A LIMPEZA ÉTNICA NO BERÇO DO NATAL
2019-12-23
O mundo cristão e de influência cultural cristã celebra o Natal ignorando na sua esmagadora maioria – porque lhe é escondido – que a mais antiga comunidade cristã do mundo, a da Palestina, continua a ser expulsa dos lugares onde se formou; comunidade essa que descende em linha recta dos primeiros cristãos, os contemporâneos de Cristo. Trata-se de uma limpeza étnica metodicamente organizada por Israel, país ocupante, colonizador e agressor que, paradoxalmente, conta com apoios de comunidades cristãs em todo o mundo. Na terra do primeiro Natal, Belém, há 70 anos os cristãos palestinianos representavam 86% da população; agora não passam de 12%.
Ramzy Baroud*, Palestine Chronicle/O Lado Oculto
A população cristã da Palestina está a diminuir a um ritmo alarmante. A mais antiga comunidade cristã do mundo está a ser transferida para outros lugares. E a causa disso é Israel.
Dirigentes cristãos da Palestina e da África do Sul fizeram soar o alarme durante uma conferência realizada em 15 de Outubro em Joanesburgo. O encontro decorreu sob o tema: “Terra Santa: uma perspectiva cristã palestiniana”.
Um facto importante destacado nas reuniões foi o rápido declínio do número de cristãos na Palestina.
Existem várias estimativas relacionadas sobre o número de cristãos vivendo ainda hoje na Palestina em comparação com o período anterior a 1948, quando o Estado de Israel foi instaurado sobre cidades, vilas e aldeias palestinianas. Independentemente da origem dos estudos, existe praticamente um consenso quanto ao facto de o número de cristãos na Palestina ser hoje dez vezes mais baixo do que há 70 anos.
Um recenseamento da população efectuado pelo Gabinete Central de Estatísticas da Palestina em 2017 concluiu que existem 47 mil cristãos palestinianos habitando nos territórios da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Leste. Aproximadamente 98% vivem na Cisjordânia – concentrados sobretudo nas cidades de Ramalah, Belém e Jerusalém; os restantes, uma pequena comunidade cristã de 1100 pessoas, vivem na sitiada Faixa de Gaza.
Em Belém restam 11 mil
A crise demográfica que aflige a comunidade cristã palestiniana há décadas tem vindo a agravar-se nos tempos mais recentes.
Por exemplo, a cidade de Belém – o berço de Jesus Cristo – tinha há 70 anos uma população em que cerca de 86% dos habitantes eram cristãos. Os dados demográficos da cidade, porém, alteraram-se drasticamente sobretudo a partir da ocupação da Cisjordânia por Israel, em 1967, e da construção ilegal do muro do apartheid, a partir de 2002. Sectores do muro foram edificados para isolar Belém de Jerusalém (apenas 15 quilómetros separam as duas cidades) e do resto da Cisjordânia.
“O muro circunda Belém, continuando para o sul de Jerusalém Oriental tanto a Leste como a Oeste”, revela a organização “Belém Aberta” ao descrever o impacto arrasador da construção ilegal em torno da cidade palestiniana berço do cristianismo. “Por causa das terras isoladas pelo muro, anexadas por colonatos hebraicos e encerradas sob vários pretextos, apenas 13% do distrito de Belém está disponível para a população palestiniana”, acrescenta.
Cada vez mais sitiados, os cristãos palestinianos de Belém estão a ser expulsos da sua histórica cidade natal cada vez em maior número. A presidente da Câmara Municipal de Belém, Vera Baboun, revelou em 2016 que a população cristã da cidade caiu para 12%, calculada em 11 mil pessoas apenas.
As estimativas menos conservadoras avaliam em menos de dois por cento o número total de cristãos palestinianos em toda a Palestina ocupada.
A correlação entre a redução da população cristã na Palestina e a ocupação israelita em sistema de apartheid salta aos olhos de todos, principalmente das populações cristã e muçulmana da Palestina.
Uma colonização arrasadora
Um estudo realizado pela Universidade de Dar al-Kalima, na cidade de Beit Jala, na Cisjordânia, e publicado em 2017 teve como um dos principais objectivos tentar compreender as razões pelas quais se esgotou quase totalmente a população cristã na Palestina. No inquérito foram entrevistados quase mil palestinianos, metade cristãos e metade muçulmanos.
