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A MORTE DO ESTADO DE DIREITO NO BRASIL

Jair Bolsonaro e o seu ministro, ex-juiz, Sérgio Moro: da politização da justiça à judiciarização da política, o fim do Estado de Direito

2019-02-11

Alexandre Weffort, especial para O Lado Oculto

As notícias sobre o Brasil veiculadas pelos media instituídos e pelas redes sociais trouxeram novamente a questão da “lawfare” (conceito que se aplica quando a lei é usada como arma contra o adversário). Na realidade brasileira jurídica, a 'lawfare' institucionalizou-se através da “Operação Lava Jato”, tendo como protagonista o então juiz de 1ª instância e actual ministro da Justiça Sérgio Moro.

Corrupção sistémica

Na sequência de investigações a processos de corrupção envolvendo grandes interesses económicos, definiram-se alvos claramente políticos. O PT (Partido dos Trabalhadores) tornou-se o primeiro alvo. E o caso mais relevante de “lawfare” é o do ex-presidente Lula da Silva, preso em Curitiba, na sequência de processo marcadamente político.
Todavia, casos envolvendo outros partidos, como o MDB (Movimento Democrático Brasileiro) e o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira), foram colocados em choque com o poder judicial por meio de processos envolvendo o ex-deputado Eduardo Cunha (que foi presidente do Congresso, até à sua prisão) ou do ex-senador Aécio Neves (candidato do PSDB à presidência, que perdeu em 2014 para Dilma Rousseff). O PSDB foi o partido que assumiu o papel central no impeachment e colocou Michel Temer como presidente interino. Agora, Temer vê-se a braços com processos judiciais, indiciado de corrupção.
A lista de nomes da “classe política” brasileira investigada em crimes de corrupção é extensa. A sombra da corrupção também atinge os partidos que fizeram da luta contra a corrupção a sua bandeira política. Os processos que, nas últimas semanas, surgiram envolvendo o “clã Bolsonaro” mostram à evidência o caracter sistémico da corrupção.

A partidarização da Justiça

Ao longo dos últimos anos, a judicialização da vida política brasileira traduziu-se na equivalente politização da justiça. A separação dos poderes foi comprometida e, com ela, a essência do Estado de Direito. Esse processo de contaminação foi sentido ao mais alto nível do sistema jurídico, no STF (Supremo Tribunal Federal). Alguns dos ministros do STF foram presença assídua nos media, manifestando opiniões de ordem política, criticando abertamente os seus pares em relação a processos em curso (como foi flagrante no processo de impeachment). Neste âmbito, sobressai o ministro Gilmar Mendes.
Aquando do processo de impeachment, promovido pelo PSDB e PMDB (actual MDB), contra o governo de Dilma Rousseff, as intervenções públicas de Gilmar Mendes foram sempre aproveitadas politicamente para fundamentar os ataques ao PT. Ao mesmo tempo, nomes ligados ao PSDB apareciam como que protegidos.
A fórmula apresentava-se eficaz. Os processos ficavam intermináveis e, uso frequente, os “pedidos de vista” (fórmula em que um juiz reivindica tempo para melhor apreciação, cativando o processo sem prazo de retorno) foram sendo entendidos como recursos que aproveitavam ao interesse de uma ou outra parte.
Também as decisões monocráticas (vistas como a favor de um ou outro visado) remeteram a imagem da justiça como sendo, cada vez mais, parcial e ao sabor de interesses ou simpatias políticas. O “direito” foi virado do avesso e isso também conduziu ao actual estado de coisas no Brasil, hoje dominado pelas forças políticas mais agressivas e conservadoras.

Bolsonaro e a hegemonia do poder pela ultra-direita

A eleição de Bolsonaro foi o culminar de um processo de conquista do poder pela direita. Conquistado o topo do poder administrativo (o governo federal), a direita tratou de consolidar a sua posição no poder legislativo com a recondução de Rodrigo Maia na presidência do Congresso e a eleição de Davi Alcolumbre para a presidência do Senado. Mas não foi ainda uma posse integral. Faltava ao PSL (Partido Social Liberal) de Bolsonaro força e capacidade para assumir totalmente o poder.
O propósito de conquista foi prejudicado pelo envolvimento do nome de Flávio Bolsonaro, eleito senador pelo PSL, em investigações que ligam a ultra-direita ao crime organizado (através dos milicianos – organizações paramilitares acusadas de assassinato de opositores políticos, entre outros crimes) e à corrupção, da qual surgiram indícios por via da movimentação não justificada de avultadas somas (colocando em questão o notório enriquecimento do património familiar do clã bolsonariano). Ingenuidade ou pressa, somou-se a estes "desaires" a forma despudorada como o novo senador do PSL procurou 'blindar' a sua posição através do recurso ao foro privilegiado, junto do STF (algo que lhe foi negado).
É neste quadro que surgem e ganham sentido as notícias envolvendo o nome de Gilmar Mendes, ministro do STF, em processos de averiguações movidos pela Receita Federal, indiciando a existência de movimentações financeiras suspeitas. A essas averiguações, tornadas do conhecimento público, o ministro do STF reage ao que considera ser uma estratégia de ataque à sua reputação, em inquirição de viés de investigação criminal, realizada à margem das regras legais (1).

