O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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UM NARCOESTADO NA NATO E ÀS PORTAS DA UE

2019-06-13

A Albânia é um Estado membro da NATO e está às portas da União Europeia, na sua cruzada para combater a “ameaça russa” nos Balcãs. Nada disto parece preocupar Bruxelas; porém a elite política albanesa é patrocinada por grandes bandos de traficantes, as eleições são acontecimentos fraudulentos a cargo da Mafia albanesa.E o Kosovo ali tão perto, seguindo o mesmo caminho sob tutela da NATO, da União Europeia e da Albânia. Eis uma história dos nossos dias e que faz pensar.

Monty Reed, com Alfredo Affazi, Vice News; Adaptação O Lado Oculto

É Janeiro num subúrbio decadente de Tirana, capital da Albânia, onde encontrei dois traficantes de cocaína locais que acabaram de chegar de uma viagem de contrabando à Alemanha. Como muitos bandos de jovens traficantes na Albânia, Artan e Luli passaram do haxixe para a cocaína, porque dá mais dinheiro e é mais fácil de conseguir. Dizem que fazem cerca de 23 mil euros contrabandeando um quilo de pó para países europeus mais ricos, onde o mercado da cocaína está em expansão. 

Entre conversas sobre boxe e tacos de beisebol, discutem relógios Rolex, carros velozes e mulheres. “Como pode ver”, diz Artan apontando para a rua inundada e que nunca teve obras desde que se lembram, “se quiser sair daqui ou conseguir alguma coisa por aqui tem de fazer as viagens à Alemanha, Itália ou Inglaterra. Cocaína é um trabalho como qualquer outro”.

Desde que a crise financeira nos anos noventa levou a destituição generalizada do poder e ao caos civil, as novas gerações de albaneses estão presas numa rede de pobreza e corrupção. Para alguns, o tráfico de drogas oferece uma rota de fuga das favelas que preenchem os arredores de Tirana. Mas o tráfico não é novidade aqui; é um comércio que tem raízes profundas na nação. Apesar de ser um país da NATO, e prestes a juntar-se à União Europeia, a Albânia tornou-se o primeiro narcoestado da Europa. 

Segundo a definição do Fundo Monetário Internacional, narcoestado é um Estado “onde todas as instituições legítimas foram infiltradas pelo poder e dinheiro do tráfico de drogas ilegais”. A Albânia está inundada até ao pescoço em dinheiro de drogas. 

Em 2018, o Departamento de Estado norte-americano descreveu a Albânia como um lar de “corrupção desenfreada, instituições legais e governamentais fracas e pouco controlo de fronteiras”; tráfico de drogas, sonegação de impostos, contrabando e tráfico de seres humanos são os crimes mais lucrativos do país. As drogas são aqui um grande negócio. 

O maior produtor de cannabis

Esse pequeno país montanhoso na costa do Adriático anteriormente submetido ao “comunismo albanês” é o maior produtor de cannabis ilegal da Europa. Em 2017, a polícia albanesa apreendeu 68 toneladas de haxixe, com um valor de rua de cerca 680 milhões de dólares. Mas é a cocaína que eleva a Albânia para o patamar de narcoestado. Na última década, bandos albaneses como o Hellbanianz tornaram-se grandes figuras no lucrativo comércio de cocaína no Reino Unido e no resto da Europa. Gangs albaneses ganharam fama vendendo cocaína altamente pura a preços competitivos, e vêm contribuindo para o aumento da oferta e da pureza da cocaína na Europa desde 2012. 

Contrabandistas albaneses estabeleceram redes de fornecimento da América do Sul até aos portos da Europa que mais recebem cocaína na Bélgica e na Holanda. Em Fevereiro de 2018, a polícia apreendeu 613 quilos de cocaína escondidos num carregamento de bananas da Colômbia que chegava ao porto albanês de Durres. Simultaneamente, registou-se um aumento de assassínios de alegados criminosos de origem albanesa na América do Sul. Em 2017, Remzi Azemi, um albanês e suposto traficante de cocaína, foi morto numa emboscada ao estilo dos cartéis quando viajava com a família num carro blindado em Guayaqil, Equador. Um ano antes, Ilir Hidr, outro albanês suspeito de envolvimento no tráfico de drogas, foi assassinado na mesma cidade. 

A Albânia é um país da Europa onde os barões da droga não são renegados foras-de-lei. Estão são próximos de pessoas do governo do país e muitas vezes estão conluiados com as mesmas autoridades que deveriam persegui-los. 