O trabalho concluiu que “a pressão da ocupação israelita, as restrições contínuas, as políticas discriminatórias, detenções arbitrárias, a confiscação de terras, somadas a um ambiente geral de desesperança entre os cristãos palestinianos” provocam uma “situação desesperante na qual não já não conseguem vislumbrar um futuro para os filhos ou para si próprios”.
As alegações de que os cristãos palestinianos estão a abandonar os seus lugares de origem devido a tensões religiosas com os seus irmãos muçulmanos são, portanto, infundadas e irrelevantes.
Situação em Gaza
Gaza é outro caso a abordar. Apenas dois por cento dos cristãos da Palestina vivem na empobrecida e sitiada Faixa de Gaza. Quando Israel ocupou este território, em 1967, juntamente com a restante Palestina histórica, calcula-se que ali viviam cerca de 2300 cristãos. Hoje habitam na Faixa de Gaza menos de metade, apenas 1100 cristãos. Anos de ocupação, guerras terríveis e um cerco implacável são razões de força maior para que isso aconteça a uma comunidade cujas raízes históricas remontam há dois milénios.
Como os muçulmanos de Gaza, esses cristãos estão isolados do resto do mundo, incluindo dos lugares sagrados da sua fé na Cisjordânia. Todos os anos os cristãos de Gaza solicitam licenças às Forças Armadas de Israel para participar nos cultos da Páscoa e do Natal em Jerusalém e Belém. Em Abril passado, porém, apenas 200 cristãos receberam autorização - e com a condição de terem pelo menos 55 anos de idade e não poderem visitar Jerusalém.
A organização de direitos humanos israelita Gisha considerou a decisão das autoridades de Israel como “uma violação adicional dos direitos fundamentais dos palestinianos à liberdade de circulação, liberdade religiosa e vida familiar; e, com toda a razão, acusou Israel de tentar “aprofundar a separação” entre Gaza e a Cisjordânia.
Quebrar os laços culturais e espirituais
Na realidade, Israel pretende mais do que isso. Separando os cristãos palestinianos uns dos outros e dos seus lugares sagrados (como acontece também com os muçulmanos), o governo israelita espera enfraquecer os laços socioculturais e espirituais que contribuem para identidade colectiva palestiniana.
A estratégia assenta na ideia de que uma combinação de factores – enormes dificuldades económicas, cerco permanente e apartheid, ruptura dos laços comunitários e espirituais – acabará por contribuir para expulsar todos os cristãos das suas terras natais na Palestina.
Israel esforça-se por qualificar o “conflito” na Palestina como religioso para que, por seu lado, possa apresentar-se como um Estado judeu sitiado por uma população muçulmana massiva no Médio Oriente. A contínua existência de comunidades cristãs na Palestina, bem relacionadas com os muçulmanos, não favorece a criação dessa imagem.
Neste quadro nota-se a insistência israelita em deturpar a luta palestiniana, qualificando-a como religiosa e não um combate pelos direitos humanos, contra a ocupação, o colonialismo e os colonos. Igualmente perturbador é o facto de os mais fervorosos apoiantes de Israel nos Estados Unidos e em outros países serem de confissões cristãs.
É importante ter a noção concreta de que os cristãos palestinianos não são estrangeiros nem espectadores na Palestina. Eles são vítimas de Israel, descendem em linha recta dos primeiros cristãos e, tal como os seus irmãos muçulmanos, desempenharam um papel fundamental na definição da identidade palestiniana moderna através das suas resistência, espiritualidade, profunda ligação à terra, contribuições culturais e impressionante formação intelectual.
Não deve permitir-se que Israel isole a comunidade cristã mais antiga do mundo das suas terras ancestrais, colocando assim mais uns marcos no caminho inquietante da supremacia racial.
É igualmente importante ter a noção de que o lendário suporte da resistência palestiniana – constituído por firmeza e solidariedade – não poderá considerar-se completo se não contar com o papel central dos cristãos palestinianos na história e identidade da Palestina moderna.
*Jornalista, escritor, editor da publicação Palestine Chronicle