O “lawfare” dirigido ao próprio poder judiciário

Segundo alguns media brasileiros, a força de Gilmar Mendes foi posta à prova, num primeiro passo de uma estratégia de extensão à cúpula do poder judicial da hegemonia da direita, neste caso da ultra-direita bolsonariana. O processo segue o figurino de contaminação política do poder judicial e seu inverso, de judicialização da política. E ensaiará o seu próximo passo através de uma CPI (comissão parlamentar de inquérito) ao poder judiciário, nomeadamente ao STF, já apelidada de “Lava Toga” (2).
Mas, se as inquietações políticas em relação ao comportamento do poder judicial refletem as inúmeras situações em que a decisão ou “não decisão” jurídica sugerem o viés político de que enfermam – como demonstra o caso da negação a Lula da Silva do direito de acompanhamento do funeral do seu irmão Genival, recentemente falecido, e a decisão vexante do presidente do STF de somente permitir o encontro do ex-presidente com os seus familiares no interior de um quartel, sugerindo até o absurdo de para lá se levar o corpo do falecido irmão (algo que Lula, dignamente, recusou) – esse viés manifesta-se também na forma especial como são tratados os processos de políticos, quando relacionados com a oligarquia, algo que foi por vezes apontado em relação a Gilmar Mendes, colocando-o em colisão com a dinâmica da Operação Lava Jato (3).

A destruição do Estado de Direito

O novo episódio político-jurídico (a CPI “Lava Toga”) surge nos media como pano de fundo da questão que envolve o referido ministro do STF, mas cruza-se também com algumas das suas atribuições específicas, nomeadamente do papel que, como juiz, desempenha no processo de investigação ao ex-assessor de Flávio Bolsonaro, investigação que decorre no âmbito da Operação “Lava Jato”. Daí que, o que aparece como passo político, de avanço sobre o STF, possa ser um episódio de guerra suja, onde uma investigação iniciada nos escalões inferiores do sistema (no caso, da Receita Federal) se torna instrumento de pressão directa sobre o nível institucional mais alto do poder judiciário, o STF (4). Em qualquer caso, um episódio mais do caminho de hegemonia da ultra-direita brasileira, propondo-se conquistar o último dos três poderes que enformam o Estado de Direito, destruindo-o.
Segundo relatam os media, o «documento [da Receita Federal] afirma que o suposto crime de tráfico de influência atribuído a Gilmar Mendes e sua mulher “normalmente se dá pelo julgamento de acções advocatícias de escritórios ligados ao contribuinte e seus parentes, onde o magistrado ou um de seus pares facilita julgamento”» (5).
Na sua reacção indignada, depois de criticar a actuação da Receita Federal, que considerou ter sido transformada «num organismo de pistolagem de juízes e promotores», pergunta Gilmar Mendes: «se eles fazem isso com ministro do STF, o que não estarão fazendo com o cidadão comum?» (6).

A luta continua: "Lula Livre" é a consigna

A técnica da devassa e da condenação sumária na opinião pública continua, usada fartamente como ferramenta para o golpe que derrubou Dilma Rousseff e prosseguiu com a prisão de Lula da Silva. O ministro do STF experimentou agora um pouco da estratégia repressiva com que os activistas e militantes dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais se confrontam quotidianamente.
Como no célebre poema atribuído a Bertold Brecht, primeiro perseguiram os dirigentes da esquerda e o STF não se importou. Agora tomam como alvo um ministro do STF... A existência de um Estado autoritário no Brasil, de orientação fascizante, começa a evidenciar-se até para aqueles que, num passado recente, contribuíram para que o país escorregasse por esse caminho.

É também neste cenário que a consigna «Lula Livre» assume especial relevância política: «um grupo de entidades nacionais e personalidades criaram o “Comitê de Solidariedade Internacional em Defesa de Lula e da Democracia no Brasil” (...) O Comitê conta com participação ampla e plural para reforçar as iniciativas já existentes no Brasil e no exterior em defesa da restauração da democracia no nosso país...» (7). Como instrumento de luta, o Comité lançou a proposta de atribuição do Prêmio Nobel da Paz para Lula.

Referências

(1) https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/02/08/documento-da-receita-aponta-suposta-fraude-de-gilmar-mendes-ministro-pede-providencias-a-toffoli.ghtml
(2) https://exame.abril.com.br/brasil/lava-toga-senador-protocola-pedido-de-cpi-para-investigar-o-judiciario/
(3)https://www.em.com.br/app/noticia/politica/2018/06/10/interna_politica,965752/liberdade-investigados-lava-jato-gilmar-mendes-em-centro-de-debate.shtml
(4) https://painel.blogfolha.uol.com.br/2019/02/09/ofensiva-da-receita-sobre-gilmar-amplia-em-ministros-sensacao-de-cerco-ao-supremo/
(5) https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/02/08/documento-da-receita-aponta-suposta-fraude-de-gilmar-mendes-ministro-pede-providencias-a-toffoli.ghtml
(6) https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/receita-nao-pode-ser-convertida-numa-gestapo-afirma-gilmar/
(7) https://comitelulalivre.org/quem-somos/


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