NEGACIONISMO E “CAPITALISMO VERDE” SÃO AMBOS INIMIGOS DO AMBIENTE
2020-09-29
Eduardo Camin*, Estrategia.la/Adaptação O Lado Oculto
Perante o cenário catastrófico que se anuncia como consequência do aquecimento global, os poderes fácticos do capitalismo internacional oscilam entre duas estratégias: uma campanha de negação das provas científicas que pretende apresentá-las como uma “ideologia”; e uma estratégia de promoção de um “capitalismo verde” ou “sustentável” que promove acordos internacionais que não passam de farsas e promove uma reconversão parcial e limitada dos sistemas produtivos enquanto fortalece o modelo de acumulação e exploração capitalista.
No campo de negacionismo situam-se desde Donald Trump, o Partido Republicano e o Tea Party dos Estados Unidos, o presidente Jair Bolsonaro do Brasil até sectores científicos minoritários.
O seu núcleo central, porém, está nas grandes corporações que são as principais responsáveis pelas emissões de gases contaminadores geradores das mudanças climáticas. Apesar disso, e ao mesmo tempo que desenvolvem a campanha negacionista, as grandes corporações capitalistas estão plenamente conscientes das alterações climáticas e dos seus efeitos sociopolíticos, pelo que se preparam para responder às suas implicações no terreno da “segurança” e das políticas externas.
De facto, o capital mais concentrado considera a militarização como um instrumento de adaptação às mudanças climáticas: mais exércitos e forças de segurança privadas que eventualmente possam defender as ilhas de prosperidade no meio de oceanos de miséria e degradação.
Negacionismo “light”
A outra face da mesma moeda é o “capitalismo verde”, promovido desde o Partido Democrata dos Estados Unidos, a dirigentes dos principais países europeus, como Angela Merkel, Emmanuel Macron, Pedro Sánchez ou as instâncias responsáveis da União Europeia e diversos “partidos verdes”, passando por diferentes e poderosas corporações capitalistas e organismos internacionais até ambientalistas e organizações não-governamentais (ONG’s).
E eis que a nova ofensiva do capitalismo global para privatizar e mercantilizar massivamente os bens comuns tem na economia verde o seu máximo expoente e principal parceiro. Precisamente num contexto de crise económica, uma das estratégias do capital para recuperar as gananciosas taxas de lucro consiste em privatizar os ecossistemas e converter “o vivo” em mercadoria.
Trata-se de um exercício de sincretismo entre neoliberalismo e “economia verde”. Denunciam o aquecimento global e estabelecem acordos em dispendiosas cimeiras climáticas sobre medidas de protecção ambiental, controlos e grandes objectivos de redução de emissões que, em todos os casos, não têm ido além da retórica dos “documentos diplomáticos” sem grandes consequências práticas.
Ao mesmo tempo sugerem limitar a produção de substâncias tóxicas e a destruição de recursos naturais além de desenvolver simultaneamente novas tecnologias “suaves”, argumentando que se trata de uma nova fonte de crescimento económico da qual as corporações capitalistas poderão extrair vultosos lucros.
Uma das medidas mais recentes neste campo, impulsionada pelo governo de Merkel e pelo Partido Verde alemão mas que começa a ser adoptada por outros governos e sectores ambientalistas, pretende desenvolver um imposto contra as emissões de dióxido de carbono, CO2, (agravando, por exemplo, o consumo de carne, os combustíveis e o tráfego aéreo) de modo a renovar a indústria no sentido de uma transição tecnológica.
Um imposto que provocaria a subida de preços e um ataque em regra à capacidade aquisitiva da classe trabalhadora sem representar qualquer medida séria perante a crise climática. Na verdade, a estratégia neoliberal do “capitalismo verde” acaba por ser um “negacionismo light”.
O monstro gera o problema e a solução?
Mas a ideia de um “capitalismo verde” capaz de eliminar totalmente as causas que estão na base da catástrofe ambiental global que nos ameaça e de promover um “desenvolvimento sustentável” da humanidade e do conjunto das espécies que habitam no planeta não passa de uma quimera. A solução da crise climática global não pode nascer, em caso algum, das entranhas do mesmo sistema que a produziu.
Dentro deste campo há um grande número de ONG’s e organizações ambientalistas que trabalham ombro-a-ombro com os evangelistas da ecoeficiência e as petrolíferas como a Shell ou a Exxon, com empresas mineiras como a Barrick Gold ou megacorporações como a Walmart, Cargill ou a Monsanto, colaborando com o saque dos recursos naturais em todo o planeta sob a cobertura “ambientalista”; na realidade, o verde alimenta as entranhas do monstro.
Chegou o momento de os que estão verdadeiramente preocupados com o destino da Terra enfrentem os factos; não só a séria realidade das mudanças climáticas mas também a necessidade aguda de uma mudança do sistema social.
