O LADO OCULTO - Jornal Digital de Informação Internacional | Director: José Goulão

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DECADÊNCIA DO IMPERIUM AMERICANUM

2020-05-12

Patrick Armstrong, Strategic Culture/O Lado Oculto

Um cisne negro é a imagem muitas vezes usada para designar um acontecimento inesperado com grandes consequências. O ano de 2020 já nos trouxe dois até agora: a pandemia de COVID-19 e o colapso dos preços do petróleo. Cada um terá poderosas consequências para o Imperium Americanum. E ainda há um ninho de cisnes negros que estão a ser chocados.

COVID-19

Uma nova doença infecciosa foi detectada na China no final do ano passado; identificada como um novo coronavírus em Janeiro, foi declarada pandemia em Março. Desde então, a vida económica e social parou no Ocidente, onde os governos foram convencidos a declarar paralisações. As restrições avançaram em Março e Abril e ainda estão em vigor. Se em alguns lados estão a diminuir, noutros fala-se em mais meses. Não é assunto deste artigo questionar se essas medidas são justificáveis ou eficazes; basta registar que elas acontecem e que a economia mundial ficará debilitada durante dois a três meses ou mais. Na realidade, um grande cisne negro.

Os efeitos totais demorarão algum tempo a ser avaliados, mas um resultado que pode registar-se já é que o prestígio da eficiência ocidental sofreu um enorme golpe – talvez fatal. Apenas seis meses antes, uma investigação revelara de maneira assertiva que o Ocidente, comandado pelos Estados Unidos e o Reino Unido, seria a região mais apta a lidar com uma pandemia. Mas não é assim. O que se vai lendo são coisas como “Vivemos num Estado falido: o coronavírus não fez falir a América, revelou que estava falida”; “A morte da competência americana”; “O coronavírus é a maior falha de inteligência da história dos Estados Unidos”; “A reputação global dos Estados Unidos bate no fundo do poço com a resposta ao coronavírus dada por Trump”; “O mundo amou, odiou e invejou os Estados Unidos: agora, pela primeira vez, tem pena deles”; “Coronavírus: a UE pode fracassar com o surto, alerta o primeiro-ministro italiano, Giuseppe Conte”; “A UE perdeu-se na resposta ao coronavírus e poderá nunca recuperar completamente”; “A China não consegue conter o riso: imprensa estatal chinesa chama ‘sociedade primitiva’ aos Estados Unidos”.

Muitos dos artigos e reportagens norte-americanas, reflectindo as abissais divergências políticas que grassam nos Estados Unidos, tratam as coisas como se tudo fosse culpa de Trump. Mas não foi Trump que, há onze anos, não renovou os stocks de equipamentos de protecção individual (EPI). Sejam quais forem as suas falhas, as culpas não são todas dele. E as outras deficiências manifestadas pelo Ocidente também não são da sua responsabilidade. Afinal parece que ninguém tinha stocks de EPI – o primeiro passo, o mais fácil e óbvio contra a ameaça.

Washington tenta contornar o fracasso culpando a China. Mas até aqui perdeu competência; eis o secretário de Estado, Michael Pompeo, afirmando ao mesmo tempo que o vírus é e não é uma criação humana.

Pompeo: “Notem que agora até os melhores especialistas parecem pensar que o vírus foi criado pelo homem; neste momento, não tenho razões para não acreditar nisso”.

Raddatz: “O seu departamento de informação tem dito que, de acordo com o consenso científico, o vírus não foi criado pelo homem ou geneticamente modificado”.

Pompeo: “Isso mesmo”. Eu, eu, eu concordo com isso. Já vi a análise deles. Vi o resumo que você viu e foi divulgado publicamente. Não tenho motivos para duvidar de que isso seja exacto neste momento”.

