O TERRORISMO DA NATO NO SEU ESPLENDOR
2021-04-17
José Goulão, exclusivo O Lado Oculto/AbrilAbril
Em Março de 2011, quando a NATO já bombardeava a Líbia, Muammar Khaddafi enviou uma mensagem ao presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, lembrando que as forças de segurança do seu país estavam “a combater a al-Qaida no Magrebe islâmico, nada mais”, pelo que a intervenção estrangeira “era um risco de consequências incalculáveis no Mediterrâneo e na Europa”. O apelo do dirigente líbio não surtiu efeito: afinal, para as forças atlantistas a operação não era “um risco” mas sim uma estratégia deliberada – para todos os efeitos, uma estratégia terrorista.
A Líbia de hoje, moldada pela NATO sob o comando de Obama, Joseph Biden, presidente dos Estados Unidos em funções, e Hillary Clinton, um suporte da actual administração norte-americana omnipresente nos bastidores, é uma amostra em carne viva das práticas efectivamente terroristas da Aliança Atlântica. Um país desgovernado, desmembrado, um viveiro de mercenários terroristas “islâmicos” sob múltiplas chancelas que deixam os seus rastos de horrores através do Médio Oriente e África, da Síria a Cabo Delgado, em Moçambique; um país que funciona como um florescente entreposto de comércio de drogas, tráfico de seres humanos, um maná de petróleo de alta qualidade para as multinacionais francesas, britânicas e norte-americanas e, simultaneamente, um imenso campo de concentração para refugiados de incontáveis origens sustentado pelos contribuintes da União Europeia.
Não existem indícios de que a situação tenda a melhorar. Negoceia-se apenas para negociar e para dar cobertura às actividades criminosas e desumanas instauradas na esteira da operação da NATO. O “governo” de Tripoli foi entregue à Irmandade Muçulmana sob tutela da ONU, isto é, dos Estados Unidos; o “governo de Benghazi” é um instrumento do “general” Khalifa Haftar, reconhecidamente um activo da CIA desde que desertou das hostes de Khaddafi; pelo meio campeiam os poderes de milícias “islâmicas” e estruturas sectárias de índole tribal vivendo de uma rica panóplia de negócios criminosos que vão desde a guerra aos tráficos de droga e humano passando pelo contrabando de petróleo e pela multiplicação de “guardas costeiras” patrocinadas directa e indirectamente pela União Europeia – braços dos grupos que controlam o tráfico de refugidos.
A situação caótica alimenta-se a si própria; com ela convive tranquilamente o chamado “mundo civilizado”, que realmente em nada contribui para tentar resolvê-la.
A mensagem de Khaddafi para Obama só podia ter o destino que teve porque aqueles que foram destruir a Líbia não tinham “riscos” a medir mas uma estratégia a cumprir. E esta continua à vista de todos: terrorista e colonial.
“… E ele morreu”
“Chegámos, vimos e ele morreu”, proclamou imperialmente Hillary Clinton, então secretária de Estado de Obama, após o desfecho da bárbara operação de tortura e execução de Muammar Khaddafi, supervisionada pelos serviços secretos franceses. O presidente francês em exercício, Nicolas Sarkozy, era dos mais interessados em silenciar o dirigente líbio, sobretudo depois de ter deflagrado o escândalo dos apoios milionários de Khaddafi à sua eleição.
Não houve qualquer “intervenção humanitária” na Líbia, ao contrário do que foi invocado pelos agressores. Nem o Congresso dos Estados Unidos deu autorização ao presidente para realizar os bombardeamentos, alegando que Obama não apresentou qualquer razão que os justificasse.
A violência na Cirenaica invocada sobretudo pelo Departamento de Estado norte-americano para desencadear a “Responsability to Protect (R2P)”, a suposta responsabilidade de proteger populações civis através de operações armadas, foi empolada para provocar a agressão. Os próprios e-mails de e para Hillary Clinton, em boa hora tornados públicos pelo website WikiLeaks – uma das principais razões da sanha persecutória contra Julian Assange -, reconhecem isso mesmo. Duas semanas antes de iniciados os bombardeamentos, uma enviada da USAID, Harriet Spanos, comunicou a Clinton que “Benghazi tem estado calma nos últimos dias, a actividade económica continua, lojas e bancos estão abertos, os telemóveis funcionam e a internet regressou”.
As supostas urgências “humanitárias” funcionaram, mais uma vez, como pretextos para desencadear uma guerra e provocar uma mudança de regime programada alguns anos antes. Em 2 de Março de 2007, um ex-comandante da NATO, o general norte-americano Wesley Clark, enunciou os sete países “a desmantelar” pelos Estados Unidos: Iraque, Líbia, Síria, Irão, Somália, Sudão e Líbano. Mais tarde sublinhou: “a invasão da Líbia por Obama foi planeada na administração Bush; a Síria é a seguir”. O general sabia do que falava; e ainda hoje nos ajuda a perceber o que está a acontecer com o Irão e o Líbano.