Um “incentivo” político

Dinheiro do tráfico é uma parte essencial do sistema democrático albanês, porque a melhor maneira de assegurar o voto das pessoas é pagar-lhes em dinheiro vivo e o melhor gerador de dinheiro é o comércio de drogas. Um estudo financiado pela União Europeia entre 2016 e 2019 apurou que 20,7% dos albaneses já tinham recebido ofertas de dinheiro ou favores em troca de votos. Em Janeiro de 2018, foi revelado que bandos da cocaína conseguiram agir de modo fraudulento nas eleições comprando votos. Afrim Krasniqi, chefe do Instituto de Estudos Políticos da Albânia, disse que o papel dos gangs criminosos na campanha das eleições de 2017 foi mais importante que o papel dos partidos políticos. “Hoje existe uma impressão geral de que ninguém ganha eleições sem apoio desses grupos”, disse.

Como o comércio de drogas está muito emaranhado com o poder, unidades da inteligência britânica foram mobilizadas para Tirana com o objectivo de monitorizar os traficantes. Um membro britânico dessas equipas disse que estão em poder de provas claras de informações partilhadas directamente com os traficantes pela própria polícia albanesa. Os britânicos estão a trabalhar com equipas dos Estados Unidos, Holanda e Itália, que decidiram envolver-se depois de descobrir que informação por eles partilhada com as autoridades albanesas acabava nas mãos erradas. 

Os últimos dois ministros do interior do primeiro-ministro albanês Edi Rama, do Partido Socialista e membro da Internacional Socialista, envolveram-se em escândalos de ligação com o tráfico. O primeiro, Saimir Tahiri, foi processado por acusações de tráfico de drogas e corrupção. O nome de Tahiri foi mencionado em escutas telefónicas da polícia italiana em ligação com subornos, tráfico de cannabis e contrabando de armas Kalashnikov. Tahiri nega todas as acusações. Foi substituído por Fatmir Xhafaj, cujo curto período como ministro do Interior acabou em 2018, depois de o seu meio-irmão Agron ter sido condenado a sete anos de prisão por tráfico em Itália. Apesar de não haver evidências de que Xhafaj estava diretamente envolvido nos crimes do irmão, a pressão política doméstica e internacional provavelmente fizeram Rama demitir seu ministro. 

Em 2017, Ermal Hoxha foi condenado a dez anos de cadeia pela participação numa operação para traficar 120 quilos de cocaína da América Latina para a Europa Ocidental. Mas Ermal não subiu as escadas do crime a partir de uma favela albanesa; é neto do histórico dirigente do “comunismo albanês” Enver Hoxha, que esteve 41 anos no poder até à sua morte, em 1985. 

O paradigma de Balili

Nenhum homem, porém, ilustra melhor a proximidade da elite albanesa com os mandantes do tráfico ou a história de como a nação acabou por se transformar no primeiro narcoestado da Europa do que Klement Balili, um proprietário de hotéis de luxo, ex-servidor público e barão da droga, descrito no seu mandado de prisão grego como o “Pablo Escobar dos Balcãs”. Um dossier de 10 mil páginas compilado pelo governo grego descreve seu império transnacional de narcóticos, meticulosamente organizado e no valor de mil milhões de dólares, construído sobre cannabis e cocaína canalizadas para países como Itália, Grécia, Alemanha e Reino Unido. 

Balili construiu seu império no clima sem lei da Albânia pós-colapso económico dos anos noventa, provocado pela queda de grandes esquemas de pirâmide apoiados pelo governo. Cerca de mil a dois mil milhões de dólares desapareceram da noite para o dia e famílias comuns perderam todas as suas economias. Segundo um relatório de 2016 da Open Society Foundation, uma mistura de elevadíssimo desemprego e salários baixos fez com que os bandos albaneses se expandissem exponencialmente desde então. 

Oficialmente, os negócios de Balili eram os transportes, lazer, pesca e segurança. Em 2014, foi nomeado director regional de transportes da cidade costeira de Saranda, um conhecido ponto de tráfico de drogas. Na última década, Balili construiu vários hotéis de luxo na costa do Adriático na Albânia. 

Em 2015, Ilir Meta, atual presidente albanês, cortou a fita na inauguração do hotel de cinco estrelas de Balili, o Santa Quaranta. Com Meta e Balili na inauguração estiveram o então ministro das finanças, Arben Ahmetaj, e o parlamentar do Partido Socialista Koco Kokëdhima. 