Isto para já não falar no facto de o Dr. Fauci ter excluído a hipótese de o vírus ser originado no laboratório de Wuhan, na China. A China pode nem sequer ser o país de origem: França acaba de descobrir um caso em Dezembro e pode ter sido detectado um caso nos Estados Unidos ainda em Novembro. A tese posta a circular pelos Cinco Olhos (Five-Eyes, o conjunto dos serviços de espionagem anglo-saxónicos – Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, Austrália e Nova Zelândia) atribuindo à China a criação do vírus começou sem fôlego e está em colapso rápido: “baseou-se principalmente em reportagens e não contém material resultante da obtenção de informações”, diz um dos “olhos”. Washington pode amarrar os seus seguidores ao mesmo caixão, mas o resto do mundo não deixará de identificar essa teoria como uma lamentável manobra de diversão. Haverá sim maior distanciamento em relação às presunções de competência e credibilidade atribuídas ao Ocidente. E no próprio Ocidente muitos são os que duvidam das palavras de “especialistas” (sobretudo do Imperial College e seus professores), “autoridades” e “fontes fidedignas” da comunicação social corporativa.

A maior parte do Ocidente continua fechada, mas a China está a abrir-se. Para muitos analistas, a China está a tornar-se a maior economia do mundo – para o Banco Mundial já o é desde 2013 em termos de paridade do poder de compra, PPP – e o COVID-19 certamente irá acelerar esse processo, graças também à energia barata, depois de uma fase inicial de contracção económica.

Soft power, poder brando ou suave descreve a capacidade para se tornar cativante perante pessoas de outras culturas. Durante muitos anos essa foi uma seta no arco norte-americano – lembro-me muitas vezes, como exemplo, do personagem interpretado por Gregory Peck em Roman Holiday: aberto, honesto, honrado, moderno, contente em ser exemplar mas sem nunca tirar proveito disso. Era propaganda, certamente, mas propaganda eficaz. O COVID-19 mostra outra coisa e da forma mais simples: a China deu assistência a muitos países em dificuldades e os Estados Unidos foram acusados de “pirataria moderna” ao desviar máscaras que eram destinadas a outras nações, inclusivamente alguns dos seus aliados europeus. Slogans ridículos como “Os Estados Unidos e o presidente Trump dirigem o esforço global para combater esta pandemia” ou “Os Estados Unidos continuam a ser o farol do mundo em ajuda humanitária” apenas ajudam a tornar isso mais óbvio.

Quanto aos efeitos a jusante do cisne negro COVID-19, percebem-se pelo menos três: danos enormes e possivelmente fatais à suposição de competência norte-americana e ocidental; aumento do fosso económico em relação à China; mais uma mudança nos equilíbrios do poder brando no mundo. A manobra de diversão sobre “a culpa da China” (sem esquecer o resto do actual pacote inimigo – Rússia e Irão) é infantil e está a ser facilmente rejeitada. Nenhuma destas mudanças favorece o Imperium Americanum.

Petróleo

Em Março, a Arábia Saudita, em nome da OPEP, propôs a Moscovo que reduzissem a produção de petróleo. A Rússia recusou e Riade aumentou a produção. As paralisações económicas geradas pelo COVID-19 reduziram a procura. Um mês depois as vendas futuras do West Texas Intermediate atingiram valores negativos e o preço do barril de petróleo tornou-se inferior a 20 dólares.

Em termos gerais calcula-se que a indústria de petróleo de xisto (fracking, fracção hidráulica), que representa cerca de 60% da produção dos Estados Unidos, necessita de preços de 60 dólares por barril para ser rentável. A Arábia Saudita, apesar dos custos de extracção muito baixos, desperdiça tanto que necessita de 80 dólares por barril; o petróleo russo, por outro lado, é lucrativo a 45 dólares por barril e Moscovo tem 500 mil milhões de dólares amealhados no seu nicho FOREX. Se Riade iniciou uma guerra de preços, fê-lo sem estar em posição forte. Moscovo, por outro lado e segundo algumas opiniões, pode sobreviver com o petróleo a 25 dólares por barril durante dez anos. Quando a indústria chinesa voltar a funcionar em pleno começará a comprar petróleo, a maior parte dele à Rússia.

O resultado final desta guerra de preços em plena quebra da procura é desconhecido, mas é improvável que a indústria de petróleo de xisto dos Estados Unidos se dê bem com isso. E como grande parte dos comportamentos vigentes em Washington partem do pressuposto de que os Estados Unidos são autossuficientes em petróleo, o país não irá sair-se bem da situação.