Em épocas de crise o homem tende a criar pontes entre uma realidade ingrata e hostil e qualquer coisa ideal, o que, sem dúvida, faz parte desse equilíbrio social que transcende a razão, essa necessidade de reduzir os factores negativos e aumentar os positivos. Talvez por isso, na vida diária aceitemos como certas muitas coisas que, depois de uma análise mais rigorosa, nos parecem tão carregadas de evidentes contradições que só um esforço de reflexão nos permite saber no que é lícito acreditar.
A incapacidade de chegar a um acordo sobre o clima global em cada uma das diferentes cimeiras climáticas não tem sido uma simples abdicação da liderança mundial, como é frequentemente sugerido, mas tem raízes mais profundas na incapacidade deliberada do sistema capitalista para lidar com a crescente ameaça à vida no planeta.
Capitalismo é igual a destruição da natureza
De maneira inegável, o capitalismo tem prosperado ao longo dos séculos com a exploração da natureza, seja como fonte “inesgotável” de recursos que são convertidos em mercadorias, seja como depósito de desperdícios.
Cada vez é mais evidente que a capacidade da Terra para “suportar” os processos ecodestrutivos do capital está a atingir os limites. A recorrente necessidade de crescimento constante do capital conduziu à interrupção de um complexo ciclo natural que demorou milhões de anos a desenvolver-se, provocando assim uma fractura do metabolismo derivado da sociedade e da natureza.
Estes conceitos e avaliações podem parecer abstractos, mas tomam corpo quando se percebem as suas consequências reais, como a potenciação de todos os fenómenos catastróficos relacionados com o clima, a sua permanência no tempo e a aceleração dos seus ritmos: incêndios incontroláveis que arrasam regiões inteiras em todo o globo, associados também à propagação de espécies invasivas e a uma gestão florestal orientada para a monocultura e unicamente para o lucro, vagas extremas de calor, inundações massivas ou secas catastróficas.
Uma tendência que se agravará se a crise ecológica não for travada e que pode provocar uma extinção em massa da biodiversidade do planeta.
A barbárie que representa a recente multiplicação de incêndios na Amazónia, resultantes dos incentivos à desmatação – intensificados pela política do ultradireitista Bolsonaro -, a flexibilização da legislação ambiental e a acção directa de latifundiários e criadores de gado que orquestram as queimadas são apenas episódios do contínuo processo de degradação e destruição florestal.
Os fenómenos dos incêndios florestais descontrolados são cada vez mais recorrentes, como os grandes fogos que estão a arrasar a Sibéria e a África subsaariana, tal como a Califórnia, ano após ano, ou em numerosas regiões do sul da Europa, principalmente em Espanha e Portugal.
Boas intenções e o resto
Os membros da Junta Consultiva sobre as Mudanças Climáticas, reunidos pela primeira vez desde a constituição desta entidade na cimeira das Nações Unidas sobre o clima de 2019, referendaram uma estratégia para um período de dez anos para que o emprego e o bem-estar das pessoas constituam o elemento principal da transição para as economias que não gerem emissões de carbono e sejam consistentes no respeito pelo clima.
Em Dezembro de 2019, o secretário-geral das Nações Unidas, o director da Organização Internacional de Trabalho (OIT) e vários dignitários de governos e organizações internacionais puseram em marcha a Iniciativa de Acção Climática para o Emprego no quadro da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas realizada em Madrid (COP25).
Nesta cimeira, 46 países comprometeram-se a elaborar planos à escala nacional para fomentar uma transição justa em que o trabalho decente e uma acção equilibrada para todos sejam os elementos principais das medidas destinadas a abordar as mudanças climáticas, com base em directivas da OIT para uma transição justa.
São três os objectivos principais: aplicar medidas sobre as alterações climáticas que contribuam para gerar emprego decente e promover a justiça social; prestar assistência aos países que consigam avanços no âmbito de um futuro sustentável; tomar medidas para facilitar uma recuperação inclusiva e sustentável perante a epidemia de COVID-19.
O objectivo expresso na Iniciativa de Acção Climática para o Emprego é o de proporcionar aos países os instrumentos para avaliar alternativas de investimento e políticas com o fim de facilitar uma recuperação que imponha condições para o emprego e a transição para economias sustentáveis.
“A Iniciativa de Acção Climática para o Emprego deverá constituir uma contribuição substancial para o processo de cumprimento” dos objectivos propostos, declarou Guy Ryder, director-geral da OIT. “Todos estamos conscientes das nossas responsabilidades a respeito disso”.
Porém, o alinhamento cada vez mais intenso da ONU e do seu secretário-geral com as correntes, as iniciativas, as corporações e entidades que pretendem abordar as questões climáticas no quadro do “capitalismo verde” tende a comprometer as iniciativas bem-intencionadas associadas à criação de emprego e às transições sociais em sentido justo.
Em Dezembro de 2009, o presidente cubano Fidel Castro advertia: “Até há muito pouco tempo discutia-se o tipo de sociedade em que iríamos viver. Hoje discute-se se a sociedade humana sobreviverá”.
*Jornalista uruguaio acreditado na ONU-Genebra. Analista associado ao Centro Latino Americano de Análise Estratégica (CLAE)