O próprio Balili é directo quanto aos seus laços com um dos principais partidos políticos da Albânia, o Movimento Socialista para Integração, ou LSI. Numa entrevista no começo de 2019, Balili explicou que sua nomeação como diretor de transportes na cidade de Saranda foi garantida em troca de doações financeiras dele e da sua família para o LSI. O sobrinho de Balili é presidente da câmara pelo LSI na cidade de Delvina. Balili já deixou claro que se interessa muito pela carreira do sobrinho. 

A polícia grega está atrás de Balili há uma década. Mas sempre que parecia fazer algum progresso deparava com obstáculos levantados pelas autoridades albanesas. Em Maio de 2016 a polícia grega prendeu 12 membros do gang de Balili e apreendeu quase 700 quilos de haxixe, resultado de uma operação de vigilância de dois anos em colaboração com a DEA, agência norte-americana anti-narcóticos. A polícia grega emitiu um mandado de prisão para Balili, mas a polícia albanesa recusou-se a reconhecer que recebera esse mandado. Quando as autoridades finalmente reconheceram o mandado, Balili tinha “desaparecido”, segundo a polícia albanesa. 

Três meses depois da emissão do mandado de prisão, Balili foi fotografado numa festa com um oficial de alto escalão da polícia no seu iate na costa albanesa. Esta não foi uma ocorrência única: na época, o rosto sorridente de Balili aparecia regularmente em gravações e fotos de telemóveis tiradas em eventos sociais da elite política da Albânia. 

A proximidade de Balili com a base do poder político, segundo oficiais norte-americanos e gregos, é a chave do seu sucesso como grande contrabandista de drogas. Num pronunciamento contundente em 2016, o embaixador americano na Albânia, Donald Lu, disse: “Políticos da direita e socialistas escutam os interesses poderosos de empresários corruptos, criminosos e até traficantes de drogas. De que outra maneira podemos explicar que o intocável traficante Klement Balili continue livre?” Num discurso de 2018, Lu disse que o maior fracasso do governo albanês durante o mandato de quatro anos foi a incapacidade de prender Balili, que ele descreveu como “um poderoso líder do crime organizado com fortes conexões políticas”. 

A prisão…

Em Janeiro deste ano a polícia albanesa finalmente prendeu Balili. Alguns interpretaram a sua prisão e julgamento mais como um exercício de relações-públicas do que uma punição. O governo albanês exaltou a prisão como um grande golpe no crime organizado, sobretudo para impressionar observadores internacionais. Mas, na realidade, foi Balili quem ditou as regras. O Ministério do Interior e o Gabinete da Procuradoria para Crimes Graves foram notificados da chegada de Balili com antecedência pela sua equipa de advogados. Depois, ele próprio entregou-se ao diretor-geral da polícia albanesa. Devido a uma alteração constitucional efectuada no ano passado, Balili não foi extraditado para a Grécia e sim julgado na Albânia. 

Em Fevereiro, o Tribunal de Crimes Graves aceitou o pedido de Balili para um “julgamento sumário”, que não só garantiu a redução da sentença para um terço, mas também assegurou o seu silêncio sobre o que sabe da elite política albanesa. 

Em 7 de Maio, Balili foi sentenciado a 10 anos por tráfico de drogas, associação criminosa e lavagem de dinheiro. O seu advogado já informou que vai apelar. Muitas figuras albanesas lembram que já viram acusações ou condenações por crimes de corrupção desaparecerem misteriosamente durante os recursos. Balili pode acabar inocentado ou receber uma redução de pena.

“Trouxe dinheiro à comunidade” 

Vários empresários que trabalharam com Balili em projectos de construção, incluindo o Santa Quaranta, expressaram simpatia por ele. “Não sei o que Klement fez, ou se o que dizem é verdade...mas Klement trouxe dinheiro para nossa comunidade”, disse uma pessoa que pediu para permanecer no anonimato por receio de Balili. “Tinha muitos projetos de construção, e trabalhámos com ele durante muitos anos. O dinheiro foi pago, a comunidade respeitava-o, ele era um empresário, não um chefe poderoso.”