É provável, portanto, que dois cisnes negros deixem o Imperium Americanum mais fraco e menos influente. E, deve dizer-se, mais desprezado. Mas há mais. 

Mais alguns cisnes negros

Muitos ainda nos lembramos da empolgação dos analistas e repórteres de TV a propósito das prestações dos mísseis de cruzeiro na primeira guerra do Golfo, em 1990. Uma arma que poderia ser lançada a mil quilómetros de distância para atingir um determinado piso de um determinado edifício era bastante surpreendente. Armas de precisão de longo alcance foram usadas pela primeira vez em episódios de guerra e, durante muitos anos, os mísseis de cruzeiro tornaram-se imagem de marca dos ataques norte-americanos, praticamente um monopólio. Até 2015, quando a Rússia atingiu alvos na Síria a partir de embarcações praticamente insignificantes navegando no Mar Cáspio. A perplexidade em Washington foi tanta que a primeira reacção foi a de pôr em causa a precisão dos disparos. Mas ela era real; muitos mísseis Kalibre foram lançados de diferentes plataformas, incluindo submarinos em imersão. Portanto passava a haver dois membros no clube dos que podem atingir com precisão alvos a longas distâncias.

Na sua resposta ao assassínio do general Soleimani, o Irão demonstrou que também era membro do clube. Embora, ao que conste, alguns dos seus mísseis se tenham perdido, a maioria atingiu o alvo pretendido. (E os opositores das forças armadas dos Estados Unidos também constaram – novamente – o facto de as suas defesas anti-aéreas não serem eficazes). Ao princípio registou-se a reacção habitual de Washington: subestimar o inimigo; mais tarde, porém, ouviu-se falar em mais de cem vítimas de lesões cerebrais. O que parece um feito relevante para um país que está sob sanções há décadas. O Irão, além disso, acabou de ingressar noutro clube restrito: o dos países que podem lançar um satélite por conta própria. (E novamente a reacção desdenhosa dos Estados Unidos: “uma webcam a fazer piruetas no espaço”).

A administração Trump é muito hostil em relação ao Irão, mas não mais do que a maioria das administrações dos Estados Unidos desde que o Xá foi mandado embora – quando ele próprio fora reinstalado no poder em Teerão por um golpe dos Estados Unidos e Reino Unido. Provavelmente o momento mais quente dessa guerra não declarada aconteceu em 1988, mas houve muitas outras crises e ainda agora acabámos de ter outra ameaça de Washington: a ordem presidencial para disparar sobre navios iranianos. Teerão sabe que está na lista dos alvos favoritos de Washington e há décadas que se prepara em função disso. Os mísseis devem ser uma das suas principais defesas. Os Estados Unidos fariam bem em reflectir sobre a participação – que consideram surpreendente – nestes dois clubes de elite antes de fazerem mais ameaças. Cisnezinhos podem transformar-se em grandes cisnes.  

Outro cisne negro é a exigência do Parlamento iraquiano para que as tropas norte-americanas deixem o país. Ao invés, Washington está a consolidar as suas forças, que poderão vir a tornar-se prisioneiras sitiadas se o Iraque se levantar contra elas. O que, mais tarde ou mais cedo, poderá acontecer quando o novo primeiro-ministro formar governo. Duas consequências da estratégia delineada para o Médio Oriente pela organização neoconservadora “Novo Século Americano” foram o crescimento da influência do Irão e a demonstração de que os militares norte-americanas não são a força omnipotente que pensavam ser. Quando os esforços para tornar evidente esta realidade se iniciarem, Washington terá três opções: acoitar-se e esperar que a ameaça desapareça; reforçar ainda mais as suas tropas para uma guerra completamente nova; ou retirar-se, como fez no Vietname. Este cisne está a crescer. 


Uma pandemia, o colapso do preço do petróleo, um país-alvo que demonstra mais capacidades do que se supunha e a ameaça de expulsão do Iraque. As surpresas puseram à vista pontos fracos de longa data.

São sempre as coisas inesperadas que testam tendências para a destruição.


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