bolivianas as maiores do mundo. Calcula-se que o Salar de Uyuni, a 3500 metros de altitude, contenha nove milhões de toneladas de lítio.
A empresa mineira chinesa CAMC Engeneering Company opera desde 2015 uma grande fábrica na Bolívia para produção de cloreto de potássio como fertilizante. A actividade da CAMC abre caminho para as reservas de lítio que estão sob as camadas de cloreto de potássio nas salinas do Salar de Uyuni, uma das 22 explorações do género em território boliviano. A Linyi Dake Trade da China construiu em 2014 uma fábrica piloto de baterias de lítio no mesmo local. Esta medida foi ao encontro das condições para acordos de parceria estipuladas pelo governo deposto de Evo Morales, que exigiam que a exportação de lítio se verificasse com valor acrescentado, por exemplo na forma de baterias produzidas na Bolívia.
Em Fevereiro de 2019, o governo de Evo Morales assinou outro acordo sobre o lítio, este com o Xinjiang TBEA Group Co. da China, que deterá uma participação de 49% numa joint-venture projectada com a empresa estatal de lítio YLB da Bolívia. O acordo prevê a produção de lítio e outros materiais nos campos de sal de Coipasa e Pastos Grandes no calor de 2300 milhões de dólares.
Estes tipos de acordos correspondiam à forma como as administrações de Evo Morales defendiam as riquezas do país para usufruto da população.
Daí que o recente golpe de Estado na Bolívia, afastando Evo Morales e as suas estruturas de poder nacional, também esteja certamente relacionado com o crescente peso geoestratégico do lítio, ao qual as transnacionais ocidentais pretendem acesso sem restrições.
Em termos de lítio, a China tem dominado, até agora, o novo grande jogo global pelo seu controlo. Entidades chinesas dominam, neste momento, quase metade da produção global de lítio e 60% da capacidade de produção de baterias eléctricas. Segundo o Goldman Sachs, dentro de uma década a China poderá fornecer 60% dos veículos eléctricos de todo o mundo. Pequim olhou mais longe e mais cedo ao estabelecer o lítio como uma prioridade estratégica. Os competidores procuram agora minar-lhe as posições conquistadas.
Cerrada competição
O outro actor principal na exploração mundial de lítio são os Estados Unidos da América. A Albermale, uma empresa de Charlotte, Carolina do Norte, com um sonante Conselho de Administração tem importantes explorações na Austrália e no Chile, tal como a China. Em 2015, a Albermale tornou-se um peão dominante na exploração mineira mundial de lítio quando comprou a também norte-americana Rockwood Holdings. Uma empresa deste grupo, a Rockwood Lithium, desenvolvia operações no Chile, no Salar de Atacama e também nas minas de Greenbushes, na Austrália, onde os chineses da Tianqi controlam 51%. Neste momento, portanto, uma empresa chinesa e a norte-americana Albermale partilham e australiana Greenbushes numa proporção 51%-49%.
O que começa a ficar claro é que as tensões económicas e comerciais impostas pelos Estados Unidos à China também extravasam, muito provavelmente, para o combate à influência chinesa no controlo das principais reservas estratégicas de lítio. O golpe militar na Bolívia, que forçou Evo Morales ao exílio mexicano, tem claras impressões digitais de Washington. A entrada em funções da “presidente interina” Jeanine Añez, uma fundamentalista cristã, e a influência do milionário fascista Luis Fernando Camacho, representam uma viragem apoiada abertamente por Washington. Uma das questões cruciais que se levantam a curto prazo é saber se os novos dirigentes avançam para a anulação dos acordos de exploração de lítio por empresas chinesas.
Também o cancelamento da reunião da Cooperação Económica Ásia-Pacífico (APEC), marcada para 16 de Novembro no Chile, pode ter importante significado nesta luta cerrada.
A reunião deveria proporcionar uma cimeira comercial entre Donald Trump e Xi Jinping e também, segundo o South Morning Post, a assinatura de grandes acordos comerciais entre a China e o Chile. A delegação chinesa chefiada pelo próprio presidente incluiria 150 chefes de empresas e projectos para assinar acordos económicos que iriam estreitar ainda mais os laços económicos entre o Chile e a China, situação contra a qual os Estados Unidos têm vindo a pronunciar-se e a actuar.
O cancelamento da cimeira da APEC foi um dos efeitos perversos decorrentes das gigantescas manifestações populares de massas contra as consequências da política económica e social herdada da ditadura de Pinochet. Não é de excluir, entretanto, que os Estados Unidos estejam a manobrar a fundo, no quadro das soluções políticas que vão emergindo à margem dos objectivos dos protestos populares, de modo a que sejam menos fluidos os laços económicos entre Pequim e Santiago do Chile. As importantes explorações de lítio que a China mantém no Chile são alvos que estão na mira das guerras comerciais provocadas por Washington. Claramente, os Estados Unidos não vêem com bons olhos as boas relações entre o presidente chileno, Sebastián Piñera, e os interesses económicos chineses, pelo que a substituição do chefe de Estado chileno seria do agrado dos dirigentes norte-americanos.
O que, em todos estes campos, tem uma meridiana clareza é o facto de existir uma batalha global pelo domínio do mercado de baterias para veículos eléctricos, no centro da qual está o controlo das fontes de lítio