Outro jovem construtor não concorda. “Ele pagava quando queria, e quando não queria não havia nada que o fizesse pagar”, disse. “Ele é dono da polícia, dos tribunais, dos gabinetes de impostos... Se ele não tivesse pago uma conta e eu o lembrasse nem quero pensar no que teria acontecido. Conhece e controla tudo e todos. Iria esmagar-me como uma beata de cigarro.”

À primeira vista, Tirana é uma cidade em crescimento, com uma cultura alegre de cafés e uma vida nocturna agitada. Muito dinheiro está a ser investido para embelezar os arredores imediatos dos dois hotéis internacionais onde diplomatas, empresários estrangeiros e políticos se encontram para comer petiscos e falar de negócios. Apesar de Tirana concentrar a maioria da população albanesa, os pobres habitam os subúrbios poluídos da capital, onde as casas não têm eletricidade, água canalizada e vidros nas janelas. 

A zona central de Tirana designada Blokku (“o Bloco”), reservada exclusivamente a dirigentes do Partido Comunista até ao colapso do regime em 1992, é agora um centro de convívio da elite albanesa. No Blokku, os moradores são políticos, juízes ou gente que sabe como vender cocaína. Mercedes-Benz circulam por ruas de bares iluminados como tubarões-tigre. Nesses bares, parlamentares e empresários bebem champanhe. São tagarelas animados e muitas vezes a um passo apenas da falência. Apesar das taxas de homicídio não chegarem, nem por sombras, aos níveis da América do Sul e Central há sempre a possibilidade de alguém ainda sacar de uma pistola numa festa de aniversário e disparar, simplesmente porque pode.

O preço a pagar pelos albaneses

Mas o êxito dos bandos albaneses de contrabando de drogas teve custos para os cidadãos do país, que foram abandonados para nadar ou afogar-se no lamaçal. Numa sondagem da Gallup de 2018 realizada junto de albaneses adultos apurou-se que o país é o quarto mais forte no desejo de emigrar  – apenas superado pelo Haiti, Libéria e Serra Leoa. Os jovens encontram pela primeira vez a corrupção na escola, na forma de suborno aos professores para conseguir boas notas. Depois vem a universidade, onde a entrada depende de pagamentos por baixo da mesa, ou de um amigo bem colocado no escalão político ou num partido governamental.

Rudina Hajdari, líder da oposição no parlamento albanês e Presidente do Comité de Integração Europeia, disse: “Os jovens albaneses sentem-se enganados pelo governo. Temos problemas alarmantes com a corrupção. Quando as drogas entraram na paisagem, a quantidade de dinheiro envolvido perturbou a cotação de moedas internacionais. O dinheiro dita as decisões no nosso país, e como esse dinheiro é fornecido por cartéis de droga – a políticos individuais e partidos – qualquer pessoa lutando contra a corrupção depara-se com grandes obstáculos”.

A estranha posição de Bruxelas

A Albânia tem merecido receptividade das instâncias europeias de Bruxelas, mas não conta ainda com a unanimidade dos Estados membros para a integração. França e Holanda, por exemplo, vêem os gangs albaneses como uma ameaça tão séria que estão a tentar suspender as viagens sem visto para cidadãos albaneses. O governo holandês baseou o seu pedido de suspensão na possibilidade de “um aumento substancial de actividades criminosas da Máfia Albanesa na Holanda e de as organizações criminosas abusarem ainda mais das viagens sem visto pela Europa… expandindo ainda mais as suas redes de contrabando”. 

O primeiro-ministro Rama, ex-jogador de basquetebol que conseguiu seu mandato em 2013 com uma campanha anticorrupção de linha-dura, foi aplaudido pela comunidade internacional quando esmagou uma importante aldeia de cultivo de cannabis chamada Lazarat. Ainda assim, tem tido dificuldades em escapar a acusações de fraude e corrupção. Os detractores consideram que a sua demissão facilitaria a integração na UE.

A posição central da Albânia no tráfico de droga parece não ser um problema para as autoridades da União Europeia, segundo se deduz do último relatório elaborado no âmbito da alta representante da Política Externa e de Segurança, que registou uma evolução positiva na situação.

Porém, há uma realidade que nem a boa vontade de Bruxelas, na sua cruzada para combater “a ameaça russa” no Balcãs, consegue esconder. A coisa mais trágica que resulta de um narcoestado é o facto de a elite da nação ser financiada por actividades criminosas. O impacto desta tragédia não se mede nas relações com terras distantes mas sim pela escassez de oportunidades que são proporcionadas ao próprio povo.


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