Os preciosos e-mails de e para Clinton confirmam, por outro lado, que a inclusão de hordas de mercenários “islâmicos” no dispositivo operacional da NATO para desmantelamento da Líbia foi uma opção estratégica idêntica à assumida noutros teatros de operações, como por exemplo na Síria e no Iraque, embora de maneira menos assumida.
Numa mensagem de correio electrónico enviada a Hillary Clinton dedicada à necessidade de “estabelecer a segurança no Norte de África”, Sidney Blumenthal, conselheiro da secretária de Estado, assume “que o regime de Khaddafi tem tido êxito em suprir a ameaça jihadista na Líbia, pelo que a situação actual (aliança da NATO com o terrorismo islâmico) abre a porta ao ressurgimento do jihadismo”.
No aparelho político dos Estados Unidos e da NATO havia, portanto, uma noção real das relações de forças, pelo que a aliança operacional com o terrorismo islâmico foi deliberada e transformada numa estratégia que não funcionou apenas no cenário líbio.
Uma questão de urgência
A agressão contra a Líbia foi uma operação de mudança de regime de certa maneira atípica e ditada por urgências que não se registaram noutros casos em que foi dispensada uma tão evidente – e comprometedora – intervenção massiva e continuada de forças aéreas da NATO.
O ano de 2011 seria o do início da criação de mecanismos económicos e monetários de índole especificamente africana, como por exemplo o Fundo Monetário Africano e uma moeda pan-africana que permitiria, por exemplo, contornar o dólar em relações comerciais, designadamente no campo energético.
Essas acções que minariam a estrutura neocolonial estabelecida pelas principais potências, sobretudo a França, que controla o franco CFA (moeda da África Central), foram impulsionadas pela Líbia de Khaddafi com base nos 150 mil milhões de dólares em activos no estrangeiro e nas reservas de ouro em 25 países que ascendiam a quase 150 toneladas.
Tais circunstâncias transformaram a agressão da NATO contra a Líbia numa típica operação colonial. Uma das primeiras decisões da administração Obama, coincidente com o início da guerra, foi o congelamento dos activos financeiros líbios no estrangeiro – cerca de 100 mil milhões de dólares só em países da NATO – e das suas reservas de ouro.
O congelamento traduziu-se, de facto, num esbulho. Quando os mecanismos internacionais do costume, o Banco Mundial e o FMI, começaram a estabelecer os orçamentos e os condicionalismos económicos e político-sociais a impôr ao Estado líbio destruído, parte desses activos – o resto continua em parte incerta, mas certamente não é usado em proveito do povo líbio – transformaram-se em empréstimos à própria Líbia. Moral da história: um país que não tinha dívida externa, essencialmente porque geria a riqueza energética em proveito da própria população, passou a receber o dinheiro que lhe pertence sob a forma de empréstimos de instâncias internacionais.
Dez anos passados, a Líbia continua de rastos. Aquele que foi o mais desenvolvido país de África, com um crescimento de 16,6% em 2010 e o 55º entre 194 no índice de desenvolvimento humano da ONU, caiu mais de 50 lugares nesta tabela em menos de uma década. Perante um Estado destruído, um quinto dos 7,5 milhões de habitantes necessitam agora verdadeiramente de ajuda humanitária – que não lhes chega – e mais de 700 mil carecem de apoio alimentar.
Esta é a obra da NATO, realizada em colaboração com terroristas islâmicos, alguns dos quais autores de crimes contra populações europeias. Abdelhakim Belhadj, por exemplo, que a NATO transformou em comandante militar de Tripoli antes de ser enviado para organizar os mercenários “islâmicos” na Síria, esteve envolvido no atentado ferroviário de Madrid em 2004, que provocou 193 mortos. E Abu Sufian bin Qumu, veterano terrorista que serviu a al-Qaida e Bin Laden no Sudão e no Afeganistão, em 2011 treinou “rebeldes islâmicos” aliados da NATO em Derna, Cirenaica, depois de ter passado seis anos no campo de concentração de Guantánamo.
Se recordo o trágico episódio da destruição da Líbia nestas linhas não é apenas para assinalar uma efeméride redonda. Faço-o numa ocasião em que a NATO está na calha para uma outra operação indirecta – ou mesmo directa incorrendo, nesse caso, em riscos terríveis para o planeta – ao apoiar o regime de base nazi da Ucrânia em novos movimentos para tentar esmagar as populações russófonas do Leste do país, nas regiões de Donetsk e Lugansk. São muitos os sinais de que tal pode acontecer, o principal dos quais foi dado pelo presidente Joseph Biden ao declarar o “total apoio” dos Estados Unidos a uma acção desse tipo. E logo num momento em que a NATO está envolvida nos gigantescos jogos de guerra “Defender Europe”, no âmbito dos quais concentra poderosos meios navais e aéreos no Mar Negro, o que vem provocando reacção simétrica da Rússia.
O terrorismo da NATO é, como se percebe, um comportamento inerente à própria existência da organização.